O Mayombe tinha aceitado os golpes dos machados, que nele abriram uma clareira. Clareira invisível do alto, dos aviões que esquadrinhavam a mata, tentando localizar nela a presença dos guerrilheiros. As casas tinham sido levantadas nessa clareira e as árvores, alegremente, formaram uma abóbada de ramos e folhas para as encobrir. Os paus serviram para as paredes. O capim do tecto foi transportado de longe, de perto do Lombe. Um montículo foi lateralmente escavado e tornou-se forno para o pão. Os paus mortos das paredes criaram raízes e agarraram-se à terra e as cabanas tornaram-se fortalezas. E os homens, vestidos de verde, tornaram-se verdes como as folhas e castanhos como os troncos colossais. A folhagem da abóbada não deixava penetrar o Sol e o capim não cresceu em baixo, no terreiro limpo que ligava as casas. Ligava, não: separava com amarelo, pois a ligação era feita pelo verde.
Assim foi parida pelo Mayombe a base guerrilheira.
A comida faltava e a mata criou as «comunas», frutos secos, grandes amêndoas, cujo caroço era partido à faca e se comia natural ou assado. As «comunas» eram alimentícias, tinham óleo e proteínas, davam energia, por isso se chamavam «comunas». E o sítio onde os frutos eram armazenados e assados recebeu o nome de «Casa do Partido». O «comunismo» fez engordar os homens, fê-los restabelecer dos sete dias de marchas forçadas e de emoções. O Mayombe tinha criado o fruto, mas não se dignou mostrá-lo aos homens: en carregou os gorilas de o fazer, que deixaram os caroços partidos perto da Base, misturados com as suas pegadas. E os guerrilheiros perceberam então que o deus-Mayombe lhes indicava assim que ali estava o seu tributo à coragem dos que o desafiavam: Zeus vergado a Prometeu, Zeus preocupado com a salvaguarda de Prometeu, arrependido de o ter agrilhoado, enviando agora a águia, não para lhe furar o fígado, mas para o socorrer. (Terá sido Zeus que agrilhoou Prometeu, ou o contrário?) A mata criou cordas nos pés dos homens, criou cobras à frente dos homens, a mata gerou montanhas intransponíveis, feras, aguaceiros, rios caudalosos, lama, escuridão, Medo. A mata abriu valas camufladas de folhas sob os pés dos homens, barulhos imensos no silêncio da noite, derrubou árvores sobre os homens. E os homens avançaram. E os homens tornaram-se verdes, e dos seus braços folhas brotaram, e flores, e a mata curvou-se em abóbada, e a mata estendeu-lhes a sombra protectora, e os frutos. Zeus ajoelhado diante de Prometeu. E Prometeu dava impunemente o fogo aos homens, e a inteligência. E os homens compreendiam que Zeus, afinal, não era invencível, que Zeus se vergava à coragem, graças a Prometeu que lhes dá a inteligência e a força de se afirmarem homens em oposição aos deuses. Tal é o atributo do herói, o de levar os homens a desafiarem os deuses.
Assim é Ogun, o Prometeu africano.
Três dias depois da missão, chegou à Base um grupo de oito guerrilheiros. Todos jovens, as idades variavam entre os dezassete e os vinte anos. Tinham atravessado há pouco clandestinamente o rio Congo, de Kinshasa para Brazzaville, e recebido um treino militar de um mês.
– É pouco – disse Sem Medo. – E este aqui é novo de mais, devia ficar a estudar ainda. É mesmo um miúdo! Precisamos de guerrilheiros, mandam-nos miúdos sem treino. Só servem para fazer guarda.
– Formam-se aqui – disse o Comissário.
– E entretanto? Vão causar-nos problemas. Quer-se engrossar o efectivo à toa, não se olha à qualidade. Há outros no exterior, com suficiente experiência, mas como são primos de tal ou tal responsável, não podem vir para a guerrilha. Os que não têm primos é que aguentam... Mundo Novo esboçou um sorriso trocista e disse, piscando o olho ao Comissário:
– Mas, camarada Comandante, este mais miúdo é da família do camarada André. É mesmo
da família dele, parece.
Eu sei – disse Sem Medo. – Mas é um primo em desgraça, pois o pai dele partiu a cara ao
André em Kinshasa, em 1963, quando estavam na UPA... História de medicamentos que
desapareceram. Desses assuntos entre kikongos estou bem informado, porque também
pertenço à família...
Encontravam-se na casa do Comando, lugar de reunião à tardinha, antes de ouvirem a
emissão de rádio do MPLA. O jovem aspirante a guerrilheiro, acabado de chegar, encostava-se
timidamente num canto. Percebia mal o português, falava era kikongo e francês, e a
personalidade do Comandante intimidava-o: eram vagamente parentes e tinha ouvido falar
muito dele; agora, estava pela primeira vez na sua presença. A barba farta e a cabeleira
descuidada do Comandante, a sua cabeça grande, o tronco forte, a voz firme, o olhar agudo,
tudo nele concorria para o intimidar. Sem Medo virou-se para ele.
– Qual é o teu nome de guerra?
– Não tenho.
– Bom. Temos de lhe arranjar um nome. Que propõem, camaradas?
Os guerrilheiros estudavam o rapaz.
Este baixou os olhos.
– Onhoká, a cobra – propôs Ekuikui.
– Deixa lá o teu umbundo – cortou Sem Medo. – Ou lhe dás um nome na língua dele, ou em
português, que é de todos. Mas não na tua... Aí começa o imperialismo umbundo! Aliás, não
me dá ideia nenhuma duma cobra.
O baptismo dum guerrilheiro era sempre um tema de fartas discussões. As propostas saíam
de todos os lados. Os guerrilheiros obrigaram-no a pôr-se no meio da casa, para lhe estudarem
as características e encontrarem o nome conveniente. As gargalhadas misturavam-se às
palavras. Cada um contava uma história que conhecesse sobre ele, até que uma ideia clara se
formasse sobre o novo recruta. Os outros sete recém-chegados esperavam a sua vez. Milagre
propôs «Avança» e logo Muatiânvua disse que não podia, ele tinha era cara de quem recua.
Entre risos e piadas, lá ficaram de acordo com uma característica: a timidez. Finalmente
foram unânimes na alcunha de Vewê, o cágado1 .
– Bem, Vewê, és dos nossos – disse Sem Medo. – Espero que não nos dês muito trabalho,
sobretudo aqui ao Comissário. A lavar-te as fraldas...
– Es duro para ele – segredou-lhe o Comissário.
– É para ele não pensar que o facto de ser meu parente lhe dá privilégios. O que não quer
forçosamente dizer que vou ser uma má galinha para este pintainho...
Baptizaram os outros recém-vindos e ouviram a emissão. Quando na casa de Comando só
ficaram os responsáveis, Sem Medo disse:
– Mandam-nos mais bocas e não mandam comida. Comissário, tens de ir lá fora arranjar
comida. Se um de nós não vai, bem podemos morrer de fome, que os civis do exterior não sepreocuparão. É assim esta guerra!
O Chefe de Operações ficou contrariado, pois queria ir a Dolisie passar uns dias com a
mulher. Lançou apenas um olhar carregado ao Comissário.
– Devias ir tu, Comandante – disse o Comissário. – Há três meses que não sais daqui. Desde
que a Base está no interior... Uma semana lá fora fazia-te bem.
– Acho-te uma piada! Estás ansioso por ir lá por razões que todos conhecemos... Sabes muito
bem que os civis me põem fora de mim, que não suporto estar em Dolisie. E tens a lata de
dizer que é a mim que uma semana lá fora faria bem! Para já, se eu fosse, iria partir a cara aomeu primo André, que nos manda estes caga-fraldas e não a comida. É melhor pois ires tu, que
respeitas o André, como teu responsável...
– Questão de disciplina!
– Ficam-te bem esses sentimentos! Por isso a minha escolha é justa.
– Mas talvez o Das Operações quisesse ir – propôs o Comissário.
O Chefe de Operações encolheu os ombros, embora ansioso pela resposta de Sem Medo.
Esta foi uma chicotada que soou na mata:
– Pás question! Quem for, tem de levar o Ingratidão para a prisão. O Das Operações era
capaz de o deixar fugir, só porque é parente dele.
O Das Operações encolheu-se ao som da chicotada. Sorriu com meia boca, esgar que lhe
ficou colado aos lábios.
– Mas, camarada Comandante, está a brincar... Eu...
– Brincar? Nunca falei tão a sério. Pensas que não conheço a minha gente?
O Comissário exultou com a resposta. O Das Operações não ousava reagir à alusão, era um
tapete que se metia debaixo dos pés do Comandante. O fel deve estar a sufocá-lo, mas
continua numa atitude servil de cão batido. O Comissário, momentos depois, censurou-se por
se congratular com o que se passava: para se absolver, acabou com a discussão
apressadamente.
– Bem, eu vou então... O que não me desagrada, aliás. Só há aqui comida para três dias,
desde que arranje alguma coisa, forço o André a enviar um grupo de reabastecimento. Parto
amanhã, então. Que outros assuntos há a resolver lá? O nosso efectivo agora é de trinta
guerrilheiros, tem de se prever um maior orçamento mensal. Tem de se arranjar um novo
enfermeiro, para substituir por uns dias o Pangu-A-Kitina, que deve ir a Ponta Negra tratar da
vista...
– De acordo, de acordo – cortou Sem Medo. – Não metralhes mais, pareces uma mulher queconheci que disparava duzentas palavras por minuto. És um Jesus Cristo, tu e o teu conceito da
honra: não queres que Judas seja castigado à tua frente, embora sabendo que ele te denunciou
com o seu beijo. Não vale a pena, não insisto mais.
O Chefe de Operações não compreendeu, mas o Comissário percebeu: Sem Medo tinha-lhe
lido integralmente o pensamento e, magnânimo, não lhe queria ferir mais os escrúpulos.
O Comissário olhou Sem Medo com espanto, como quem olha um feiticeiro, e o
Comandante sorriu:
– Não é por acaso que tenho 35 anos, miúdo!
O Comissário partiu de manhã com um pequeno grupo, do qual fazia parte Ingratidão do
Tuga. Depois da partida do grupo, a maior parte dos guerrilheiros foi ocupar a sala que se
encontrava no centro da Base e que servia de escola. Três combatentes saíram em patrulha,
outros ocupavam-se da cozinha, alguns não faziam nada, arranjando pretextos para não
estudarem.
O Comandante dirigiu-se com o grupo de novos recrutas para uma clareira, obrigando-os a
fazerem exercícios e explicando-lhes os rudimentos da guerrilha. O Chefe de Operações foi
caçar com uma 22 longo. Mundo Novo, que tinha estudado na Europa, por vezes ajudava
Teoria. Mas nesse dia estava livre, por isso acompanhou o grupo de novatos. Deitado no
capim, onde o raro sol do Mayombe batia durante duas horas, ouvia distraidamente as
explicações de Sem Medo, enquanto limpava a arma.
Lutamos já passara uma vez em direcção ao rio e regressara para a Base. Voltou a passar
para o rio, observou um pouco o grupo, e acabou por sentar-se ao lado de Mundo Novo.
– Vai para a escola!
– Oh! Tenho trabalho – disse Lutamos.
– Que tens a fazer?
– Lavar roupa...
Mundo Novo sorriu. Lutamos era habitual nas fugas à escola, especialmente quando o
Comissário não estava presente. Já tinha sido castigado por não estudar, mas não se
modificava.
– Tens de te convencer que precisas de estudar. Como serás útil depois da luta? Mal sabes
ler... onde vais trabalhar?
– Fico no exército – disse Lutamos.
– E julgas que para ficar no exército não tens de estudar? Como vais aprender artilharia ou
táctica militar ou blindados? Precisas de Matemática, de Física...
– Ora! Eu não quero ser oficial.
