Quase sem querer

By mairabferreira

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Seis anos atrás, um grave acidente matou o pai de Liana. Agora, aos 16 anos, ela vive com a mãe e passa o tem... More

Sinopse
Trilha sonora
Quem é quem
Epígrafe
Capítulo 1 - A queda na toca do coelho
Capítulo 3 - Um satélite antissocial
Capítulo 4 - Do outro lado da ponte
Capítulo 5 - As desvantagens de ser visível
Capítulo 6 - Suor, lágrimas e sangue

Capítulo 2 - Sinuca de bico

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By mairabferreira



Mesmo com a minha curiosidade pulsando, tentei me controlar e não comentar nada sobre o que havia ouvido durante o jantar. Minha mãe, por outro lado, apresentava um comportamento suspeito, tentando me agradar a todo minuto. Por maior que fosse a minha paranoia, até o meu bom senso pequeno e desnutrido pressentia que aquela calmaria era apenas a prévia de uma tempestade.

De resto, os dias após o ocorrido se passaram normalmente. Minhas férias continuavam no mesmo ritmo ocioso de antes, carregadas da mais cristalina inutilidade. Não fazer nada produtivo era, de fato, a minha especialidade.

Até que o começo de uma quinta-feira nublada me trouxe às mãos a bomba que eu estava aguardando há cinco dias. Como em grande parte das minhas férias, eu acordara tarde. Acompanhada de uma caneca de leite e um misto-quente, cheguei ao sofá, onde – controle remoto e almofadas a postos – meu território para o resto do dia estava preparado. Com preguiça até de mudar o canal, eu assistia a um documentário aleatório sobre os benefícios dos alimentos integrais quando minha mãe se aproximou sorrateiramente.

"Você não me contou até agora o que achou do Dario." – começou ela com um tom amigável.

"Mas você já me perguntou isso, mãe."

"E você não me deu nenhuma resposta específica."

"Como não? Eu disse que achei ele simpático."

Silêncio. As fibras dão sensação de saciedade, contribuindo para um melhor funcionamento do intestino, a voz na televisão continua. Tentei prestar atenção no que o homem dizia, mas era nítido que, para ela, o assunto ainda não estava encerrado.

"E os meninos? Você se deu bastante bem com a Zoey, não?"

"Ela é simpática." – respondi, com os olhos grudados na tela – "Para uma menina de oito anos."

"E o Thomas?"

"O que tem ele?"

"O que você achou dele, ué."

"Simpático. Quer dizer... Com base nas três frases ou menos que ele falou enquanto estava na sala."

"É, eles parecem ser ótimos. E a casa é bastante bonita, não?" – ouvindo isso, eu pude ver de relance a adolescente que ela fora um dia, suas expectativas e deslumbramentos."Deve ser ótimo morar em um lugar assim, com piscina, quintal, tanto espaço."

"É..." – eu calculava meticulosamente as palavras inseridas em cada frase para que elas não fossem usadas contra mim no futuro – "É uma casa bonita."

Outro silêncio. Dessa vez, maior. Ouço o vento se esgueirando pelo vidro, as fibras, os orgânicos, o funcionamento do organismo, baixa caloria, minha perna esquerda balançando no ritmo do relógio enquanto a falta de movimento da cena me aflige mais que um filme de terror. Ela suspira.

"Olha, eu..."

"Mãe, fala logo." – não me aguento. Eu sabia que, se dependesse dela, voltas e mais voltas seriam dadas ao redor do assunto, como um cachorro correndo atrás do próprio rabo. Prefiro as notícias dadas cirurgicamente: vamos direto ao nervo. Sem desperdício de sangue. Ou tempo. De uma vez só.

"Tudo bem. Eu realmente precisava falar com você."

"Eu sei, mãe, você tem tentado há alguns dias."

"É que não é fácil, Lia." – ela aumentou um pouco o tom. Me senti culpada. Outro curto silêncio. – "Bom... Já faz alguns meses que eu e Dario estamos namorando, você sabe disso."

"Sei."

"É claro que eu não esqueci seu pai. Mas..." – ela hesitou – "Mas a gente precisa reconstruir a vida. Entende?"

Não. Entendo pouco de reconstruções, faço mais o estilo ruína, então opto por ficar calada. Não queria piorar a situação e provavelmente não saberia como melhorá-la.

"Eu não sei como fazer isso, Lia." – sua voz tremeu um pouco e então ela continuou – "O Dario chamou a gente para ir morar com ele."

