Garanto que naquele momento senti que ela poderia me ver, mas não era apenas eu quem a olhava, Demon estava nos observando a uma distância considerável, o que para ele não seria problema algum se desejasse se aproximar ou até mesmo saber quais eram meus pensamentos, estremeci naquele instante, lembrei-me de que havia tocado Chloe e isso foi à primeira regra que quebrei em menos de um mês.
A movimentação no local do acidente ainda estava crescente, os curiosos cercaram o local e algumas pessoas vestidas de branco corriam empurrando macas e bolsas de primeiros socorros, o mais estranho era que eu não conseguia enxergar as sombras de todos os mortos, alguns Stray ziguezagueavam entre os seus antigos corpos e tentavam tocar os viventes, o que não era possível sem um treinamento de Abidiel. Só agora me dei conta de que ainda não havia passado por esse treinamento e que Abidiel não havia mencionada nada a respeito, mas como consegui tocá-la?
- Você é bem mais habilidoso que eu imaginava garoto. – disse Demon se aproximando sem tirar os olhos de Chloe.
- Não foi nada, apenas...
- Não seja idiota Hórion, você a tocou.
- Ela iria ser atropelada, não poderia deixar que isso acontecesse.
- Este é o ciclo da vida, nascemos, vivemos, reproduzimos e morremos. Você não poderia interferir nisso.
- Mas aquele anjo caído tentou mata-la, não era um ciclo normal.
- Ela teria cumprido seu propósito.
Tentei pensar em outra coisa, Demon não poderia saber sobre a primeira regra que quebrei e claro que foi sem sucesso, eu já podia esperar pela bronca que viria em seguida, afinal eu era um demônio e havia tocado em uma vivente, ela tinha a alma mais pura entre os mortais e isso com certeza era um problema grave.
- Não podia tocá-la e você sabia disso. – disse Demon
- Eu não pensei direito, foi por impulso.
- Agora teremos um grande problema com Pacem, vamos embora antes que as coisas fiquem ainda pior.
- Quem é Pacem? O que poderia ser pior do que ser um demônio?
- Ser desintegrado pelos light Angel.
- Mas...
- Não fuja do que você é isso apenas te deixa fraco.
Olhei para o terraço e ela não estava mais lá, tentei disfarçar minha curiosidade de saber para onde ela iria, gostaria de poder olha-la mais uma vez antes de voltar, olhei para o amontoado de ferro retorcido da antiga cafeteria e um jovem robusto com músculos bem definidos estava flutuando e controlando os Stray, suas asas se estendia em uns bons quatro metros de uma ponta a outra, a cor não era negra, parecia um bronze e conforme o sol o atingia deixa a cor mais escura, sinceramente ele tinha muita habilidade para lidar com aquelas névoas.
- Aquele é Kesabel, um dos melhores guerreiros que tenho.
Aquele anjo de asas bronze usava duas espadas, uma em cada mão, não pude vê-lo usar, mas podia garantir que ele saberia utilizá-la se fosse preciso, todos os Stray estavam sendo levados para o reino e seriam treinados por Abidiel ou por Kesabel. Vou usar espadas também?
- Abidiel está treinando você, ele não usa espadas.
- Mas pensei que ele seria parte do meu treinamento também.
- Vamos conversar enquanto retornamos, mas uma coisa, você está proibido de ver aquela jovem.
Aquelas palavras rasgaram meus tímpanos, ele não poderia me proibir de vê-la, aquilo já era demais pra mim. Eu deveria falar que não iria obedece-lo, afinal o que seria uma regra a mais que deixaria de cumprir.
- Se quebrar mais alguma regra terei que destruí-lo, falo sério quanto a isso.
- Tem sempre que ler minha mente?
- Não é escolha minha, pensa que gosto de ouvir esses murmúrios em meus ouvidos?
Sabia que aquela pergunta era retórica, deixamos aquele lugar nas mãos de seu melhor guerreiro. Abidiel estava debruçado em um livro espesso com uma linguagem que eu não entendia, mas as folhas estavam amareladas pelo tempo, certamente ele seria muito antigo e teria coisas interessantes, pois ele nem percebeu quando entrei enfurecido por ter que obedecer meu pai, aquilo suava estranho, em toda minha vida pensei em procura-lo e agora desejaria não ter conhecido.