– E quem vai ser oficial, então? Esses que se formam no exército tuga, sem formaçãopolítica, que um dia tentarão dar um golpe de Estado? É isso que queres? Que depois da
independência haja golpes de Estado todos os anos, como nos outros países africanos?
Precisamos de ter um exército bem politizado, com quadros saídos da luta de libertação. Como
vamos fazer, se os guerrilheiros não querem estudar para serem quadros?
Lutamos encolheu os ombros. Contemplou o grupo de jovens que cambalhotavam por terra,
suando, o suor agarrado à lama do Mayombe, e o Comandante, de tronco nu, cambalhotando
também, levantando-se para em seguida rolar pelo solo, misturando explicações a
encorajamentos e gritos.
– Camarada Mundo Novo, há muitos que estudam. Não é um que não quer estudar que vai
estragar tudo. Eu nasci na mata, gosto é de caçar, de andar de um lado para o outro, fazer a
guerra. Mas não gosto nada estudar. Já aguentei, aprendi a ler e a escrever. Sei mesmo fazer
contas de multiplicar! Para mim já chega. O Comissário mobilizou-me, o ano passado estudei
mesmo. Mas agora já chega, o Comissário já não consegue mobilizar-me mais. E o que disse é
verdade, tem razão. Mas as milícias populares vão impedir os golpes de Estado, o povo em
armas...
– E quem vai instruir o povo? Somos nós. Quem vai enquadrar as milícias? Tem de ser um
exército bem treinado. Para isso, é preciso quadros bem formados.
– E o que diz o camarada Comissário. Todos os que têm muita política na cabeça falam
assim. Mas eu não tenho política na cabeça, sou só guerrilheiro. Quando a independência vier,
se não me quiserem no exército, volto para aqui, viro caçador no Mayombe. Eu não quero ser
muita coisa. Há aí uns que querem ser directores, chefes de não sei quê, comandantes... Esses
estudam. Eu não quero ser chefe.
Mundo Novo deu por terminada a limpeza da arma. Começou a montá-la cuidadosamente.
Lutamos observava a operação, a sua pépéchá entre os joelhos.
– Há camaradas que estudam só para subirem, isso é verdade. Mas não podes dizer que são
todos. Há outros que querem verdadeiramente ser úteis, ou que querem aprender pelo prazer
de aprender.
– Tchá! – disse Lutamos. – Não acredito. Todos querem é subir ou viver melhor ou mandar.
– Nem todos, nem todos. E certo que uma pessoa que se aperfeiçoa está a pensar no seu
futuro pessoal também, está a calcular que assim poderá viver melhor. Mas há aqueles que só
pensam nisso e os outros, que pensam mais no bem do povo.
– Diz um aqui na Base, um que seja assim...
– Pode-se encontrar.
– Diz um!
– Não sei. Não os conheço bem, cheguei há pouco. Mas penso que haverá, tenho de pensar
que haverá...
Sem Medo interrompera os exercícios para um curto descanso. Tinha ouvido as últimas frases. Sentando-se perto deles, perguntou:
– Tens de pensar que haverá, Mundo Novo? Tens de pensar?
Mundo Novo cofiou a barba fina. Hesitou instantes.
– Sim, tenho de pensar.
– Como os crentes que sentem que têm de crer em deus? Porque têm medo de deixar de crer,
de perder o amparo dessa crença que lhes dá um significado à vida, não é?
– Não é bem isso.
– É quase isso. Praticamente é o mesmo. Quando alguém afirma que tem de acreditar no
desinteresse de alguns homens, porque isso corresponde à ideia que ele tem da humanidade,
mesmo que os factos mostrem o contrário, então que é isso? Tem-se uma ideia preconcebida
do género humano, uma ideia optimista. Por isso, recusa-se toda a realidade que contrarie essaideia. É o esquematismo na polí tica. É um aspecto religioso, uma concepção religiosa da
política. Infelizmente, é a maneira de pensar de muitos revolucionários.
– Mas, camarada Comandante, não achas que há camaradas que estudam desinteressadamente?
– Crês que haja alguma coisa que se faça, desinteressadamente na vida?
Lutamos pensou que encontrava apoio no Comandante. Sentiu coragem para proferir:
– É por isso que não estou de acordo com o Comissário, que nos obriga a ir à escola.
– Tu, Lutamos, és um burro! – disse Sem Medo. – Quem não quer estudar é um burro e, por isso, o Comissário tem razão. Queres continuar a ser um tapado, enganado por todos... As
pessoas devem estudar, pois é a única maneira de poderem pensar sobre tudo com a sua cabeça e não com a cabeça dos outros. O homem tem de saber muito, sempre mais e mais, para poder conquistar a sua liberdade, para saber julgar. Se não percebes as palavras que eu pronuncio, como podes saber se estou a falar bem ou não? Terás de perguntar a outro. Dependes sempre de outro, não és livre. Por isso toda a gente deve estudar, o objectivo principal duma verdadeira Revolução é fazer toda a gente estudar. Mas aqui o camarada Mundo Novo é umingénuo, pois que acredita que há quem estuda só para o bem do povo. É essa cegueira, esse idealismo, que faz cometer os maiores erros. Nada é desinteressado.
– Estás a treinar esses jovens. Que ganhas pessoalmente com isso?
Sem Medo acendeu um cigarro, estirou-se sobre o capim.
– Podia dizer-te que tenho pena deles, tão mal treinados e arriscando-se a morrer logo no
primeiro combate. Em parte, até pode ser verdade. Também poderia dizer-te que é para formarmais guerrilheiros, para a luta avançar. É exacto! Mas para que quero eu que a luta avance?
Não é mesmo para viver melhor numa Angola independente? Portanto, isto que faço tem um
fim interessado, o que é normal e humano. Poderia também dizer-te que é para dar uma
bofetada nos civis de Dolisie, que nos enviam homens sem treino suficiente. Também pode ser
verdade. Então? Diz-me lá onde está o desinteresse?
Mundo Novo pesava as palavras. Os recrutas iam-se aproximando, ao verem o Comandante
fumar. Sem Medo mandou-os continuar os exercícios e observava-os.
– Mas não acreditas, Comandante, que haverá homens totalmente desinteressados?
– Jesus Cristo?... Acho que sim, existem alguns raros. Mas não o são sempre. O Comissário,
por exemplo, é em certa medida um desinteressado. Penso que pode corresponder, nalguns
eleitos, a um período determinado. Mas é temporário. Ninguém é perpetuamente
desinteressado.
– Nem Lenine?
– Lenine! Eu não conheci Lenine, como poderei falar dele? Fala-me dos que conheço, dos
homens que conheci. Devo dizer-te que nunca vi ninguém totalmente e permanentemente
desinteressado. E não atires com os grandes homens na discussão, só para meter medo aos
outros e dar força aos teus argumentos. Isso é truque de político!
– Eu acredito que haja homens para quem só conta o bem dos outros. Che Guevara, Henda,
para só dar esses exemplos. E muitos outros, anónimos. Quem não acredita nisso não temconfiança na generosidade humana, na capacidade de sacrifício da humanidade. É pessimista...
– E, portanto, incapaz de lutar coerentemente, não é isso? – disse Sem Medo.
Mundo Novo olhou-o de frente. Baixou a cabeça, murmurou:
– É isso.
Logo os olhos de Mundo Novo se iluminaram e continuou, mais firme:
– Para se lutar duma maneira coerente, é necessário um mínimo de optimismo, de confiança
nos homens. Estou a pensar em mim e tu estás a pensar em ti, Comandante! Eu tenho
confiança. Se tu não fores optimista, não poderás combater.
– Que faço eu?
– Não nego que combates, não. Mas podes abandonar, se as dificuldades forem grandes,
podes cansar-te mais facilmente que outro que seja mais optimista. É preciso ter uma fé
profunda, para se poder suportar sempre tudo.
Acabas de chegar, de entrar na guerrilha, pensou Sem Medo. Com que direito falas como se
já tivesses aguentado inúmeras vicissitudes? Ainda nem viste a verdadeira guerra e já és capaz
de dizer que resistirás mais do que eu. Estes jovens vêm todos da Europa com a ideia que o
estudo teórico do marxismo é uma poção mágica que os fará ser perfeitos na prática. No
entanto, é um tipo que é capaz de falar de frente ao seu Comandante, o que é uma boa base
para começar; o resto virá talvez depois, com o tempo, com os pontapés que apanhar da vida.
– Penso que é como a religião – disse Sem Medo. – Há uns que necessitam dela. Há uns que
precisam crer na generosidade abstracta da humanidade abstracta, para poderem prosseguir
um caminho duro como é o caminho revolucionário. Considero que ou são fracos ou são
espíritos jovens, que ainda não viram verdadeiramente a vida. Os fracos abandonam só porque
o seu ideal cai por terra, ao verem um dirigente enganar um militante. Os outros temperam-se,
tornando-se mais relativos, menos exigentes. Ou então mantêm a fé acesa. Estes morrem
felizes embora talvez inúteis. Mas há homens que não precisam de ter uma fé para suportarem
os sacrifícios; são aqueles que, racionalmente, em perfeita independência, escolheram esse
caminho, sabendo bem que o objectivo só será atingido em metade, mas que isso já significaum progresso imenso. É evidente que estes têm também um ideal, todos o têm, mas nestes o
ideal não é abstracto nem irreal. Eu sei, por exemplo, que todos temos bem no fundo de nós
um lado egoísta que pretendemos esconder. Assim é o homem, pelo menos o homem actual.
Para que serviram séculos ou milénios de economia individual, senão para construir homens
egoístas? Negá-lo é fugir à verdade dura, mas real. Enfim, sei que o homem actual é egoísta.
Por isso, é necessário mostrar-lhe sempre que o pouco conquistado não chega e que se deve
prosseguir. Isso impedir-me-á de continuar? Porquê? Se eu sei isso, a frio, e mesmo assim me
decido a lutar, se pretendo ajudar esses pequenos egoístas contra os grandes egoístas que tudo
açambarcaram, então não vejo porquê haveria de desistir quando outros continuam. Só pararei,
e aí racionalmente, quando vir que a minha acção é inútil, que é gratuita, isto é, se a Revolução
for desviada dos seus objectivos fundamentais.
Lutamos deixara de seguir a discussão e fora-se embora, para o lado do rio. Os novos
guerrilheiros tinham parado as cambalhotas e esperavam o Comandante. Mundo Novo,
pensativo, não respondeu. Levantando-se, Sem Medo disse:
– Não estás de acordo? Não és obrigado a estar. Mas conversaremos depois, temos tempo de
sobra. Agora tenho que prestar atenção aqui aos meus pintainhos!
E misturou-se a eles, enquanto Mundo Novo perseguia teimosamente com o olhar as lianas
que subiam até às árvores, para daí voltarem a descer mais ao lado, tecendo o deus Mayombe
de uma enorme e emaranhada teia, que o manietava, dando-lhe o ser.
EU, O NARRADOR, SOU MUNDO NOVO
Recuso-me a acreditar no que diz Sem Medo. Lá está ele, ali, no meio dos jovens, rasgando-
se nas raízes da mata, rastejando, triturando os ombros contra o solo duro, putrefacto e
húmido do Mayombe, enrouquecendo com os gritos e imprecações que blasfema,
emasculando-se no sémen da floresta, no sémen gerador de gigantes, suando a lama que sai da
casca das árvores, beliscando-se nos frutos escondidos por baixo das folhas caídas, lá está
ele, ali, no meio dos jovens, ensinando o que sabe, totalmente, entregando-se aos alunos, abrindo-se como as coxas duras duma virgem, e ele, que está ali, diz que o faz
interesseiramente.
Sem Medo é um desinteressado, a terceira camisa que tinha ofereceu-a ao guia, que acabou
por fugir com ela, entregando-se aos tugas.
Se diz que é interesseiro, isso é vaidade. É vaidade de mostrar o que muitos escondem, é uma
afirmação de personalidade. Claro que é uma afirmação exagerada, extremista, defeito da sua
mentalidade pequeno-burguesa.