"Como é?" – exclamei, levantando do sofá. Era bem pior do que eu imaginava. Ou talvez não, mas agora era concreto, sólido, agora havia sido dito e não existia a possibilidade de desdizer, a possibilidade de desouvir aquela frase que eu preferia não ter ouvido. Já não era mais uma das minhas inúmeras divagações paranoicas, mas uma realidade despencando sobre a minha cabeça desavisada.

"Calma, eu não aceitei ainda."

"Ainda? Então pretende aceitar?"

"Eu não sei, Lia, é por isso que eu estou falando com você agora. Eu preciso saber o que você acha. É você que vai decidir comigo."

Sinuca de bico, meu pai costumava usar essa expressão. Dissesse eu que sim ou que não, o resultado seria o mesmo. Eu não queria ir. Mas dizer que não seria como atropelar os planos dela com uma escavadeira.

"Lia, mudanças nem sempre são ruins." – eu sabia que era verdade, sabia que a deslocada era eu. Sou eu que giro no sentido anti-horário. Mas não admiti.

"Mãe, o que você espera que eu faça? Dê pulos de alegria por estar sendo arrastada para uma casa de desconhecidos?"

"É claro que não." – ela se levantou e veio na minha direção. Desviei. – "Eu sei que é difícil, mas a gente precisa seguir em frente."

Revirei os olhos com impaciência. Ela me encarava, eu podia sentir, mas agora meus olhos se prendiam apenas à janela. O mar e a ventania lá fora, carros insignificantes atravessando a avenida. Penso em quantas pessoas estão morrendo agora, nesse exato minuto. Penso em quantas pessoas estão prestes a morrer e não fazem ideia. Podem fazer planos, inclusive. Podem estar pisando no acelerador pois precisam chegar rápido ao seu destino, precisam chegar a tempo daquela prova, ir a uma entrevista de emprego, embarcar em um avião. Quantas pessoas, nesse exato minuto, estão de tal forma mergulhadas na vida que não imaginam que esses são exatamente os seus últimos minutos?

Quando era mais nova, brincava com meu pai de ver qual de nós dois encontraria mais carros de uma determinada cor ao olhar pela janela. Cada um tinha de escolher uma cor, e ele sempre escolhia a cor mais improvável, como verde limão ou rosa choque, para que eu encontrasse um número maior e vencesse. Na realidade, era frequente que meu pai me permitisse vencer em todos os jogos. Na época do acidente, quando frequentei uma terapia por cerca de um ano, a psicóloga tentou levar jogos para que eu jogasse com ela, mas eu perdia o interesse quando ela ganhava e não queria mais continuar a conversa. Disse ela que eu era mesmo uma péssima perdedora. É verdade. Exceto que, depois da infância, passei a perder em jogos bem mais sérios.

Olho para o céu e lembro que um ano em Saturno equivale a quase trinta anos na Terra. Se vivêssemos em Saturno, os seis anos desde o acidente seriam reduzidos a minúsculos dois meses. Um bimestre ridiculamente pisoteado pela continuidade do incontinuável.

"Eu não vou decidir nada sem você. E, se você aceitar ir e depois não gostar, a gente volta. A hora que você me pedir, a gente volta. Isso eu te prometo."

Só quando ouvi a voz dela é que percebi a televisão ainda ligada e aquela mesma voz, como pano de fundo, ruminando informações sem que ninguém a ouvisse. Respirei longamente, tentando raciocinar da forma mais lógica possível, e engoli a ponta do iceberg que já me escalava a garganta. "Tudo bem", aceitei.

* * *

Uma semana depois, já estávamos organizando a mudança. Carregada de uma profunda sensação de vazio, empacotei todos os meus objetos e roupas e dei adeus àquele lugar que sempre fora parte integrante de mim. De fato, era onde eu havia vivido boa parte dos acontecimentos marcantes e construído a rede de memórias que me estruturava. O apartamento não seria vendido, apenas alugado, o que era algum consolo. Ainda existia, enfim, a possibilidade de retorno. Ainda que, por ora, eu estivesse me despedindo do meu pequeno apartamento familiar e migrando para a enorme e inóspita casa que nos aguardava a 1 hora de distância dali.

Já passava das duas horas da tarde quando chegamos à casa de Dario. Ele prontamente se colocou à nossa disposição. Zoey, por sua vez, apareceu de biquíni apenas para me dar um abraço de boas vindas e encharcar minha blusa e minha calça jeans. Não me importei. Na realidade, seu abraço foi o único momento em que me senti um pouco mais confortável por estar ali.

