5 - Fogueira

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Não havia coisa pior a se considerar do que acordar cedo em pleno final de semana. Encarei as vigas do teto por longos minutos, observando cada partícula de poeira e teia de aranha, até que me levantei. O meu corpo ainda não havia se acostumado por completo com o fuso horário e fazia dias desde que eu me sentia verdadeiramente descansada. A tristeza me consumia de dentro para fora e eu suspirei alto no interior do quarto solitário, sufocando a vontade de chorar que me preenchia.

Marie já havia preparado o café, portanto não tinha nada que pudesse fazer a não ser sentar à mesa e esperar a hora passar. Os afazeres doméstico e o dever de casa eram um refúgio para minha mente, faziam com que eu não me sentisse tão miserável. Eu devia ser grata, morava numa cidade tranquila com o que restava da minha família, possuía a herança dos meus pais e podia fazer o que bem entendesse com a minha vida depois da minha maioridade, mas, ainda assim, os sonhos se tornavam cinzas no meu interior. Eu estava oca por dentro desde a morte dos meus pais.

Quando finalmente terminei o café, subi as escadas e finalizei o que tinha a ser feito sobre o dever de casa. Agradeci mentalmente à professora de geometria por passar um trabalho-extra demorado. Matemática não era bem o meu forte, mas, pelo menos, os números eram iguais em quase todos os países.

Na escola antiga a minha existência passava desapercebida, mas não era nenhum segredo para mim que o meu progresso em Wells estava sendo acompanhado de perto pelos professores e diretores da escola. O que era bom e ruim em muitos aspectos. Bom porque não tinha escolha a não ser estudar e deixar de pensar na minha tragédia pessoal. Ruim porque todas as minhas falhas estavam expostas. E eu tinha muitas falhas.

Olhei a hora no notebook e revirei os olhos, não eram nem 10 da manhã. Se estivesse no Rio de Janeiro, na minha casa, podia ir ao cinema ou almoçar fora com os meus pais. Os dois brigariam porque a minha mãe amava comidas excêntricas e o meu pai, que preferia comer uma boa comida italiana, mal aguentava comer comida japonesas, então os dois deixariam que eu escolhesse.

Às vezes eu fazia as vontades de minha mãe e comíamos no restaurante árabe perto de casa, enquanto a gente ria das caras de espanto do meu pai com cada sabor esquisito e diferente que a minha mãe o obrigava a provar.

A lembrança me faz chorar. Prefiro chorar em silêncio, não suportaria ter de me explicar para Marie. Perder os meus pais era uma ferida aberta e cada lembrança era como remexer no machucado com uma agulha. A calmaria e quietude de Wells, com o seu clima peculiar, toque de recolher e regras sem sentido não ajudavam em nada.

Um barulho na janela chamou a minha atenção e me tirou do meu estupor momentâneo e depressivo. Sorri para o corvo que espreitava o beiral da minha janela. O vento frio balançou os meus cabelos fazendo cócegas no meu nariz quando eu abri a janela. O corvo deu pequenos passinhos na minha direção e eu ponderei se deveria tocá-lo.

― Oi amiguinho. ― Sussurrei. ― Não tenho chocolate hoje.

O animal grasnou.

― Você está reclamando? É isso mesmo? ― Eu me perguntei em voz alta. ― Eu devo estar mesmo louca por conversar com pássaros.

O corvo tornou a grasnar.

― Você quer entrar? ― Convidei. ― Não tem muito o que fazer aqui.

O animal parou e pareceu considerar a oferta, por mais louco que isso podia parecer. Mas em vez de voar em minha direção, ele encarou algo atrás de mim e voou para longe. Eu ainda estava com olhos semicerrados, quando a porta do meu quarto se abriu e Marie entrou.

― Com quem você conversava? ― Ela perguntou parada na soleira da porta do meu quarto.

― Com ninguém. ― Respondi.

A Corte de Sangue - EquinócioOnde as histórias ganham vida. Descobre agora