Early this mornin
when you knocked upon my door
Early this mornin', ooh
when you knocked upon my door
And I said, "Hello, Satan,"
I believe it's time to go.
Robert Johnson, Me And The Devil Blues
2011. São Paulo. Num bar qualquer do bairro de Pinheiros.
Na caixa de som, a música Me And The Devil Blues, de Robert Johnson, contagia o ambiente. Um homem de meia-idade afoga suas mágoas, juntando uma quantidade considerável de copos à sua frente. Bezequiel esconde a sua batina atrás da jaqueta de couro, pois seria difícil explicar para os fiéis que ele era um alcoólatra, e além desse vício, fumava um cigarro atrás do outro, chegando a consumir quatro maços de cigarros por dia. Calvo, grisalho e míope, o consumo exagerado de alimentos gordurosos o deixou obeso. Não era mais um homem atraente e era quase impossível compará-lo ao Bezequiel de vinte anos atrás.
O local não está cheio, facilitando a identificação de cada uma daquelas pobres almas. Zonzo, o padre retira uma foto do bolso — a mesma que ele venera todos os dias —, e a coloca próxima aos copos no balcão.
Asmodeus, regojizava-se encostado no batente da porta da entrada, observando a cena degradante. Bezequiel era o único daqueles homens no bar que sabia que o demônio estava ali, mas não se importava, pelo menos naquele momento. Pediu mais um copo de cachaça, e enquanto bebia o líquido ardente num único gole, percebeu que alguém estava ao seu lado. E mesmo apresentando sinais de embriaguez, largou o copo instantaneamente, deixando-o espatifar-se no chão, em seguida agarrou o colarinho da camisa do rapaz que logo se identificou. Era Allan, que também tinha resolvido afogar suas mágoas.
— Calma, padre, sou eu, Allan, está lembrado?
— Allan...? Sim, sim, estou lembrado, o cara cheio de problemas, como eu. Senta aí.
Allan obedece o padre, e entende que até eles possuem problemas, pois não passam de pessoas comuns, assim como ele. E para puxar conversa, pega a foto que está em cima do balcão.
— Estranho, parece que já vi este rapaz em algum lugar. Esta foto é sua?
Bezequiel eleva o tom de voz, puxa a foto das mãos de Allan e acaba se descontrolando.
— Sim, é minha. Está vendo este rapaz? Está vendo? Ele é uma das principais causas das minhas bebedeiras... Fruto do meu fruto. E eu nem devia estar aqui conversando isso com você, mas hoje, nesta noite, somos amigos, companheiros de bebedeira, não é verdade? Vou abrir o meu coração pra você...
— Calma, padre, fale mais baixo, pois logo o dono do bar nos expulsará daqui — pede Allan com delicadeza, enquanto apoia a mão no ombro do padre.
— Veja, o demônio continua ali, sorrindo. Eu nunca deveria ter libertado este maldito do inferno. Ele tirou tudo o que eu tinha, até a minha sensibilidade com a vida humana. Está vendo? Está vendo ele ali na entrada? — Bezequiel atira um copo e acerta o batente da porta.
— Não, padre, não vejo nada — naquela noite, Allan resolve não beber. Retira o dinheiro do bolso, paga a conta do padre e pede para ele o acompanhar, antes de ser expulso do bar.
Os dois caminham vagarosamente pelas ruas de Pinheiros e voltam a conversar:
— Padre, desde que vi aquela foto, não parei de pensar de onde conhecia aquele rapaz e acabei por lembrar: eu o vi certa noite numa academia de boxe que fica ali na rua de cima. Afinal, quem é ele?
— Ele era o meu filho — responde o padre sem hesitar.
— Como assim, era o seu filho?
— "Era", porque ele suicidou-se. Há vinte anos, engravidei uma menor de idade no Piauí, e depois de uma confusão, ela nos abandonou, e sem saber o que fazer sozinho com uma criança, além de dar explicações para os meus superiores da Santa Igreja, resolvi abandoná-lo... Eu sou o pior dos pecadores. Abandonei meu próprio filho quando ainda era um bebê e não tive tempo para ajudá-lo quando mais precisava. Sou o único culpado do seu suicídio.
— Não fale isso, padre, você não pode ter sido o culpado desta tragédia.