Como se fosse possível fazer-se uma Revolução só com homens interesseiros, egoístas! Eu não
sou egoísta, o marxismo-leninismo mostrou-me que o homem como indivíduo não é nada, só as massas constróem a História. Se fosse egoísta, agora estaria na Europa, como tantos outros,
trabalhando e ganhando bem. Porque vim lutar? Porque sou desinteressado. Os operários e os
camponeses são desinteressados, são a vanguarda do povo, vanguarda pura, que não
transporta com ela o pecado original da burguesia de que os intelectuais só muito dificilmente
se podem libertar. Eu libertei-me, graças ao marxismo.
Por isso, Sem Medo está errado. Mas como explicar-lho, como fazer-lhe compreender que a
sua atitude anarquista é prejudicial à luta? Lá está ele, e ri quando um se fere, e zanga-se
quando um hesita, e é esse sadismo maternal que os faz ultrapassarem-se, vencerem o medo e lançarem-se no espaço para agarrarem uma liana fugidia. E um sorriso de triunfo perpassa
nos olhos dele, sorriso discreto que logo é abafado pela ordem dada ao seguinte. No entanto,
com que remorsos se revolveria no leito se um recruta se ferisse gravemente! Ao vê-lo, dir-seia que não tem alma. Mas foi ele que correu a peito descoberto para salvar o Muatiânvua,
quando caíram na emboscada, e que chorou ao vê-lo ileso. Como é possível que diga que todossão egoístas? É vaidade, vaidade pequeno-burguesa, e mais nada.
Não posso acreditar, recuso-me a acreditar.
O Comissário corria de um lado para o outro, em Dolisie, à procura do responsável, André.
Este marcara-lhe encontro, na véspera à tarde, num bar, e não apareceu. Na manhã do dia
seguinte, o Comissário estava na casa de André às sete horas, mas já este se eclipsara. O
Comissário mandou Verdade ficar no bureau, à espera, e partiu, entrando nos bares, cruzando
as ruas, irrompendo pelas casas dos militantes. Nem rasto de André.
Podia ter ido ver a Ondina, desde que cheguei nem a procurei, e ando para aqui atrás dumhomem que se esconde de mim! É isto um responsável? E Ondina deve estar furiosa por eu não ter aparecido.
Voltou a passar pelo bureau às onze horas. Verdade montava a guarda.
– Não entrou nem saiu.
– Fica aqui. Vou à escola.
O Comissário partiu para a escola do Movimento, em que Ondina ensinava, a um quilómetro
da saída da cidade. Os camaradas da Base devem estar praticamente sem comida, pensou. Uma raiva surda invadia-o gradualmente.
O passeio ao Sol ardente ainda enfureceu mais. Não estava habituada ao Sol, sempre
escondido na sombra protectora do Mayombe. Ingratidão tinha ido para a cadeia, mas
precisava de informar André da decisão do Comando e combinar com ele qual o regime que Ingratidão deveria seguir. E André escondia-se...
A escola encontrava-se numa elevação, escondida por arvoredo. As várias casas de adobe espalhavam-se num raio de 50 metros, servindo de escola e hospital. Mais para cima, havia
casas de pau a pique, que eram o internato.
As crianças estavam nas aulas. Ondina também. Esperou por ela, cumprimentando as
pessoas, perguntando por André. No entanto, Ondina foi avisada que ele chegara e saiu da sala.
– Chegaste ontem, já sei.
– Sim. Mas tenho andado atrás do camarada André. Ele não aparece.
Ondina estava amuada, era evidente. Ele tentou segurar-lhe a mão, ela evitou, olhando em
volta.
– Que tem? – disse ele. – Todos sabem que somos noivos...
– É melhor não. Espera um pouco, eu vou já acabar a aula. Vens almoçar comigo?
O Comissário hesitou, desviou os olhos.
– Tenho de ver se apanho o camarada André à hora do almoço.
– Quer dizer que vais já para Dolisie? – perguntou ela, friamente.
Os camaradas tinham fome, ele viera por isso e por Ingratidão. Não viera por Ondina. A
custo respondeu:
– Tenho de seguir daqui a pouco. Não temos comida na Base...
Ondina não replicou. Virou-lhe as costas e partiu para a sala. O Comissário ficou vendo-a, o
chapéu guerrilheiro a passar duma mão para a outra, o nome dela atravessado na garganta. Foi visitar os camaradas feridos, passando tempo, passando a esponja sobre a atitude dela. Ele é que se sentia culpado. O sino finalmente tocou e Ondina saiu, rodeada pela gritaria dos pioneiros libertos. O Comissário dirigiu-se com ela para o quarto. Ondina habitava um quarto da única casa de cimento, quarto que partilhava com uma aluna mais crescida, Ivone.
– Porque não vais a Dolisie? – perguntou ela bruscamente, quando chegaram ao quarto.
– Ainda é cedo. O André só lá deve estar à uma hora.
Esperou que ela o convidasse e depois sentou-se na cama. Ondina ficou de pé, fingindo
arrumar as coisas, dominando a irritação.
– Ondina, deves compreender que vim para tratar de certos assuntos urgentes... Ontem à
noite, estive para cá vir, quando perdi as esperanças de encontrar o André... Mas era tarde... Já
sabes como as pessoas falam, preferi não vir...
– Preferiste eu sei o quê! Foste ao bar...
– Mas só lá estive meia hora...
Queria dizer que fora convidado por um camarada. Queria explicar-lhe o que significa beber
uma cerveja gelada quando se está meses e meses na mata. Queria explicar-lhe que não
prestara atenção à conversa, com vontade de vir vê-la, que ela se reflectia na espuma da
cerveja, que se não fosse a má língua... Mas nada disse, intimidado, vencido.
– Vieram-me dizer que te viram no bar – disse ela. – Não venhas com estórias que andas
atrás do André, o André não vai aos bares.
– Não vai aos bares? Passa lá a vida!
– Que é que tens contra o André? Ele não ficaria no bar se estivesse no teu caso.
– Ora, não queres compreender.
Ondina viera há um ano de Angola. Estudara uma boa parte do Liceu, mais que ele. Mesmo
depois de noivarem, isso sempre foi uma barreirra. O Comissário considerava que Ondina lhe
fizera um favor, aceitando-o, pois podia aspirar a pessoas mais cultivadas. Ele formou-a politicamente, mas nem isso o convenceu de que estavam em pé de igualdade. Se não acabasse com esses complexos, o amor deles falharia, dissera um dia Sem Medo. Mas o Comissário nunca tivera um namoro, a sua experiência era unicamente de prostitutas, a desvantagem era grande em relação a uma Ondina que já conhecera outros homens.
A primeira vez que fizeram amor foi provocada por ela, que comandou, enquanto ele se
afligia, se atemorizava, se inibia. A impressão de que o amor é melhor quando com uma
quitata custou a abandoná-lo, mesmo depois de várias experiências com Ondina. Sem Medo
tinha razão, devia ter confiança em si próprio. Mas não tinha. E sentia que Ondina não
apreciava a sua maneira de amar.
– Vou encontrá-lo agora. Logo à tarde podemos estar juntos, eu venho cá. Se se arranjar a
comida, mando um grupo lá e fico uns dias. É tudo o que posso fazer... Tivemos um combate...
A lembrança fê-la sobressaltar. Virou-se para ele e agarrou-lhe na mão.
– Ouvi falar, sim. Não foi perigoso?
– Não, correu tudo bem.
Aproximaram-se. Os olhos dela brilharam. O Comissário sentiu um calor indefinível subir-
lhe pelo corpo e toda a amargura desapareceu. Beijaram-se. Estava perdoado, pensou ele. Mas
já estava a imaginar como se desculparia em seguida para partir e o gelo que de novo se
formaria entre eles. A voz saiu triste:
– Ondina, tenho de ir.
– Vai!
Ele ficou parado, o chapéu na mão, olhando a porta e Ondina, Ondina e a porta, sem se
decidir. Os camaradas têm fome...
– Logo venho.
E saiu, um soluço galopando, a raiva toda concentrada em André, que o obrigava a correr-lhe
atrás, a viver para ele, ele, o homem que tinha o dinheiro da comida. Disparou para a cidade,
sem falar a ninguém, vingando-se nas pedras do caminho, quase voando sobre a estrada
empoeirada, sob o Sol inclemente.
André chegou pouco depois dele. Alto, magro, uma pêra fina aguçando-lhe o rosto, ar de
intelectual-aristocrata, eis André. Agarrou o Comissário pelo braço, levou-o para a varanda,
confidenciando:
– Há aí uns problemas graves com os congoleses, sabe, camarada Comissário? Por isso ando
dum lado para o outro. Mas não me esqueci de si. Ando por aí a partir cabeças, não há
dinheiro... É verdade, não há dinheiro. Mas vamos arranjar qualquer coisa esta tarde, sim,
vamos. Almoça comigo, não é?
O Comissário queria refilar, dizer que via o jipe a andar dum lado para o outro, por isso
havia dinheiro, que se morria de fome na Base, que ele lhe mentira. Mas estava habituado a
respeitar os superiores.
– Não há comida nenhuma na Base. Ontem estive à sua espera...
– Pois é esse o problema de que lhe falei. Vieram-me chamar de urgência. Mas esta tarde
vamos arranjar qualquer coisa, já poderá seguir amanhã para a Base.
– Eu queria discutir consigo outros assuntos. O do Ingratidão...
– Ah, sim, sim, está bem. O melhor é mesmo ficar uns dias em Dolisie. – Meteu a mão no
bolso e entregou-lhe uma nota de 500 francos. – Para beber uma cerveja com a camarada
Ondina. Vamos primeiro almoçar, uns congoleses ofereceram-me uma galinha.
O Comissário não quis aceitar o dinheiro, mas André insistiu. Guardou-o com a sensação de
que estava a ser comprado: era o preço da sua compreensão. Recusar, dizer as quatro verdades
a André, era o que faria Sem Medo. Ou talvez aceitasse e lhe dissesse na mesma as quatro
verdades. Mas Sem Medo era quase da idade de André, não ele.
Sentaram-se à mesa e logo apareceram mais cinco que se sentaram e mais a mulher de
André. Era fúnji com galinha, oferecida pelos congoleses, segundo dissera André. A galinha
sabia mal ao Comissário, sabia-lhe a dinheiro do Movimento. Mas comeu. A raiva estava toda
contida nele, raiva contra André mas, sobretudo, contra si próprio. Como é fácil enfrentar o
inimigo! Mil vezes mais fácil que certos problemas políticos. Embrenhado em rancores
íntimos, limitou-se a resmungar monossílabos às perguntas de André. Este desistiu de o fazer
falar.
Findo o almoço, o Comissário tentou discutir com André. Mas este despachou-o.
– Vou já tratar de arranjar comida para a Base. Há camaradas para o transporte?
– Viemos só três. Não chega.
– Bem, então vou organizar um grupo de reabastecimento. Logo que arranjar o dinheiro...
– Têm de partir esta noite – disse o Comissário.
– Sim, sim. Quando nos encontramos? Aqui, às seis horas, está bem?
– Está bem – disse o Comissário, contrariado. Mais uma vez lhe ia cortar o encontro com
Ondina.
André desapareceu e o Comissário meteu-se a caminho da escola. Cruzou-se com Verdade,
que acompanhava uma mulher.
– Prepara-te para partir esta noite. Vai um grupo de reabastecimento.
– Mas, camarada Comissário, eu tenho um problema...
– Partes esta noite! Prepara-te!
Verdade calou-se e continuou o caminho. Vai furioso, pensou o Comissário. O seu problema
é aquela mulher, com quem queria passar a noite, é evidente. Mas ainda tem tempo, a partida é sempre de madrugada. Com que direito fico eu aqui mais uns dias e mando o Verdade para a
Base? Mando-o, porque lá há pouco efectivo, porque veio para uma missão que já cumpriu.