- Vejo que seu pai não está contente com sua fuga, ela gostaria de vê-lo lutando e destruindo aquele anjo caído. – disse Abidiel sem levantar os olhos do livro.
- Mas você não me ensinou como mata-lo, quase fui destruído...
- Você não seria destruído e...
- Como podia ter certeza?
- Eu não tinha, mas agora posso entender o quão diferente você é.
- Diferente?
- Você é uma espécie de autodidata infernal, a cada dia você se desenvolve sem necessidade de treinamento, percebi o quanto evoluiu essas duas semanas.
- Demon me proibiu de sair deste lugar, disse que sairei quando estiver pronto para estar ao seu lado.
- O que ele disse quando você tocou aquela jovem?
Não tinha como ele saber sobre Chloe, não seria possível que Abidiel também estaria lendo minha mente, ele já não folheava o livro e agora estava me encarado, minhas asas pareciam ter aumentado de tamanho e agora arrastava suas pontas pelo piso de madeira.
- O que ele disse? - agora sua voz estava áspera.
- O que importa?
- Apenas me diga, por favor.
- Apenas para não voltar à cidade. – respondo sem encara-lo.
- Sei que não irá cumprir as ordens de seu pai, mas será melhor para Chloe que você fique longe dela.
Eu não disse o nome dela, como era possível ele saber? Procurei não encará-lo para não me entregar, o que aquela jovem de sorriso estonteante e olhos safiras tinha de especial que eu não poderia vê-la novamente, essa proibição apenas aguçou ainda mais minha vontade de ver aqueles olhos novamente.
O lado bom da eternidade é que não precisamos nos preocupar com o tempo, mas eu me sentia um pouco incomodado com tudo isso, me tornar o senhor das trevas ao lado de Demon não seria nada fácil, Chloe ainda estava em minha mente e a cada segundo que eu tentava eliminar esses pensamentos, outros com mais intensidade se apossava de mim, Abidiel era muito astuto e sabia o quanto eu gostava de quebrar as regras.
- Prometa que não irá se aproximar dela. – pediu Abidiel.
- Sabe que não farei isto, não sabe?
- Você precisa se afastar dela. – vociferou Abidiel.
- Então me dê uma explicação lógica, pois ao que parece você e Demon gostam de entrar em minha mente.
- Seu irmão foi dizimado por não obedecer às regras, você pretende ter o mesmo fim?
- Essa explicação não me fará ficar sem vê-la. Sei que não posso tocá-la, mas tive que salvá-la.
- Salvou?
- Sim, ela estava prestes a ser atropelada por aquele caminhão.
- Não seja tolo Hórion, você lembra de todo o nosso treinamento? Lembra sobre o que disse? Antes de se tornar o senhor das trevas você era apenas um Stray. Você pode ter evoluído rápido demais, porem, as regras continuam as mesmas. O que acontece quando um anjo caído ou um Stray toca um vivente?
- Eles...
Tento me recordar das funções de cada um, mas sou interrompido por meu pai, ainda estou me acostumando chama-lo como tal, minha mãe parece se esquecer de que eu existo e quase não vem me ver, mesmo estando em locais comuns ela quase não me olha e isso me deixa triste, pois gostaria de receber um abraço ou qualquer outro tipo de afeto.
As palavras de meu pai soaram ásperas, me virei para encará-lo e saber o motivo de sua rispidez.
- Abidiel, saia. – disse Demon.
O velho Abidiel nem chegou a questionar, apenas fechou o livro e deixou a sala que pareceu mais tenebrosa com a presença de Demon.
- Não quero que fique dando ouvidos a este velho, apenas treine e o deixe com suas fantasias. – disse meu pai.
- Se não gosta dele, não seria mais fácil deixa-lo ir? – digo sem olhá-lo.
- Ele é bom no que faz, afinal por minhas razões não posso deixa-lo ir ou mata-lo. Você sabe que não poderia tocar aquela jovem, não sabe?
- Sim e você já me castigou por isso.
- Acho bom que você obedeça. Afinal isso que você acha que esta sentindo é apenas uma ilusão, não existe esse sentimento que os humanos imaginam, apenas são implantados para que se tenha uma melhor convivência.
