A Corte de Sangue - Equinócio

By ElisaBaroli

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Roslyn Satie se muda para a pequena cidade de Wells, na Inglaterra, após a morte trágica de seus pais. Submer... More

2 - Wells
3 - Toque de Recolher
4 - A Sala
5 - Fogueira
6 - Floresta
7 - Sonho

1 - Água

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By ElisaBaroli


A água perfurou o meu os meus pulmões e fez as minhas entranhas queimar ao tentar respirar. Ouvi o vidro da janela sendo batido e esmurrado até que se partiu. Só então percebi que era eu quem estava fazendo aquilo. Os meus braços sangravam. Chamei pelos pais. Queria que eles fizessem o mesmo, mas o meu pai estava com a cabeça em cima do volante e minha mãe deitada em uma posição estranha.

Eu puxei o seu corpo mesmo assim, queria poder consertá-la. Eu pisquei, ou pelo menos acho que pisquei, porque quando tornei a abrir os olhos estava fora do carro. Eu podia nadar até luz. Os meus pulmões imploravam para fazer isso. Mas o nosso carro estava afundando, quase não era mais possível ver a silhueta dele agora. Eu tinha que salvá-los. Os meus pais.

Penetrei fundo na escuridão, forçando ao máximo que conseguia. Os meus braços pararam de me obedecer e se tornaram letárgicos. A minha mente se perdia entre a escuridão e o esverdeado da água.

Então, eu parei. Não fazia sentido lutar. Se era o meu destino sucumbir, eu iria aceitá-lo. Pelo menos estaria com os meus pais, aonde quer que isso fosse terminar, no céu ou no inferno ou no completo vazio que existia do outro lado. Ainda seriamos uma família.

Se eu estivesse com a consciência plena teria achado estranho e engraçado os dois rubis que flutuavam em minha direção. Contudo, os meus pensamentos se embaralhavam na confusão do que morrer significava. Não havia nenhuma lembrança ou arrependimento que pudesse me assolar agora, nem mesmo uma voz etérea ou um anjo envolvido de luz me chamando.

Então, isso é morrer? Um grande e enorme nada. Patético.

Senti o meu corpo ser puxado por um corrente e me permiti ser levada, torcendo para que afundasse para aonde os meus pais estavam. Algo queimou os meus olhos e incendiou a minha garganta.

Só então eu me dei conta de que não se tratava de uma corrente, mas sim de braços. Um par de braços e uma voz urgente. Senti uma superfície dura atrás de mim e meu peito ser pressionado como uma velocidade de forma ritmada. Então, veio o refluxo e a queimação da água mais uma vez.

Era difícil respirar. Cada partícula de ar que enchia os meus pulmões eram como pequenos alfinetes. Antes que eu pudesse abrir os olhos, a minha consciência me traiu e eu me entreguei a escuridão, torcendo pela paz.

Bipe. Sinto o meu corpo ser limpo e vestido. Bipe. A enfermeira troca as agulhas que me perfuram. Bipe. A médica aparece para me dar uma olhada rápida. Bipe. O meu corpo é limpo mais uma vez. Bipe. Um grupo ora pela minha alma já perdida. Bipe. Ouço vozes jovens e conhecidas para mim, eu tento gritar, mas elas vão embora. Bipe. Não ouço ninguém por um bom tempo. Bipe.

Bipe.

Bipe.

Bipe.

Abro os olhos.

Levo as minhas mãos instintivamente para o meu peito e me obrigo a respirar. Olho para o quarto ao meu redor sem entender aonde estou. A porta do quarto se abre e uma senhora com expressão surpresa entrar.

― Roslyn. ― Ela chama o meu nome.

Eu abro a boca, mas não sai nenhum som. A enfermeira sorri e pressiona um botão que eu não vejo. Nem cinco minutos se passam e o meu quarto está cheio de pessoas. Médicos.

― Vamos dar um pouco de privacidade a ela, sim? ― Pediu a médica.

Os enfermeiros se retiram, contrariados. A médica senta na minha cama e me olha como se eu fosse um milagre da medicina. Gosto dos seus cabelos trançados e a sua pele negra, me lembram de uma professora da escola.

― Roslyn, eu sou a Dra. Santana. Você sofreu um acidente na estrada e se afogou. ― Ela fala.

Quase que no mesmo momento sou atingida pelas lembranças.

― Água. ― Digo.

― Está com sede?

Eu balanço a cabeça em negativa.

― Água. ― Repito. ― Os meus pais...?