"Bem, deixa eu apresentar melhor a casa a vocês." – disse Dario quando já estávamos entrando pela porta de vidro da sala.

Primeiro, veio o andar de baixo: sala de estar, sala de jantar, uma cozinha enorme e perfeitamente branca, banheiros, jardim e quintal. Esse último era claramente o mais chamativo. Logo à frente da enorme porta de correr que dava para o exterior da casa, havia uma varanda coberta e agradável com sofás, mesas, poltronas e um balanço antigo com dois lugares. Saindo da parte coberta, os caminhos pelo gramado verde levavam a uma churrasqueira com uma retangular mesa de madeira e, ao lado, a piscina. Cristalina, enorme, convidativa.

Já o segundo e terceiro andares Dario apresentou de forma mais superficial por não haver tanto o que mostrar. O quarto de Thomas era o último do corredor. Na porta ao lado, o de Zoey e, a alguns passos de distância, o que antes era um quarto de visitas e agora seria meu. No terceiro e último andar, havia a suíte deles, um escritório e uma espécie de varanda ampla com uma vista um tanto privilegiada. Pelo que percebi, era ali que Thomas ensaiava, pois o lugar estava cheio de partituras e cadernos.

O quarto onde eu ficaria também era enorme. As minhas três malas e quatro caixas já haviam sido colocadas ao pé da cama. Perto dela uma enorme janela permitia que a luz clareasse o quarto. Havia em um outro canto uma escrivaninha de madeira e, ao lado esquerdo, um sofá avermelhado de três lugares. Entrei devagar no closet, constatando que havia espaço lá para o dobro das minhas roupas. Aliás, não demorou muito para eu concluir que aquele cômodo sozinho era provavelmente um terço do nosso antigo apartamento.

Peguei as malas com esforço e coloquei em cima do sofá. Abri a primeira e comecei a tirar as roupas dobradas de dentro dela, organizando por estação e frequência de uso. Mas antes mesmo de chegar à segunda mala, me cansei e desmontei sobre a cama. Lá fora, o sol estava ardente e iluminava o quarto inteiro. Dali, eu podia ouvir as risadas e gritos de Zoey na piscina.

Um barulho na porta me chamou a atenção. Quando me virei, vi minha mãe já vindo até a cama.

"E aí, já arrumou tudo?"

"Não, ainda não."

"Gostou do seu quarto?"

"É bastante grande."

"É, e bem bonito também. Você ainda vai gostar muito daqui, eu sei!" – falou, enquanto andava pelo cômodo.

"Como você pode saber?"

"Eu quero acreditar."

Lembrei de um dos posters que enfeitavam meu quarto no apartamento em Niterói: I want to believe, com um disco voador. A referência era a The X Files, mas agora me parecia mais fácil acreditar em todos os alienígenas possíveis do que na ideia de que eu conseguiria ser feliz ali. Não que houvesse algo de errado com a casa. Mas, mais do que nunca, eu me sentia uma intrusa, deslocada em um espaço que não era o meu habitat natural. Talvez se eu tivesse trazido os meus posters para colocar nessas paredes, o quarto não pareceria tanto com um quarto inóspito de hotel, mas grande parte estava colada com durex e rasgou quando tentei arrancar. Só me sobraram dois: uma Amélie Poulain a me lembrar que eu não tenho ossos de vidro e um Darth Vader.

"Vem, vamos descer." – disse minha mãe de repente, me puxando pela mão – "Você tem muito tempo pra fazer isso depois."

"Mas, mãe..." – questionei sendo arrastada – "Eu não tenho o que fazer lá embaixo."

"É claro que tem, ou você acha que vai poder virar uma ermitã isolada em seu quarto e nós vamos permitir?"

"Bom, eu esperava que sim."

Lá embaixo, Dario estava sentado na varanda enquanto Zoey e sua amiga – ambas ainda de biquíni – vinham pegar pedaços de bolo antes de voltar para a piscina. Eu e minha mãe sentamos em um outro sofá estampado, minhas mãos segurando o celular como segurariam um colete salva-vidas.

"E o Thomas onde está? Não o vi ainda." – ela perguntou.

"Boa pergunta" – respondeu Dario – "Ele almoçou e subiu. Deve estar dormindo..."