- Pare de ler minha mente, não tem esse direito.
- Eu posso fazer o que eu quiser e você também faz o que eu quiser, não crie expectativas com aquela garota, você nunca poderá tê-la.
Saio voando literalmente daquela sala, não deixo terminar a conversa que pretendia comigo, um sentimento de raiva e ódio se apodera de mim, o grande salão de ouro se abre a minha frente e vejo Abidiel me acompanhar com os olhos, alguns Stray estão vagueando de um lado para o outro sem um rumo certo, minha ira faz meus braços queimarem e sem pensar começo a destruir todos que estão a minha volta, aplico todos os golpes que Abidiel me ensinou durante todo o meu treinamento, eu estava descontrolado, meu olhos queimavam e meu corpo estava mais rígido que antes, nenhum deles eram capazes de tocar em mim, eu não precisaria de ninguém para mandar em mim e nem de um pai para me dar ordens.
Ganhei velocidade subindo pelo fosso que me dava à liberdade necessária, o ar hipoteticamente preencheu meus pulmões e agora eu havia quebrado mais uma regra. O que eu iria fazer? Algo dentro de mim dizia que precisava me livrar de Demon, Abidiel e até de minha mãe, aquele lugar não era nada o que eu esperava e também jamais seria um senhor das trevas.
Um borrão passou a poucos metros de mim, me virei tentando identificar o que estava me seguindo, algumas névoas disformes estava me cercando, eu estava no centro da circunferência e o raio que nos separava não passava de dois metros, os olhos avermelhados em meio aquela névoa indicava que não eram Stray e sim demônios servos de Demon.
- Você precisa voltar. – disse Kesabel.
Aquele era o melhor guerreiro de Demon, certamente seria o mais difícil de derrotá-lo, no entanto, eu não voltaria para aquele lugar e me rastejar por migalhas de considerações, todos os demônios estavam inquietos esperando o comando de seu líder, eu não estava disposto a recuar e lutaria o quanto fosse possível, se destruí um anjo caído é possível que eu consiga lidar com esses demônios, me preocuparia com Kesabel depois.
Fiz o movimento de rotação certificando o ponto fraco daquela circunferência demoníaca, pareciam harmônicos e impenetráveis. Um dos demônios fez a primeira investida, tive que me esquivar para não ser atingido, seu movimento era mais rápido e preciso em relação aos Stray, deixei a gravidade me sugar para me livras dos ataques.
Naquela altura eu tinha uma visão ampla de todos eles, em uma contagem rápida eram dez que agora vinham em minha direção, minhas mãos se apresentaram mais hábeis e um a um foram desaparecendo, os meus golpes dizimavam qualquer demônio que tentava me atingir, dois agarram minhas asas e o peso me fez tombar em pleno voo, meu corpo estava mais quente que o normal e minhas asas se esticaram em uma curvatura que os demônios se afastaram subitamente e logo em seguida não estava mais nesta existência.
- Abidiel tem feito um ótimo trabalho. – disse Kesabel.
Eu sabia que agora eu teria que enfrenta-lo, não nego que fiquei apreensivo, afinal eu poderia deixar de existir se ele usasse aquelas espadas. Eu não voltarei, eu disse com firmeza.
- Você não terá escolhas, Demon pediu para leva-lo e é isso que vou fazer. Eu subestimei você Hórion, mas você nunca irá me vencer, então volte e garanto a você um treinamento decente.
- Obrigado, estou feliz com o treinamento de Abidiel. – digo olhando fixamente para ele.
- Não precisa ser assim, até admiro sua valentia, mas isso irá destruí-lo.
Eu não estava disposto a me entregar, cerrei o punho na espera de sua investida, mas a voz de Abidiel rasgou o ar e até Kesabel desviou seu olhar, talvez esse fosse o momento perfeito para atacar.
- Hórion, preciso falar com você agora. – gritou Abidiel
- Vá, eu espero caso queira continuar. – disse Kesabel com meio sorriso.
Não sei o que teria acontecido paraque Abidiel tivesse a necessidade de falar comigo, mas vi em seus olhos que nãoera nada animador, suas mãos estavam inquietas e se esfregavam uma na outra,sua feição era de tristeza e medo.rO