Por isso, não tem razão de ficar. E eu? Porque fico eu? Esta noite posso perfeitamente
combinar com o André o que fazer sobre o Ingratidão. Não tenho outra razão senão Ondina.
Que direito tenho de mandar o Verdade para a Base, se, pela mesma razão, eu não vou?
A dúvida foi aumentando à medida que se aproximava da escola. Os responsáveis formavam
uma casta que se arrogava todos os privilégios, diziam os militantes. E era verdade. Era
verdade, ele ali estava a prová-lo. A decisão já estava tomada ao chegar à escola.
Ondina recebeu-o a princípio com hostilidade. Mas Ivone depois saiu do quarto e ela
enterneceu-se. Saíram abraçados e foram-se meter pelo capim, o mais longe possível da
escola. Pararam em baixo duma mangueira majestosa, à sombra da qual se sentaram.
Fizeram amor uma, duas vezes, ele sempre desajeitadamente. O Comissário convencia-se
que ela não tinha prazer e perdia-se em divagações, auscultando as reacções dela, sem se
entregar realmente, e sem gozar. Ela sentia-se espiada e deixava de gozar: o orgasmo era um
resultado mecânico dum acto maquinal. Mentiam-se depois um ao outro, dizendo terem tido
um vivo prazer. Cada um sabendo que o outro mentia. Ondina não ousava falar desse
problema, pois o noivo ficaria chocado: ele não permitia que se formasse a verdadeira
intimidade dos amantes que podem falar naturalmente, sem preconceitos. Eram noivos, não
amantes. E ela pressentia ser necessária uma explicação. Resolvera optar pela prática: com o
tempo ele acabaria por se descontrair e se entregar. Mas o tempo parecia ser incompetente
para resolver a questão, pois era raro verem-se; encontravam-se por dois ou três dias, de dois
em dois meses, ou mais. Só com o casamento. Ondina sabia, no entanto, que o casamento não
provocaria uma mudança da vida, porque ele continuaria na Base e ela na escola. Recusava-se
a aceitar que estavam no impasse.
No fundo de si mesma, Ondina tinha saudades doutras experiências, em que encontrara mais
prazer. Com ele seria sempre assim? Era quando se afastavam que ela realmente sentia um
desejo intenso que ficara insatisfeito. Ondina recusava-se a aceitar de face esta realidade. Por
isso enveredava as suas relações para o lado intelectual.
– O que há com o André? Parece que não gostas dele.
– É um sabotador! Na Base há fome, mandou para lá uns guerrilheiros novos, praticamente
sem treino, e não mandou comida. Eu venho resolver o problema e ele prega-me fintas. Marca
encontros em que não aparece, depois diz que não há dinheiro e que vai pedir empréstimos.
Mas passou-me 500 francos, sem eu pedir, e o jipe anda dum lado para o outro a gastar
gasolina...
– Vocês são todos iguais! Deu-te 500 francos e ainda refilas! Se não desse, é porque só dá
aos civis e não liga aos guerrilheiros. Sempre encontram coisas para criticar!
– Não é isso, Ondina. Quando não há dinheiro para comprar comida para a Base, não tem
nada que dar 500 francos para cerveja. Se há dinheiro, é normal que dê, uma pessoa que está
três meses no Mayombe tem necessidade de um dinheirito qualquer. Mas depende das
situações e das possibilidades...
– Pois eu acho que o André é um bom responsável. Sempre a preocupar-se com as
necessidades dos militantes...
– É falso – cortou o Comissário. – Preocupa-se com certas pessoas, não com os militantes.
– A mim nunca me faltou nada.
– A ti! Mas e aos outros?
Ondina lançou uma gargalhada. Beliscando o braço do Comissário, disse:
– Veio-me agora uma ideia. Tu não gostas do André porque ele me trata sempre bem. Tens
ciúmes dele...
– Eu?
Os olhos espantados do rapaz convenceram logo Ondina que falhara completamente no alvo.
– Nem nunca pensei nisso... Que ele se interessava por ti, realmente nunca me passou pela
cabeça. Mas, no fundo, talvez tenhas razão. Ele é um nguendeiro, tem um monte de mulheres
por aí, ao que dizem. Pode ser que se interesse. Aqui não há muitas como tu, com estudos,
bonita...
– Deixa-te disso! As pessoas falam de mais. Vi como ele trata a mulher, não é de homem
que tenha outras. São calúnias.
– Ora, trata-a como mãe dos seus filhos...
Ondina acariciou-o para apagar a ruga que se cavara na fronte do Comissário. Este
continuou:
– Ele tem apoio no meio das mulheres, dizem que é um belo homem. E bom falador, parece
ter mais instrução que na realidade... E tem um cargo importante. Enfim, coisas que contam
para uma mulher despolitizada.
– Não para todas, mesmo despolitizadas. Mas deixa o André! Fala-me do combate.
O Comissário obedeceu-lhe, contando o que se passara. Explicou mesmo o caso de
Ingratidão e a resposta do Comandante à sua observação infeliz sobre os traidores.
– Sem Medo tinha razão, parece-me – disse Ondina. – E ele ficou furioso, porque isso veio
de ti. Basta ouvir como ele fala de ti, pareces filho dele...
– Sim, ele gosta de mim.
Calaram-se, pensando os dois em Sem Medo. E a angústia do Comissário voltou. Como
dizer? Como dizer que às seis horas deveria ir para Dolisie e que, nessa noite, partiria?
Sobretudo que de manhã prometera ficar uns dias... O silêncio dele fez despertar Ondina.
Debruçou-se sobre ele e viu-lhe a ruga na fronte.
– Que tens?
– Nada.
– Conta na tua Dinha! Suspirou fundo, ganhando coragem.
– Sabes? Às seis horas tenho um encontro, mais um, com o André. Vou seguir esta noite.
Ela soergueu-se num repelão.
– Mas tu disseste...
– Sim, mas o André... Enfim, não foi o André. Eu é que acho que tenho de ir. Nada mais
tenho a fazer aqui.
Ondina não respondeu. Ficou sentada, os braços passados sobre os joelhos, a saia tapando
metade das coxas. Ele veio a ela. Afagou-lhe os cabelos.
– E eu? – disse ela.
O Comissário afagou-lhe de novo o cabelo.
– E eu? – repetiu ela.
– Vou procurar vir o mais cedo possível.
– Ora!
As carícias dele tornaram-se mais insistentes e ela sentiu o ventre abrir-se-lhe em calor.
Esqueceu por momentos a irritação e entregou-se. Mas ele pensava na separação iminente,
eram já cinco horas, e não correspondeu ao desejo. Foi mais uma vez fechado e racional. O
fogo dela acabou por apagar-se cedo de mais e, quando voltou a abandonar-se, já ele
terminara. O ventre de Ondina doía de insatisfação, ao voltarem à escola. Mas escondeu a dor
e o despeito. Ele partia para a frente de combate, a despedida dum combatente não pode ser
feita com queixas nem ralhos, só com ternura, quando há disso para dar.
O Comissário teve de esperar pelas oito horas, para poder avistar André. Este chegou no jipe
com dez quilos de fubá e outros tantos de arroz e um pouco de peixe seco.
– Foi o que consegui. Nomeei três camaradas para levarem isso.
– Só isso? Mas não chega nem para dois dias... E para levar isso não são precisas três
pessoas.
– Não há dinheiro, camarada. Isto foi agora mesmo um congolês que me deu... Amanhã vou
ver se arranjo mais. E é sempre bom que os camaradas daqui vão lá à Base. Embora um
pudesse levar essa carga, é sempre bom. Amanhã haverá mais...
É bom que os camaradas vão lá, mas tu nunca puseste os pés na Base, pensou o Comissário.
– Amanhã...
André bateu-lhe no braço.
– Já jantou?
– Eu não!
– Então venha daí... Amanhã arranjo comida para quinze dias.
– Tenho de preparar a minha partida. Temos de falar agora, camarada André.
– Mas amanhã...
– Hoje mesmo, agora! Arranco esta noite.
– Mas porquê? Pode ficar cá mais um ou dois dias e levar o resto da comida...
O Comissário queria mas é fugir de Dolisie e refugiar-se na sua Base. Aqui perderia toda a
força moral, desencorajaria.
– Não! Tenho de partir esta noite. Vamos conversar. Janta depois!
– Mas...
– Janta depois – gritou o Comissário. – Há assuntos de guerra a tratar, o jantar pode esperar.
Estou farto de esperar por amanhã.
– Bem, bem, camarada Comissário.
A discussão durou dez minutos, pois André tomou nota do que o Comissário dizia,
aprovando sistematicamente. André estava sempre de acordo com o interlocutor, era uma
característica sua. Só para o caso de Pangu-A-Kitina é que teria de se esperar a resposta de
Brazzaville, pois em Dolisie não havia enfermeiro disponível que o substituísse por uns
tempos na Base.
Acabada a reunião, o responsável convidou o outro para jantar.
– Já almocei galinha, camarada André. Nem sei se os camaradas na Base almoçaram outra
coisa senão comunas. Não preciso de jantar. Até à próxima, camarada André. E obrigado pelos
500 francos, vou comprar com eles comida para os guerrilheiros.
E saiu, batendo com a porta. A guerra estava aberta, o Comissário sabia que tinha feito mais
um inimigo.
Às quatro da manhã, quando se preparavam para partir, o Comissário perguntou aos outros:
– O Verdade?
– Não vai.
– Não vai como?
– Tem autorização do camarada André para ficar.
– O quê? O quê? O quê?
O Comissário percorria o quarto escuro, batendo os tacões da bota na terra batida. O quê?
Tinha vontade de ir arrancar André da cama e esbofeteá-lo. Como? Ele não autorizara Verdade
a ficar e André fizera-o. Quem era o Comissário da Base? Com que direito André se metia a
decidir das permissões? Ele partia para não dar um exemplo de abuso e o responsável
encorajava os abusos.
Quase com lágrimas nos olhos deu a ordem de partida. O cortejo de cinco homens meteu-se
na mata, na noite, em passo acelerado, ritmado por um Comissário que fugia, como louco,
para não desesperar, correndo para a sua Base, onde as coisas eram normais, onde os homens
faziam o que podiam para lutar e para esquecer o clima que reinava nas suas costas. O diarompeu e o Comissário não parou. À frente do grupo, contra todas as medidas de segurança,
voava sobre o trilho escorregadio, indiferente aos pedidos dos homens que queriam beber
água, indiferente às lianas que lhe batiam na cara, defraudado, violado, jurando vingança,
procurando a companhia e a segurança de Sem Medo, que já se não desiludia de nada, porque
com nada se iludia.
E o percurso durou só cinco horas e meia, quando geralmente eram precisas oito.
Ao ouvir a narrativa do Comissário, Sem Medo riu dele. Olhava o seu ar meio
envergonhado, meio ofendido, e ria, ria até se torcer. O Chefe de Operações compôs um
sorrisinho leve, que se colou ao bigodinho bem aparado.
– É o que dá querer ser-se mais papista que o Papa! Tinhas todo o direito de ficar uns dias
em Dolisie, pois há meses que não ias e aqui não havia nenhum trabalho urgente. Quiseste serirrepreensível até ao fim, quiseste ter uma ideia superior de ti mesmo... Foste levado! É o que
dá ser-se ingénuo. E pensas que amanhã receberemos comida? Uma ova! Vai ser preciso que
mais um de nós arranque para lá. Se não fossem as comunas, morreríamos de fome.
O Chefe de Operações levantou o braço, como que pedindo a palavra. Falou pausadamente,
procurando com cada palavra lançar uma pedrada ao Comissário.
– Morrer de fome, não, pois consegui caçar uma cabra-monte. Carne há para uns dias. E
amanhã pode ser que cace mais. Foi pena o Comissário ter-se esquecido de trazer mais óleo e
sal, para se preparar convenientemente a carne.
O Comissário ia a ripostar.
– Fizeste muito bem, Das Operações – disse Sem Medo. – Foi uma operação brilhante!