— Você diz isso porque não me conhece. Tornei-me uma pessoa fria e na época que libertei o demônio do inferno, ele enfeitiçou-me de tal maneira que acabei perdendo toda a sensibilidade pelo ser humano. Fui contra a ideologia da Igreja, profanei túmulos para alcançar o sucesso. Libertei um dos cinco príncipes do inferno. Pequei inúmeras vezes e até cheguei a matar... — o padre engasga, põe a mão no peito e acaba sentando num banco de um ponto de ônibus.
— Não fique assim e pare de falar essas coisas. Você encheu a cara e vai acabar tendo um enfarte. Vamos, eu lhe ajudo. Venha para a minha casa, lá você poderá tomar um café forte, banhar-se e descansar até amanhã.
Duas figuras cambaleantes caminham na noite paulistana: o jovem franzino que se esforça para aguentar o peso exorbitante do seu colega bêbado que luta em dar um passo seguido do outro.
E com muito sacrifício, cumprem o seu trajeto.
Manhã. Casa de Allan.
Bezequiel acorda com enxaqueca e fica perdido por alguns minutos imaginando como fora parar naquela casa, mesmo assim, puxa um isqueiro e um cigarro do bolso interno da batina, acende e traga profundamente, para logo em seguida, soltar anéis de fumaça. Incomodado, Allan acorda, se levanta e ainda sonolento, explica o ocorrido da noite anterior. Ambos resolvem tomar café, e aos poucos, o padre se recorda das revelações comprometedoras das quais disse na noite anterior. E mesmo envergonhado, não retira uma palavra do que dissera, e agora foi a sua vez de ouvir os problemas e as lamentações do jovem, algo que já sabia por partes nas suas confissões.
A conversa perdurou por mais de duas horas, até Bezequiel precisar sair para resolver assuntos pessoais e, no portão da casa, o padre leva um choque ao ver um altar vazio ao lado da porta de entrada e a cor desbotada das paredes que em outrora foram amarelas.
— Vocês tinham a imagem de algum santo neste altar? — pergunta o padre espantado.
— Sim, tínhamos Nossa Senhora Aparecida, mas joguei fora todas as imagens de santos da casa. Sabe como é, deixei de acreditar nessas coisas já faz muito tempo. Mas, por que pergunta?
— Em que ano você nasceu mesmo?
— No final de mil novecentos e noventa e dois. Mas, afinal, o que está acontecendo?
— Não sei, não sei, tenho que pensar... Os seus pais foram os únicos donos desta casa?
— Não, a casa é alugada e isso já faz vários anos.
— Bom, depois a gente conversa, tenho que ir para resolver um assunto muito importante.
Sem dar mais explicações, Bezequiel sai às pressas, mas para outro destino, a academia Heróis do Ring. Lá, facilmente subornando um dos funcionários, ele procura pelos dados pessoais de Anderson, pois o que soube nas suas confissões, foi muito vago. Sabia que Anderson tinha morado na mesma casa onde ele abandonou o bebê, mas segundo os registros encontrados, ele nascera em 1988 e morou naquela casa até novembro de 1991, se mudando com a sua família para uma travessa da Rua Cardeal Arcoverde, descartando todas as possibilidades de ser o seu filho. E nas conversas anteriores com Allan, descobriu que o seu irmão tinha dezessete anos. A única possibilidade que sobrou era o próprio Allan, pois segundo ele, nascera em 1992. Era certamente o seu filho, e por algum motivo, os seus pais nunca disseram que ele fora encontrado na porta de sua casa.
As coisas mudaram, e Bezequiel começou a enxergar uma luz no fim do túnel. O seu filho estava vivo, surgindo novas esperanças em tentar consertar o passado. Mas existia um grande obstáculo, Asmodeus, que tramou tudo isso, pois sendo um ser provavelmente onisciente, seria impossível não saber que Anderson não era o seu filho.
Bezequiel sabe que precisa colocar as coisas nos eixos, custe o que custar. O seu próximo destino é a sua sala secreta na igreja. Ele precisa verificar algo importante no livro de Cipriano: como quebrar o pacto com o demônio e mandá-lo de volta para o inferno. Algo que ele já sabia, pois já tinha lido sobre isso, mas precisava certificar-se para nada dar errado.