A Dra. Santana engole em seco e sinto a sua hesitação. Algo estava errado, mas eu não conseguia me lembrar do que era.

― Eles não resistiram, Roslyn.

Deixei escapar um grito, que mais se parecia um gemido de dor. A parte da minha mente bloqueada se abriu e eu me lembrei de tudo. Do acidente. O meu pai estava dirigindo e nós estávamos cantando, só que o carro derrapou e caímos no lago.

As lágrimas quentes molham a minha bochecha e a Dra. Santana me entrega um lenço de papel, desvia estar com ela o tempo todo. Desvio os olhos por um segundo e reparo no quarto. Nas pequenas máscaras de papel presas na parede e no teto coberto com rabiolas.

― Quando? ― Indago. ― Quanto tempo?

― Você ficou em coma por três meses. ― Ela falou.

― Eu lembro. Era véspera de Ano Novo. ― Eu digo. ― A gente ia para a praia na Região dos Lagos.

A Dra. Santana assenti de leve e se remexe na cama, desconfortável.

― Roslyn, você tem algum parente? ― Ela pergunta. ― Durante todo esse tempo...

― Eu não tenho ninguém. ― Falo. ― Os meus pais são filhos únicos e os meus avós estão mortos.

A Dra. Santana assente mais uma vez. Ela olha o seu bipe e diz que precisa sair e fazer algumas ligações. Conselho Tutelar, com toda a certeza. Viro para o lado, quieta. A ideia de ir para um abrigo serpenteia na minha cabeça. Só durante alguns meses até completar dezoito anos e depois ver aonde a vida ia me levar. Não tinha nenhum plano ou objeção. Não tinha nem vontade de continuar vivendo.

Não era justo. Deveria ter sido eu a morrer afogada naquele lago. A ideia da viagem foi minha para começo de conversa e quando o Eric estava dirigindo, fui eu quem pediu para ele aumentar o rádio. Era a nossa música de viagem preferida. Os meus pais deveriam ter vivido e não eu.

A enfermeira aparece e sorri para mim, eu não consigo curvar os lábios e apenas a encaro.

― Você só vai dormir um pouquinho. ― Ela fala.

Não protesto e ela injeta o liquido nas minhas veias. A sonolência me preenche e eu mergulho para um sono sem sonhos.


A minha recuperação é rápida e no meu ultimo dia do hospital, a Dra. Santana entra no meu quarto com um sorriso de orelha a orelha. Os funcionários fizeram uma festa de despedida para mim e outros pacientes me deixaram flores e cartões. 

― Você não vai acreditar. ― Ela diz.

― O que? ― Pergunto mais por educação do que curiosidade.

― Ah, veja por você mesma.

Ela torna a abrir a porta do quarto e um sujeito de meia-idade vestindo um terno caro, entra. Não entendo porque a presença daquele homem poderia deixar a médica tão feliz. O sujeito de rosto enrugado e uma barba cuidadosamente aparada, sorri, de modo confiante e deixa uma maleta brilhante em cima do pequeno sofá para visitas.

― Senhorita Roslyn, eu sou o Sr. Augusto Jenkins, a seu dispor.

Eu aperto a sua mão, sem graça, e olho para a Dra. Santana.

― O Sr. Jenkins nos contatou ontem pela tarde. Ele teve um problema, mas veio assim que soube que você acordou. ― Ela explicou.

― Sou advogado. ― Ele acrescenta, talvez percebendo a minha cara de idiota. ― A sua avó me deixou encarregado de tudo desde o acidente.

Eu não processo muito bem aquelas palavras. O Sr. Jenkis me avalia, esperando uma reação, uma reação humana, melhor dizendo, mas tudo o que eu faço é piscar repetidas vezes. Aposto que ele deve me achar uma lunática. A Dra. Santana se aproxima de mim com a sua perícia médica.

― Espera... ― Reajo. ― Você disse...?

― Avó, isso mesmo. A Sra. Marie Satie, mãe do seu pai, Eric. Ele me alertou que vocês não tem tido... contato. ― Ele franziu o cenho para a palavra.

― Nenhum contato. ― Corrijo. ― Eu nem ao menos sabia! Ela está? Porque não veio me visitar?

― A Sra. Marie não reside no Brasil e não pode comparecer para vê-la e nem ao enterro.

O meu autocontrole falha por um instante. O assunto do enterro dos meus pais não era algo que eu conseguia lidar. A morte deles foi brutal e nem mesmo me despedir eu consegui.