Vamos nomear-te caçador oficial da Base.
O Comandante virou-se depois para o Comissário.
– Como ficou o Ingratidão?
– Falei com o André. Tudo resolvido. Fica na cadeia de Dolisie. O André disse que ia tomar
precauções especiais...
– Imagino! – disse Sem Medo.
O Comissário levantou-se e pegou na farda lavada.
– Vou tomar banho.
– Acompanho-te – disse Sem Medo.
Foram para o rio. Sem Medo montava a guarda, enquanto o Comissário se lavava. Saindo da
água fresca, o Comissário correu para a clareira, aproveitando os últimos raios de Sol. O
Comandante trouxe a camisa que ele esquecera no rio. Atirou-a sobre o capim. O Comissário
sentiu no gesto a solicitude do amigo. Isso fê-lo esquecer o riso trocista de Sem Medo, quando
lhe contara os dissabores de Dolisie.
– A Ondina e eu... as coisas não estão bem.
O silêncio de Sem Medo, a fumar, sentado num tronco de árvore abatida, encorajou-o a contar
o que se passara na véspera. O Comandante ouviu-o, os olhos fixos no cano da AKA.
– Sexualmente vocês não se dão bem, não é?
– Porque o dizes? – O Comissário lançou-lhe uma mirada inquieta, depois continuou:
– A princípio não, mas agora as coisas normalizaram-se.
Sem Medo deitou fora o cigarro. Um par de macacos perseguia-se nas árvores próximas. Um
tiro liquidaria um deles, era certo. Mas o Comandante não ousou desfazer o casal que se
preparava para o amor. Menos uma refeição, pensou. Voltou a concentrar-se na conversa.
– Não sei. Há qualquer coisa que me choca, quando os vejo juntos. Fazem duas pessoas,
sempre duas pessoas, não uma simbiose. É como se se vigiassem constantemente, uma espécie
de desafio entre vocês os dois, utilizando os terceiros no vosso duelo. O amor é um duelo. Mas
o amor realizado é também uma combinação, diz-se mesmo que os velhos casais acabam por
se assemelhar fisicamente. Vocês ainda não se fundiram um no outro, nenhum dos dois se
deixou fundir. Mas era preciso conhecer melhor Ondina, conheço-a mal...
A solução do problema só me seria possibilitada se dormisse com ela, pensou Sem Medo, Há
mulheres que podem ser conhecidas do exterior, as atitudes correspondendo à maneira de ser.
Outras só podem ser estudadas na intimidade, no modo como se entregam, quais os centros de prazer, quais as defesas que se forjam. Ondina era uma destas últimas. Sabia pelo Comissário
que já conhecera outros homens, aos quinze anos fora deflorada, desde então tivera
regularmente relações. Aos vinte e dois anos era uma mulher, sentimentalmente muito mais
velha que o noivo, adolescente de vinte e cinco anos.
– Já te disse que uma mulher deve ser conquistada permanentemente – disse Sem Medo. –
Não te podes convencer que ela ficou conquistada no momento em que te aceitou, isso era só o prelúdio. O concerto vem depois e é aí que se vê a raça, o talento, do maestro. O amor é uma dialéctica cerrada de aproximação-repúdio, de ternura e imposição. Senão cai-se na rotina, na mornez das relações e, portanto, na mediocridade. Detesto a mediocridade! Não há nada piorno homem que a falta de imaginação. É o mesmo no casal, é o mesmo na política. A vida é criação constante, morte e recriação, a rotina é exactamente o contrário da vida, é a
hibernação. Por vezes, o homem é como o réptil, precisa de hibernar para mudar de pele. Mas
nesse caso a hibernação é uma fase intensa de auto-escalpelização, é pois dinâmica, é criadora.
Não a rotina. Evita a rotina no amor, as discussões mesquinhas sobre os problemas do dia-adia,
procura o fundamental da coisa. Para ti, o fundamental é a diferença cultural entre os dois.
Ainda não te livraste desse complexo. Ao falar dela, há uma admiração latente pela sua
maneira de se exprimir, uma procura das suas frases, da sua pronúncia mesmo. No entanto, tu
és mais culto que ela. Os teus estudos foram menos avançados, mas tens uma compreensão da vida muito superior. Ela conhece mais Física ou Química, mas é incapaz de compreender a
natureza profunda da oposição entre os dois pólos do eléctrodo e da sua ligação essencial. Tu
pouco conheces de Física, mas és capaz de a compreender melhor, porque conheceste a
dialéctica na vida. A tua acção na luta, em que estás a contribuir para transformar a sociedade,
é um facto cultural muito mais profundo que todos os conhecimentos literários que ela tem.
Vocês os dois podem completar-se, pois têm muito para ensinar um ao outro. Mas tu fechas-te
no teu complexo, na consciência da tua incultura que, afinal, é só aparente; ela sente isso econsidera-se intelectualmente superior, daí até ao desprezo só vai um passo. És tu que a levas a dar esse passo.
O Sol fora tragado pela folhagem. O Comissário vestiu-se. Ao calçar as botas perguntou:
– Que devo fazer?
– Conquistá-la verdadeiramente. Conquistá-la sexualmente, penso que ainda não o fizeste.
Há três meses, quando a vi, ela tinha todo o aspecto de quem não estava totalmente saciada
sexualmente. Isso vê-se numa mulher, acredita.
– Mas como fazer?
– A receita prática? Não ta posso dar. É como o marxismo. Serve de guia, de inspirador para
a acção, mas não te resolve os problemas práticos...
Calou-se, riu silenciosamente, afagando a AKA. Depois continuou:
– Sempre achei ridículo o indivíduo que pega no Mao e passa uma noite a lê-lo, para
estabelecer o plano duma emboscada. O Mao dá lições de estratégia, não a táctica precisa para
cada momento. O indivíduo tem de ter imaginação, estudar o terreno, e recriar a sua táctica.
Posso dar-te uma orientação, mas não os detalhes do procedimento. Há mulheres que amam a
violência, que amam ser violadas, outras preferem a violação psíquica, outras a ternura, outras
a técnica. Tens de estudar a Ondina, saber qual é o seu género e então traçar o teu plano. Ao
meter em execução o plano, tens de ser lúcido, mas, ao mesmo tempo, apaixonado, intuitivo,
para o poderes mudar se for necessário. A lucidez não significa frieza no amor. Podes ser
espontâneo e lúcido.
– Muito complicado!
O Comissário fez um gesto de desencorajamento. Sem Medo bateu-lhe no ombro. Nesse
momento passou Ekuikui, que voltava da caça, sem nada. Tinha o mesmo ar desencorajado do
Comissário, o fracasso gravando-lhe uma ponta de vergonha no rosto.
Voltando para a Base, onde os guerrilheiros saíam das aulas para prepararem os fogos e o
jantar, Sem Medo disse:
– Queria evitar, mas parece que terei de ir dizer duas palavras ao André. Se amanhã não vier
a comida...
– Podias falar com a Ondina. Talvez percebesses melhor o que há, podias aconselhá-la... e a
mim também.
A voz era uma súplica reticente. Um esforço de desprendimento, pensou Sem Medo.
– Se tiver ocasião.
Que choque seria para ele, se lhe dissesse que só poderia conhecer verdadeiramente Ondina e
aconselhá-los decentemente, estudando-a sexualmente. Nunca compreenderia, perderia semdúvida a confiança total que tem na amizade, na minha amizade. É dos tais que me entregaria
a mulher para tomar conta dela... Eu nunca o faria. Ou, se o fizesse, era já admitindo que tudo
poderia acontecer, e sem culpar ninguém do que sucedesse. Se há alguma coisa a culpar! Mas
o Comissário é demasiado jovem para compreender. E, de qualquer modo, a Ondina não me
interessa.
Entraram na casa do Comando, onde se encontravam vários guerrilheiros, discutindo sobre o
último jornal do Movimento que chegara de Dolisie. O Comissário meteu-se na discussão, era o seu trabalho.
O Comandante deitou-se no catre, fumando. Ondina não lhe interessava? Não, isso era certo.
Não porque fosse a noiva do Comissário, deixara de acreditar na pureza da amizade quando
havia mulheres no meio. Caim não matou Abel por causa duma mulher? Tentou recordar apassagem da Bíblia. É possível que na Bíblia isso não venha expresso. Mas é evidente que uma mulher esteve na origem do crime. Ondina devia ser uma artista na cama, sentia-se, tinha fogo escondido sob a capa criada pela educação de menina de Luanda. Bastava ver como estudava os homens, os apreciava, pesando o seu valor, procurando mesmo um duelo surdo ao cruzar o olhar e ser a última a desviar a vista. Fizera-o com ele e com outros mais. Tinha sempre um sentido alerta para conhecer se agradava ao homem que afrontava, se uma palavra sua bastaria para o excitar. Ele entrara no duelo, pela primeira vez, antes de o Comissário a conhecer.
Ela chegara na véspera a Dolisie. Ele vinha de Kimongo, onde estava anteriormente a Base.
Foram apresentados pelo Kassule, que hoje estava no Leste. Ela enfrentara o olhar apreciador
que ele lhe deitara, convidara-o para tomar um café no seu quarto. Ela sentou-se na cama, ele
ficou de pé, bebendo o café. A saia curtinha subira e mostrava as coxas. Ele mirou-as
descaradamente e fez o olhar subir lentamente do joelho à ponta da cueca branca que se
adivinhava, deixou-o aí longamente, e depois continuou a ascensão até aos olhos que
brilhavam, desafiadores, olhos de onça. Ela susteve o olhar, esperando o resultado do exame.
Ele voltou a baixar os olhos, lentamente, até ao pescoço alto e viu a garganta dela contrair-se,
prosseguiu até aos seios pequenos e duros, o ventre magro, chegou de novo às coxas redondas.
Daí, o olhar de Sem Medo fixou-se na chávena. Ela esperava a reacção. Ele não mostrou
perturbação, disso tinha a certeza.
A conversa prosseguiu, agora ele sentado no banco à frente dela. Falaram de Luanda, das
pessoas que ele conhecera e que ela conhecia. Ondina procurava o duelo, não deixava de o fitar de frente, uma luzinha brilhando no fundo do olho. Sem Medo por vezes perdia-se na
contemplação das coxas, era o que ela tinha de mais excitante, lembravam-lhe outras, só que
estas eram mais escuras. O olhar dela era então discretamente jubiloso, mas ele não piscava os olhos ou contraía os lábios ou engolia saliva. Mantinha o porte indiferente do gigante do
Mayombe, e o júbilo esbatia-se suavemente no olhar dela, para ser vencido pelo tom ambíguo
da perplexidade.
Sem Medo partiu e nunca mais permitiu outro desafio, embora ela o provocasse, mesmo
depois de estar noiva do Comissário.
Há mulheres para quem esse duelo é apenas um capricho, uma necessidade fútil de medir
forças, e que não vai mais além. Ondina não. Sem Medo sentira que, nela, o que parecia
começar como jogo, era afinal uma necessidade imperiosa de se julgar e se refazer a pele que
caía durante o duelo. O que começara como jogo, no fim já era convite mudo. O que o fizera
desinteressar de Ondina fora a certeza de que ela lhe teria sido uma presa fácil, demasiado
fácil, nessa tarde em que se conheceram. Não que ele só quisesse combates difíceis, não. Mas,
quando se tratava duma menina bem educada, com maneiras estudadas de citadina que nasceu no muceque e que quer chegar a viver na Baixa, então essa tinha de ser natural e directa, ou então difícil. Ou ela conduzia o jogo ou então não provocava um duelo para suplicar em seguida. Sem Medo apreciava a dignidade da mulher que é capaz de lutar pelo que deseja ou que é capaz de retardar a captura, só para aumentar o prazer da captura. Ondina deixara
aperceber uma natureza equívoca, eis o que fizera desinteressar Sem Medo.
Estava o Comandante nestas observações, quando Vewê entrou na casa e se sentou no catre
de Sem Medo. Este reparou que ele não pedira licença, era uma familiaridade rara, inédita em
Vewê. O gesto agradou-lhe.