Ficamos conversando – ou: eles conversaram enquanto eu vagava pelo feed do Instagram e fingia estar prestando atenção na conversa – por um longo tempo enquanto comemos um bolo maravilhoso feito pela dona Nora, a moça que cozinhava ali três vezes por semana. Zoey vinha diversas vezes me chamar para ir vestir meu biquíni, mas recusei. Embora o calor estivesse forte, eu não era uma grande fã do sol ou de seus efeitos.

Perguntei a Dario se podia ir buscar um copo d'água e ele, mesmo dizendo que a casa era minha, se ofereceu de ir buscá-lo para mim.

"Não precisa" – afirmei – "É bom que eu me acostume com a cozinha, é o meu lugar preferido de qualquer casa."

Eles riram mais do que o esperado – não tanto pelo que eu havia dito, mas talvez pela felicidade em me ver um pouco mais bem humorada e demonstrando disposição em me acostumar à casa. Eu seguia com a forte sensação de deslocamento, mas preferi que ele me deixasse buscar a água por conta própria. Não gostava de depender de ninguém e, sempre que pudesse ficar um pouco sozinha, essa seria a minha escolha. Estar sozinha era a minha única forma de estar no mundo.

A cozinha era enorme e seguia a mesma lógica luminosa que o resto da casa. Entrei pensando que estava vazia até ver um movimento próximo à geladeira. Quando estava me aproximando, ouvi um barulho e Thomas surgiu de repente. Ele deu um salto ao me ver, e seu susto acabou por me assustar também.

"Desculpe, eu não sabia que vocês já tinham chegado." – ele se explicou. Estava descalço, com uma calça preta de moletom e uma blusa azul marinho. Descabelado e com cara de sono.

"Chegamos faz umas 3 horas."

Ele não pareceu muito arrependido por não ter estado presente na nossa chegada. Nem pareceu muito disposto a me dar as boas vindas. Mas perguntou se eu queria alguma coisa.

"É, eu vinha pegar um copo d'água."

"Eu pego para você." – ele ofereceu, abrindo a geladeira. Por um momento, não consegui discernir se aquilo era um gesto de gentileza ou uma forma de me fazer sentir mais uma visita e menos uma hóspede. – "Gostaram dos quartos?"

"Muito espaçosos."

"Ah é, quando você vem de um apartamento para uma casa, sempre estranha. Casas são muito mais espaçosas."

"Você já morou em apartamento?"

"Claro, quando morava com a minha mãe."

Eu me surpreendi. Não me lembrava de já ter ouvido falar sobre a mãe dele. Ou talvez já tivesse ouvido em um momento de distração, quando minha mãe e Dario ainda estavam no começo do namoro e eu não guardava as informações por não saber ainda se ele seria mais um dos caras que iam embora da nossa vida depois de um ou dois meses.

"Ele não comenta muito sobre isso, não?"

"Bem, não sei, não que eu saiba" – eu respondi – "A mãe de vocês está..."

"Em Tóquio." – ele interrompeu – "Ela conheceu um japonês e no mês seguinte o armário apareceu vazio."

"Imagino que tenha sido difícil pra ele..."

"Pra todo mundo, mas ele realmente passou um longo tempo trancado em casa. Então nós viemos pra cá e as coisas começaram a melhorar."

"É, minha mãe também teve esse fase."

"Seu pai está...?"

"Morto." – fui direta. Ele se desconcertou – "Mas já faz seis anos."

"O que não ajuda muito."

"A gente sobrevive." – respondi, embora não tivesse convicção alguma sobre a minha capacidade de sobrevivência.

Ele concordou com a cabeça, mas também não parecia muito convicto.

Eu estava terminando meu copo d'água quando Zoey entrou pela cozinha, enrolada em uma toalha, correndo em direção ao irmão. Ele a levantou, bagunçando seu cabelo e implicando com seu arco de conchas. "Desde quando você é uma sereia? Cadê a cauda da sereia?" – e fazia cócegas nas pernas dela enquanto ela ria e tentava se desvencilhar.

Quando voltamos para a varanda, Zoey convenceu o irmão a entrar na piscina. Embora tenha tentado me convencer também, eu optei por continuar como estava. Sentada, seca e acompanhada do meu celular.

O sol já estava se pondo quando todos se retiraram para tomar banho e fazer outras coisas antes do jantar. Enquanto comíamos, também não me pronunciei muito. Ainda, uma estranha no ninho. Minha mãe, por outro lado, usava seus dezenove tipos diferentes de sorriso falando com Dario. Thomas e Zoey implicavam um com o outro e riam de piadas internas que eu não entendia. E eu concluía que as batatas com bacon do meu prato eram mesmo as únicas a perceber a minha presença.


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