Respiro fundo várias vezes, mas a sala se torna pequena para nós três. Falta ar. As paredes se fecham ao meu redor. Sinto a calmaria da Dra. Santana. Ela diz que estou hiperventilando e que preciso manter a calma.

― Talvez seja melhor você voltar outra hora. ― Ouço ela dizer.

― Não, não vá. ― Eu digo quando volto a mim. Não suportaria passar por isso duas vezes. ― Porque está aqui?

― A sua guarda está com a sua avó até que complete 18 anos, pelas leis brasileiras, é claro. Estou aqui para acertar tudo da sua ida para a Inglaterra daqui há dois dias.

― Marie mora na Inglaterra? E a minha casa? Não posso deixar tudo aqui!

― Srta. Satie, o seu pai deixou a Sra. Satie como sua guardiã legal, mesmo que possamos tentar uma emancipação, essa era a ultima vontade dele. ― O advogado fala. Golpe baixo. ― Basta assinar os papéis e resolverei tudo.

O advogado me entrega a caneta. Morar com a mãe do meu pai não deve ser tão ruim como ir para um abrigo. Marie deveria ter os seus motivos para nunca ter ido me visitar nos últimos dezessete anos. Mas se Eric havia confiado a minha segurança a ela, eu deveria lhe dar pelo menos o benefício da dúvida. Assino.


O Sr. Jenkins não estava brincando quando disse que resolveria tudo. Em dois dias, ele vendeu a nossa casa no Rio de Janeiro por um preço acima do mercado. Resolveu as pendências que meus pais haviam deixado, tirou o meu passaporte e visto, que ela já havia encaminhado durante o meu coma. Muito eficiente.

Ele me deixou alguns minutos para fazer as malas na minha antiga casa. Os novos compradores chegariam logo. Enchi duas malas com as minhas roupas e encaixotei alguns livros. Alguns eram meus e os outros eram os preferidos dos meus pais.

Optei por doar para a caridade todas as roupas deles. Era o que a mamãe teria feito. Levei as poucos jóias que a minha mãe tinha, as fotos e embrulhei os quadros do meu pai. Era isso. Toda uma vida envolvida em papel jornal e caixas de papelão.

Antes de ir embora, a campainha toca. Abro a porta e vejo a nossa vizinha de dez anos. As vezes eu tomava conta dela.

― Roslyn. ― Ela grita e me abraça forte.

― Ei, pequena, quanto tempo! ― Os meus olhos se enchem de lágrimas. ― Acho que você cresceu dois centímetros.

― Dois e meio. ― Ela me corrige. ― Está indo mesmo embora?

― Só por um tempo. ― Falo. ― Não conta para ninguém, mas vou voltar para cá quando ficar mais velha.

O Sr. Jenkins buzina. Era a minha deixa.

― Antes que eu me esqueça. ― Entro em casa e volto para a varanda como um caixa de papelão. ― Os meus brinquedos antigos. O casal que vai morar aqui não tem filho e não queria que fossem dados para qualquer um.

O rosto de Carolina se ilumina e pela primeira vez e muito tempo eu consigo sorrir de forma sincera. Ao menos alguém iria tirar algum benefício disso tudo.

No carro o Sr. Jenkins diz que ainda temos um tempo para mais uma parada. Não percebo aonde ele está me levando até que vejo um grande portão de ferro e anjos esculpidos em pedra. O advogado me leva até um corredor e se afasta um pouco. 

Eu os vejo. Não os meus pais, é claro, mas as duas grossas lápides de pedra. Eric Satie e Gabriela Satie. Filhos amados e pais memoráveis.

A inscrição deve ter sido ideia do Sr. Jenkins. Não vejo mal nenhum, mas sei que mamãe teria odiado. Um segundo sorriso sincero ultrapassa os meus lábios. Seguido de uma gargalhada. Paro. Não quero que o Sr. Jenkins me interne numa clinica.

Coloco uma rosa branca em frente ao lado de cada uma e reparo numa rosa vermelha solitária. O Sr. Jenkins não soube me dizer quem visitou os meus pais recentemente. O nosso acidente ficou bastante conhecido na cidade, pessoas desconhecidas costumavam ir até lá e até me visitar no hospital ela iam.

Quando volto para o carro a rosa vermelha é um pensamento muito distante. A minha cabeça está em outro lugar no momento. Do outro lado do mar. Numa cidadezinha pequena em sem graça chamada Wells. O meu lar nos próximos meses.  

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