– Já não sou um papão?
O rapaz não compreendeu a alusão. Levantou para ele uns olhos límpidos, onde se lia o
temor.
– Sentaste-te sem pedir licença, como se fosse a tua cama. Quer dizer que me perdeste o
medo...
Outros guerrilheiros observavam a cena do lado de fora da janela, mas não podiam ouvir,
pois Sem Medo falara baixo. Vewê baixou os olhos, à espera duma reacção violenta. Se a
familiaridade lhe é conferida pelo facto de ser meu parente, então isso é mau; se é porque
começa a sair da casca, se começa a desenvolver como feto de homem adulto, então está bem.
Qual o móbil de Vewê?
– Pensas que o facto de ser meu primo te dá direitos que os outros não se permitem ter?
– Vai haver a rádio...
– Eu sei, não é isso que pergunto – levantara a voz e os que estavam à janela aguçaram os
ouvidos. – Pergunto-te se pensas que ser primo do Comandante te faz considerar superior aos
outros.
– Não, não, camarada Comandante.
– Então, porque não pediste licença para te sentares? Vewê hesitou. Olhou para trás do
Comandante, para o grupo de espectadores que se formara atrás da janela, sem que o
Comandante os visse. Falou alto para que todos ouvissem:
– Achei normal... Como o camarada Comandante se podia sentar na minha cama sem pedir
autorização.
Sem Medo sorriu. O ar tímido de Vewê enganava: tinha carácter, começava agora a tirar
lentamente as unhas. Não era Vewê, era gato, onça, ou leopardo. Quem sabe se leão? Ia dar um bom guerrilheiro. O Comandante bateu-lhe no ombro.
– Podes estar à vontade. Conquistaste o direito de te sentares na minha cama sem pedir
autorização. Duvido que isso conte para ti, mas enfim...
Vewê olhou para a janela. O murmúrio que percorreu os guerrilheiros fez compreender a
Sem Medo que algo se passava. Fixou Vewê e viu o olhar triunfante que lançava aos
companheiros de fora. Triunfante e tranquilizado. Sem Medo compreendeu tudo: não era
iniciativa de Vewê, fora simplesmente uma aposta que fizera com os outros.
– Vai embora! – gritou o Comandante. – Sai-me daqui, desaparece!
O rapaz olhou-o, perplexo e atemorizado.
– Sai! – gritou Sem Medo, furioso.
Vewê pôs o chapéu na cabeça e desapareceu. O Comissário falou do outro lado da casa:
– Não tens o direito de falar assim a um guerrilheiro, Comandante!
Sem Medo amachucou o cigarro no chão. Sentou-se no catre. Os olhos faiscaram, ao fixar o
Comissário. Este levantou-se e avançou para o meio da casa. Sem Medo olhava-o, o cenho
carregado.
– Não assisti ao que se passou – disse o Comissário – mas não são maneiras de se falar a um
guerrilheiro.
O Comandante levantou-se por sua vez. Os combatentes ouviam atentamente, adivinhando a
tensão que se criara entre os dois homens. Os ruídos da mata tornaram-se perceptíveis,
ritmados pelo ruído do pé do Comandante martelando o solo.
– É um impostor! – disse Sem Medo. – Não percebeste nada, então não te metas!
E saiu de casa, sem olhar ninguém. O Comissário ia falar, mas a brusca saída do outro
deixou-o com a fala suspensa. Os guerrilheiros que rodeavam o Comissário, e os outros que
estavam na janela, calavam-se, desiludidos por ter parado aí o conflito entre os dois
responsáveis.
Quando Teoria entrou na cabana do chefe de grupo Kiluanje, estavam lá Milagre, Pangu-A-
Kitina, Ekuikui, outros guerrilheiros e, num canto, confidenciando-se pensamentos íntimos, o
jovem Vewê. Teoria notou que Kiluanje se interrompera no discurso, mas que, ao vê-lo, voltou
a falar.
– O problema que há aqui é que o Comandante não tinha razão e o Vewê é um guerrilheiro,
antes de ser primo dele.
– É primo dele e por isso ele tem poder de lhe bater mesmo – disse Pangu-A-Kitina. – E
você não tem nada com isso.
– Viste como o Comissário ficou zangado? – perguntou Milagre. – Se ele ficou assim, é
porque o Comandante estava mesmo errado. O Comissário não fica zangado à toa!
– Porque o Comissário nunca erra? – disse Pangu-A-Kitina.
– Não é isso que eu estou a falar – disse Milagre. – Mas tu, lá porque és kikongo, só queres
defender o Comandante.
– Ai é? E porque é que vocês o atacam? Porque são kimbundos...
– É melhor travar aí a discussão, camaradas – disse Teoria.
Ninguém lhe ligou importância.
– Nos Dembos – disse Milagre – um tipo como o Sem Medo já não vivia. Já o tínhamos
varrido!
– Como varreram os assimilados e os umbundos em 1961 – disse Pangu-A-Kitina. – Mas
isso não parou aí. Ainda vai haver muitas contas a ajustar.
– Camaradas, parem por favor – gritou Teoria, metendo-se no meio.
– Vocês julgam que vêm aqui fazer como na UPA? – disse Milagre. – O vosso partido é a
UPA, o partido dos kikongos. Vieram aqui sabotar, estão a trabalhar para o imperialismo.
– Deixa, Milagre! – disse Kiluanje. – As coisas um dia vão-se resolver, mas não interessa
agora com a boca.
– Com quê então que se vão resolver? – perguntou Pangu-A-Kitina. – Com quê então?
– Não interessa, deixa só!
– Camaradas, se continuam assim eu vou chamar os responsáveis – disse Teoria.
– Tu, cala-te – disse Milagre. – Não tens nada que falar, ouviste? A conversa não é contigo...
– Mas...
– Camarada Teoria – disse Kiluanje –, o camarada não foi chamado aqui. Por isso é melhor
não se meter.
– Mas o que estão a dizer é grave – disse Teoria. – Vocês ainda não se aperceberam?
– Como não se aperceberam? – interrompeu Ekuikui. – Eles sabem o que estão a dizer, é o
que eles sentem. Não só o camarada chefe e o Milagre, mas também o Pangu. Sabem o que
estão a fazer e o que querem. Mas como eu não estou de acordo, nem com uns nem com os
outros, vou dormir. E digam, se quiserem, que é porque sou umbundo, que não me interessa,
estou cagando!
Ekuikui ia a sair, mas Teoria segurou-lhe no braço. O professor tremia e foi isso que fez
parar Ekuikui. Os outros guerrilheiros ouviam, interessados, a cena, sem se meterem.
– Não podes sair Ekuikui. Temos de acabar com esta discussão.
– Camarada professor, quando se entra em discussão tribal, o melhor é deixar, não se meter
no meio.
– Discussão tribal? – cortou Kiluanje. – Quem é que está a fazer discussão tribal aqui?
Ekuikui riu, tenso.
– Então eu tinha compreendido mal, camarada Chefe. Tinha percebido que se falava de
kimbundos e kikongos. Se não se falou, afinal, não é discussão tribal. Fui eu que ouvi mal!
– Pode-se falar sem ser discussão tribal.
– Como? – disse Teoria. – Não se pode falar nada. O melhor, Pangu-A-Kitina, é vires
comigo.
– Porque é que hei-de ir, se estou aqui tão bem?
– Eu vou – disse Vewê – essa conversa não me interessa.
Vewê saiu e ninguém o reteve.
– Você disse que as coisas se iam resolver, mas não de boca – disse Pangu-A-Kitina para
Kiluanje. – Vão-se resolver como? Com tiros?
– Travem isso, camaradas! – gritou Teoria.
– Vão-se resolver, é o que eu digo. Lembras-te do grupo do Tomás Ferreira assassinado pela
UPA? E todos os outros? Ainda não estão pagos...
– E eu sou da UPA, lá porque sou kikongo? Que culpa tenho eu que a UPA faça isso?
– Não está pago, é o que eu digo.
– E os bailundos que mataram em 61? Julgas que eles também esqueceram? Éramos nós que
os protegíamos de vocês, que vinham com as catanas...
– Camaradas, eu vou chamar o Comissário – disse Teoria.
– Não é preciso – disse Kiluanje –, está tudo claro. Eu também não discuto mais.
– Parem mas é com as vossas ameaças – disse Pangu-A-Kitina. – Pensam que metem medo?
Nós também temos armas.
Teoria pegou no braço de Pangu-A-Kitina e puxou-o para fora. Mas o enfermeiro era mais
forte e foi Teoria que foi arrastado para dentro do quarto.
– Vocês não metem medo, hem?
Os guerrilheiros kimbundos riram e não responderam. Tinham segurado Milagre
violentamente, para evitar que discutisse mais. Kiluanje controlava-se bem.
– Nós também temos armas! Estão só para aí a ameaçar... O MPLA é vosso? O MPLA não é
só dos kimbundos, é de todos.
Os outros não responderam. Esperavam que os gritos de Pangu-A-Kitina, que já tinham
atraído outros guerrilheiros que espreitavam pela janela, chamassem o Comissário. Teoria
puxava-o, mas o enfermeiro repelia-o com brutalidade.
– Nós varremos muitos de vocês no passado. Os Dombos e Nambuangongos pagavam
imposto ao Rei do Congo. Vocês eram nossos escravos, como é que falam agora?
O barulho trouxe o Chefe de Operações.
– Que se passa aqui?
– O camarada Pangu-A-Kitina veio aqui insultar-nos – disse o chefe de grupo Kiluanje.
– Não – disse Teoria. – Começaram a discutir, tentei interromper, mas dum lado e do outro
não queriam parar.
– Mas quem é que está a falar agora, a provocar? – disse Kiluanje. – Nós calámo-nos,
quando vimos o que Pangu queria. Mas ele continuou, continuou. Agora chamou-nos escravos
dos kikongos...
– É mentira! – disse Pangu-A-Kitina.
– É verdade! – disse Ekuikui. – Você foi burro, perdeu a cabeça, era o que eles queriam.
Disseste, sim, isso. Mas quem puxou a conversa foram eles e depois aqueceu. Não foi o Pangu
que veio aqui insultar.
– Bem, o Comando vai resolver isso depois – disse o Chefe de Operações. – E agora
dispersem!
Indo para o quarto que partilhavam, Ekuikui disse a Teoria:
– Não sei se o Pangu foi só levado ou se queria mesmo arranjar uma maka.
– Os outros foram malandros. Irritaram-no e depois calaram-se, para ser ele a enterrar-se.
Ele reagiu por tribalismo.
– Claro, camarada professor. Mas parece a mim que ele sabia disso e não se importou.
Estava a fazer de propósito.
– Para provocar?
– Sim, para provocar porrada tribal.
– Mas com que fim?
– Isso aí... O que os homens mostram é sempre uma parte muito pequena do que têm no
coração.
– Achas portanto que os dois têm culpa?
– Camarada Teoria, os dois queriam a mesma coisa. Quando há problema tribal, não vale a
pena pensar quem é que tem a culpa. Se duma vez foi um que provocou, é porque antes o outrotinha provocado. Quem nasceu primeiro, a galinha ou o ovo? É assim com o tribalismo.
Teoria entrou em casa e ficou calado. A sua atitude terá sido a mais correcta?
Que podia eu fazer a mais? Tentei impedi-los, fui mesmo contra todos os que ali estavam,
não tive medo de me meter. Será um sinal de progresso, de vitória sobre o medo? Noutra
altura calar-me-ia ou iria embora, para não provocar problemas. Mas foi mais forte do que eu,
não me controlava, fiz o que me passou pela cabeça. Talvez, sim, talvez tenha sido uma
vitória.
E adormeceu, sem ter fumado.
EU, O NARRADOR, SOU MUNDO NOVO.
Assistimos neste momento a qualquer coisa de novo na Base: o Comissário ousa afrontar o
Comandante.
Para que o progresso se faça, é necessário que um elemento crie o seu contrário, o qual
entrará em contradição com ele para o negar. Sem Medo, de certa maneira, criou o
Comissário, formando-o. Mas eis que este o ultrapassa em grau de consciência. Surge
logicamente uma luta entre eles, luta que se traduz por posições práticas antagónicas. Até
agora, o Comissário limitava-se a seguir o Comandante, a imitá-lo: mesmo nos gestos, no
estilo de combater, na indiferença aparente com que enfrenta o inimigo. Hoje opôs-se
publicamente ao Comandante, levantou a voz para o criticar. Sem Medo, pasmado pela
rebeldia do seu pupilo, abandonou a casa de Comando, foi passear na noite.
O Comandante não passa, no fundo, dum diletante pequeno-burguês, com rasgos
anarquistas. Formado na escola marxista, guardou da sua classe de origem uma boa dose de
anticomunismo, o qual se revela pela recusa da igualdade proletária. Não é de bom grado que
aceita a democracia que deve reinar entre combatentes e, por vezes, tem crises agudas e
súbitas de tirania irracional. Defensor verbal do direito à revolta, adepto da contestação
permanente, abusa da autoridade logo que a contestação se faz contra ele. O caso de Vewê
pôs a nu toda a sua mentalidade de ditador. Este flagrante caso de abuso do poder levou o
Comissário, que tem uma formação ideológica bem mais clara, a tomar posição a favor da
linha de massas.
Esta atitude faz-me pensar que a relação de forças no Comando vai mudar. Como diz o
Chefe de Operações, o desprezo do Comandante pela opinião dos outros membros do
Comando tem levado a erros graves, situação agravada pelo facto de o Comissário aprovar
sempre Sem Medo. Mas agora talvez vejamos a desejada união entre o Comissário e o Chefe
de Operações fazer-se contra o Comandante, defensor do niilismo pequeno-burguês. Não há
que lamentar divisões entre os responsáveis: elas são uma necessidade histórica.
Porquê Sem Medo perdeu a cabeça? Falei com Vewê, soube da aposta que tinham feito, das
palavras murmuradas pelo Comandante. Este fez uma ideia superior de Vewê, que o ousava
desafiar, e ficou desiludido, ao verificar que a ousadia de Vewê era fruto apenas duma aposta.
Reagiu pessoalmente, subjectivamente, ofendido porque a ideia que fizera de Vewê era falsa.
Não foi Vewê que o desiludiu, foi ele que se iludiu sobre Vewê.
Como poderemos fazer confiança num homem tão pouco objectivo?
A Revolução é feita pelas massas populares, única entidade com capacidade para a dirigir,
não por indivíduos como Sem Medo.
O futuro ver-me-á, pois, apoiar os elementos proletários contra este intelectual que, à força
de arriscar a vida por razões subjectivas, subiu a Comandante. A guerra está declarada.
No dia seguinte, esperaram impacientemente o meio-dia. Nada viera do exterior. A comida
só daria para esse dia, depois teriam de voltar ao regime de comunas assadas.
O Comandante acordara mudo e o seu olhar fixava-se obstinadamente no relógio. Não saíra
da casa do Comando, não fora treinar os novos recrutas. Depois do almoço, a esperança de ver
chegar um grupo de Dolisie esvaiu-se.
– Esse André mais uma vez me aldrabou – disse o Comissário.
– Que esperavas? – respondeu Sem Medo.
Levantou-se, pegou na AKA, chamou Lutamos e Muatiânvua.
– Vamos fazer uma patrulha.
Os três guerrilheiros saíram da Base, a passo rápido, o Comandante à frente. Andaram
ininterruptamente até às três horas, inclinando-se para subir as montanhas a pique que se
elevavam sempre à sua frente. Chegados a um regato, Sem Medo parou e bebeu água. Os
outros imitaram-no. Lutamos foi observar um caminho que passava ali perto e que estava por
eles minado. Muatiânvua deitou-se a fumar. Sem Medo estava taciturno, como acordara nesse
dia. Lutamos voltou ao grupo, sem nada de anormal a assinalar.
– Nem caça se encontra – disse Muatiânvua. – Até parece que a caça combinou com o André,
para nos deixar morrer de fome.
– Se a gente fosse unido – disse Lutamos –, a gente dava mas é um golpe de Estado, tirava o
André de responsável. Isso é que era preciso. Mas a gente do maquis não está unido!
E olhava o Comandante, a estudar a reacção. Sem Medo manteve-se calado. Muatiânvua
trocou uma mirada entendida com Lutamos e acrescentou:
– Se houvesse um Comando unido, ele podia impor certas coisas ao André...
O Comandante acendeu outro cigarro. Contemplava as copas das árvores que percorriam os
ares, desdobrando-se, deixando um ou outro fragmento azul de céu. Fingiu não perceber as
alusões dos companheiros e fumou, indiferente. Muatiânvua desistiu de provocar conversa e
foi observar o rio, a ver se havia peixe. Entretanto, Lutamos olhava o Comandante, discutindo
interiormente se deveria falar directamente ou não. Há coisa no ar, pensou Sem Medo, sente-
se no ambiente abafado da Base, no nervosismo dos homens. E aqui aproxima-se trovoada.
– Vamos até ao deserto – disse ele.
Andaram mais meia hora e saíram da mata, para uma montanha sem árvores, só com capim.
A isso chamavam deserto. Tudo é relativo. Para um homem habituado a ter folhas até
cinquenta metros acima da cabeça, qualquer terreno em que só encontra capim é um deserto.
Da mesma maneira, a savana seria um Mayombe para o camelo. Ainda há homens para os
quais a sua verdade tem de ser conhecida por todos, pensou Sem Medo, se a própria vida nos
leva a relativizar tudo, até o próprio vocabulário!
O Sol forte do meio da tarde feriu-lhes a vista e tiveram de se habituar aos poucos, piscando
longamente os olhos. Sentaram-se no alto do monte, vigiando o horizonte. Muatiânvua e Sem
Medo tiraram a camisa e puseram-na a secar sobre o caminho em que se encontravam,
utilizado pelos soldados portugueses para patrulhas na região.
As nuvens acumulavam-se sobre a floresta, à sua frente. A floresta concentra nela as nuvens,
pensou Sem Medo. Elas vêm dos desertos e vão cruzar-se, penetrar-se, sobre o Mayombe.
Correm livremente pelo espaço, em jogos essenciais de deformação constante – ou recriação
constante – para serem atraídas em massa informe, se tornarem prisioneiras do seu próprio
conteúdo. Uma nuvem isolada tem a individualidade que lhe é dada pela sua mutabilidade
inquieta e caprichosa; esta individualidade perde-se na massa que se concentra e que vale pelo seu peso, pela sua potência selvagem.
Sem Medo identificou-se a uma nuvem cinzenta, com fímbrias brancas, que corria em
revolução constante, e parecia poder escapar-se, poder passar ao lado da massa de nuvens que se adensava sobre o Mayombe. O coração pulsando, seguiu os movimentos fre néticos da
nuvenzita que ora era ave ora luz ora cabelos de mulher loira, ora cavalo galopando. Dentro de
si fazia votos para que ela passasse ao lado da massa ameaçadora que a atraía
invencivelmente. Por momentos, pareceu-lhe que a nuvem passaria ao lado e percorreria
livremente o seu caminho precipitado. Mas, ou foi um golpe de vento ou a atracção, o certo é
que a nuvenzita foi engolida pela massa cinzento-escura e se desfez nela. Um aperto no
coração e um gesto de desalento acompanharam a sua voz:
– Que se passa então, camaradas?
Muatiânvua não esperava senão isso. Cofiou a barba, enquanto os olhos pareciam soltar-se
do rosto anguloso.
– O que se passa é que está a haver agitação na Base. Uns dizem que se não há comida é
porque a direcção não faz confiança no Comando da Base, que está dividido. Outros que
porque o Comandante não serve e não faz acções que justifiquem a comida. Outros, esses são
poucos, dizem que a culpa é dos civis e que é preciso mudar as coisas. Há os que são pelo
Comandante, os kikongos; os que são pelo Comissário contra o Comandante; os que são pelo
Chefe de Operações, contra o Comissário e o Comandante; os que são pelo Chefe de
Operações e o Comissário contra o Comandante; enfim, são esses...
Sem Medo sorriu tristemente.
– E os que são pelo Comandante, sem serem kikongos, ou pelo Comissário, sem serem
kimbundos?
– Há, mas, eh pá, são poucos!
– Pelo que compreendo, há quem pense que entre mim e o Comissário há problemas...
– Sim. Desde ontem...
Sem Medo não respondeu. Lutamos aproveitou a pausa para dizer:
– É preciso é fazer a unidade no Comando contra os civis. Temos de dar o golpe no André.
O Comandante olhou-o fixamente.
– Mesmo com o Chefe de Operações? Pensas que mesmo com o Chefe de Operações? Sabes
porque to pergunto, não?
Lutamos sustentou o olhar penetrante.
– Sim, camarada Comandante. O Chefe de Operações não pode comigo, desconfia mesmo de
mim, mas isso é normal. O povo daqui não apoia, homem de Cabinda é logo traidor... Mas ele
é bom militar e um dia vai compreender. Eu só quero que a luta avança, por isso penso é
preciso fazer a unidade do Comando e obrigar a Direcção a pôr outro responsável em Dolisie.
Só assim a luta pode avançar. Esse povo não é traidor, mas precisa de ver a guerra está a sair
mal ao tuga. O Povo apoia o que tem razão, mas quando o que tem razão mostra que é forte.
Os civis falam em Dolisie não se deve enviar comida porque nós não fazemos guerra e que o
Comando está dividido por tribalismo e ambição...
– Vocês sempre com a desunião do Comando! – disse Sem Medo. – Onde é que viram que o
Comando está dividido? Há ou havia problemas entre o Comissário e o Das Operações. Nunca
tive problemas com nenhum deles. O caso de ontem... quem é que está para aí a inchar o caso
de ontem, a fazer dele um monstro? Ontem não houve nada de especial. Porque o Comissário
me criticou? Está muito bem, devia fazê-lo mais vezes. Julgam que isso criou problemas,
estão muito enganados, não há problema nenhum. Vocês todos não dão o devido valor ao
Comissário, pensam que ele é um mole ou um miúdo. Ele tem a sua cabeça, que pensa muito
bem.
– Sabemos, sim – disse Muatiânvua.
– Se uma vez ele discute comigo, pronto, é porque há coisa séria por trás! Não é normal que
dois homens discutam e se zanguem mesmo, sobretudo se são amigos? E eu digo-vos a vocês,
que são uns destribalizados aqui, que não são kikongos nem kimbundos: não tentem atirar-me
contra o Comissário, com intrigas, do disse que disse, comigo não pega. Com ele também não.
– Não, a gente só contou o que dizem os guerrilheiros – disse Muatiânvua. – Eu não vou com
uma pessoa contra outra. Eu vou com o que tem razão. Não gosto de intrigas, sempre falei de
homem a homem. O que disse posso repetir numa reunião, com o André e tudo.
– Eu sei – disse Sem Medo.
Muatiânvua era considerado por muitos como «anarquista nas palavras». Quando se
levantava numa reunião muitos tremiam intimamente: Muatiânvua só falava quando tinha
uma bomba para a discussão, que atirava para o meio da reunião, com um ricto trocista na
boca, os cabelos em desordem e os olhos dardejando desprezo para o responsável em falta.
Fora muitas vezes indigitado para estágios ou mesmo para promoções. Mas sempre aparecia
um inimigo feito pelas suas palavras para lhe sabotar o estágio ou a promoção. Muatiânvua
encolhia os ombros e dizia que não viera para passear pelo estrangeiro – que conhecia devido
às viagens de marinheiro – ou para ser chefe; viera para lutar.
Sem Medo bateu-lhe no braço.
– Eu sei. Não falo para ti, nem para o Lutamos. Mas há muitos que só esperavam uma
pequena discussão entre o Comissário e mim, para começarem a agitar. Muitos nem sabem o
que fazem. Estão enganados. O que nos une, a mim e ao Comissário, é muito forte, demasiado
forte.
Calou-se, porque a voz lhe saía dificilmente, pela contracção da garganta. Os outros
respeitaram o seu silêncio. Sem Medo olhou o vulto ameaçador das nuvens sobre o caminho que iriam percorrer para voltar à Base. Vestiu a camisa.
– Vamos apanhar chuva.
Não só apanharam chuva, mal se embrenharam na mata, como a noite os surpreendeu no
caminho. Tropeçavam nos troncos caídos, escorregavam no chão lamacento, enrodilhavam-se
nas lianas que os vigiavam. Sem Medo avançava à frente dos outros, impaciente por chegar,
não pelo calor da cubata, mas pelo café que o Comissário preparava, sabendo que eles estavam
cansados e friorentos. E não era pelo café, mas porque era preparado pelo Comissário para ele,
Sem Medo.
O Comissário tinha mesmo preparado o café e encheu-lhe a lata de leite que servia de
caneca. Sem Medo bebeu o café e acendeu um cigarro. Depois de fumar, mudou de farda. O
jantar esfriara há muito no prato. O Comissário sentou-se na cama, ao lado dele.
– Queria falar-te.
– Sobre o caso de ontem?
– Sim.
– Não vale a pena – disse Sem Medo.
– Vale, sim. Não vais jantar agora?
– Mais logo.
– Então vamos para fora. Já deixou de chover há muito.
O Comissário estava nervoso, e os seus olhos revelavam falta de à-vontade. Discutir para
quê? – pensou Sem Medo. Desenterrar o que já morreu. Os homens gostam de se flagelar com
o passado e nunca se sentem contentes sem o fazer. É a incapacidade de pôr uma pedra sobre
um facto e avançar para o futuro. Há outros, no entanto, os que não sabem gozar a vida, que só vêem o futuro. Incapacidade de sofrer ou gozar uma situação. Se sofrem, consolam-se,
pensando que o amanhã será melhor. Se são felizes, temperam essa felicidade pela ideia de
que ela acabará em breve. Eu vivo o presente; quando faço amor, não penso nas vezes em que
não encontrei prazer, ou que será necessário lavar-me a seguir. Mas o Comissário é um miúdo,
cuja personalidade está indecisa entre o passado e o futuro. Poderá talvez aprender a gozar a
vida, mas por enquanto ainda necessita duma explicação.
– Vamos – disse Sem Medo.
Sentaram-se sobre um tronco caído, à entrada da Base, as armas nos joelhos. Muatiânvua
vira-os e não despegava os olhos dos dois vultos.
– Quero pedir-te desculpa do que se passou ontem – disse o Comissário. – Não devia falar-te
assim à frente dos guerrilheiros. É desautorizar-te e tirar a confiança dos guerrilheiros no
Comando.
– Tinhas razão, eu não devia tratar o Vewê como tratei.
– Mas não devia falar-te ali. Deveria ter-te dito isso à parte. Os guerrilheiros...
– Os guerrilheiros devem habituar-se a ouvir os responsáveis criticarem-se e verem que isso
não vai provocar problemas entre eles.
O Comissário abanou a cabeça.
– Foi um gesto impensado, está errado. As críticas devem ser feitas em reunião do Comando
ou em privado. Foi assim que sempre se disse.
– Pois aí é que está o mal – disse Sem Medo. – As coisas passam-se entre os responsáveis.
Se há roupa suja a lavar, é preciso que o militante não saiba, ela é lavada na capelinha. Fica
tudo sempre na capelinha. Como ensinas então os guerrilheiros a criticar e a ser sinceros, e a
controlarem os responsáveis, se na prática não lhes dás exemplos? Eu, quando tenho uma coisa a dizer-te, ou ao Das Operações, não vos chamo à capela para criticar, já reparaste? Com vocês deve ser a mesma coisa.
– Isso dizes tu! Mas os guerrilheiros já estão a falar, a dizer que há makas entre nós, que o
Comando está dividido.
– Precisamente porque tu sempre evitas fazer-me críticas públicas. Se o fizesses, já estariam
habituados e não era uma coisa destas sem importância nenhuma que os ia alertar.
– O princípio está errado! – disse o Comissário.
– Bom. Tu tens necessidade de te sentir em falta e estás a confessar-te. Enquanto não tiveresa penitência, não tens a alma tranquila. À confissão chamas autocrítica, à contrição chamas o
reconhecimento do erro. Queres que te ordene a flagelação para expiares o sacrilégio?
– Vês em tudo o pensamento religioso!
– Porque ele está em tudo. Os quadros do Movimento estão impregnados de religiosidade,
seja católica, seja protestante. E não são só os do Movimento. Pega em qualquer Partido. Há
uns que procuram aldrabar o padre e escondem os pecados: é como os militantes que fogem à
critica e nunca a aceitam. Há os outros, os que inventam mesmo pensamentos impuros que
afinal nem chegaram a ter, salvo no momento da confissão, para que se sintam mesquinhos em face do sofrimento do Cristo: são os militantes sempre dispostos a autocriticar-se, a
reconhecer erros que não cometeram, apenas porque isso lhes dá a impressão de serem bons
militantes. Um Partido é uma capela. E é por isso que achas que os responsáveis devem
criticar-se a sós, como o padre e o sacristão, que só na sacristia se acusam de roubarem as
amantes respectivas, porque se o fizessem em público os crentes tornar-se-iam cépticos.
– Não é a mesma coisa. Um Partido não é uma capela.
– Não deveria ser uma capela, mas é. Onde é que os dirigentes discutem em público? Não, só
no seu círculo. O militante tem de entrar no círculo, pertencer à casta, isto é, tornar-se
dirigente, para saber da roupa suja que se lava nas altas instâncias. Quando um dirigente é
publicamente criticado, é porque caiu em desgraça, é um bispo tornado herético, um Lutero.
– Então, achas que tudo se deveria fazer em frente do povo?
– Pelo menos dos guerrilheiros, dos militantes, vanguarda do povo, como se diz. Vocês
falam tanto das massas populares e querem esconder tudo ao povo.
– Vocês, quem?
– Vocês, os quadros políticos do Movimento. Os que têm uma sólida formação marxista.
– Tu também a tens.
– Eu? – Sem Medo sorriu. – Eu sou um herético, eu sou contra a religiosidade da política.
Sou marxista? Penso que sim, conheço suficientemente o marxismo para ver que as minhas
ideias são conformes a ele. Mas não acredito numa série de coisas que se dizem ou se impõem,
em nome do marxismo. Sou pois um herético, um anarquista, um sem-Partido, um renegado,
um intelectual pequeno-burguês... Uma coisa, por exemplo, que me põe doente é a facilidade
com que vocês aplicam um rótulo a uma pessoa, só porque não tem exactamente a mesma
opinião sobre um ou outro problema.
– Porque estás sempre a dizer «vocês», a incluir-me num grupo?
– Porque fazes realmente parte dum grupo: os futuros funcionários do Partido, os quadros
superiores, que vão lançar a excomungação sobre os heréticos como eu. «Vocês» representa
todos os que não têm humor, que se tomam a sério e ostentam ares graves de ocasião para se
darem importância...
Sem Medo interrompeu-se. O Comissário esperou a continuação. Mas o Comandante parecia
ter parado de vez. Acendeu um cigarro e ficou a ver as volutas destacarem-se na noite e
perderem-se, mais alto, na escuridão do Mayombe. Muatiânvua continuava a observá-los, de
longe. Ekuikui aproximou-se dele.
– Estão a discutir?
– Só a falar – disse Muatiânvua.
– Estão zangados?
– Não sei.
– Se ao menos ficassem de acordo...
– Porque é que não haveriam de ficar?
O Comissário bateu na perna de Sem Medo. O Comandante fumava, o olhar perdido na
noite.
– Porque paraste de falar? – perguntou o Comissário. – Para não me ofenderes?
Sem Medo sorriu. Ficou ainda calado por momentos, sorrindo.
– Sei que não te ofendes com isso. Ainda tens uns restos de compreensão, ainda não és
totalmente dogmático... Isso virá, talvez, mas por enquanto ainda podes ouvir umas verdades
sem te ofenderes.
– A partir de que momento pensas que me ofenderei?
– Tu? Quando acabar a guerra. Quando fizeres parte dum Partido vitorioso e glorioso que
conquistará o poder e que considerará pagãos todos os que dele não fizerem parte. Quando
estiveres sentado no poder, pertencendo ao grupo restrito que dominará o Partido e o Estado,
depois da primeira desilusão de constatar na prática que o socialismo não é obra dum dia ou da
vontade de mil homens.
– Não é forçoso que uma pessoa se torne dogmática...
– Então terás de abandonar a capela!
– Não é forçoso...
– Ora! Vamos tomar o poder e que vamos dizer ao povo? Vamos construir o socialismo. E
afinal essa construção levará 30 ou 50 anos. Ao fim de cinco anos, o povo começará a dizer:
mas esse tal socialismo não resolveu este problema e aquele. E será verdade, pois é impossível
resolver tais problemas, num país atrasado, em cinco anos. E como reagirão vocês? O povo
está a ser agitado por elementos contra-revolucionários! O que também será verdade, pois
qualquer regime cria os seus elementos de oposição, há que prender os cabecilhas, há que
fazer atenção às manobras do imperialismo, há que reforçar a polícia secreta, etc., etc. O
dramático é que vocês terão razão. Objectivamente, será necessário apertar-se a vigilância no
interior do Partido, aumentar a disciplina, fazer limpezas. Objectivamente é assim. Mas essas
limpezas servirão de pretexto para que homens ambiciosos misturem contra-revolucionários
com aqueles que criticam a sua ambição e os seus erros. Da vigilância necessária no seio do
Partido passar-se-á ao ambiente policial dentro do Partido e toda a crítica será abafada no seu
seio. O centralismo reforça-se, a democracia desaparece. O dramático é que não se pode
escapar a isso...
– Depende dos homens, depende dos homens...
– Os homens? – Sem Medo sorriu tristemente. – Os homens serão prisioneiros das estruturas
que terão criado. Todo organismo vivo tende a cristalizar, se é obrigado a fechar-se sobre si
próprio, se o meio ambiente é hostil: a pele endurece e dá origem a picos defensivos, a coesão
interna torna-se maior e, portanto, a comunicação interna diminui. Um organismo social,
como é um Partido, ou se encontra num estado excepcional que exige uma confrontação
constante dos homens na prática – tal uma guerra permanente – ou tende para a cristalização.
Homens que trabalham há muito tempo juntos cada vez têm menos necessidade de falar, de
comunicar, portanto de se defrontar. Cada um conhece o outro e os argumentos do outro,
criou-se um compromisso tácito entre eles. A contestação desaparecerá, pois. Onde vai
aparecer contestação? Os contestatários serão confundidos com os contra-revolucionários, a
burocracia será dona e senhora, com ela o conformismo, o trabalho ordenado mas sem paixão,
a incapacidade de tudo se pôr em causa e reformular de novo. O organismo vivo,
verdadeiramente vivo, é aquele que é capaz de se negar para renascer de forma diferente, ou
melhor, para dar origem a outro.
– Depende dos homens – disse o Comissário. – Se são indivíduos revolucionários e, por isso,
capazes de ver quais são as necessidades do povo, poderão corrigir todos os erros, poderão
mudar as estruturas...
– E a idade? E o assento que conquistaram? Quererão perdê-lo? Quem gosta de perder um
cargo? Sobretudo quando atingem a idade do comodismo, da poltrona confortável com oschinelos e os charutos que nessa altura poderão comprar? É preciso ser excepcional!
– Há homens excepcionais...
– Sim, há. Uma vez todas as décadas. Um só homem excepcional poderá mudar tudo? Então
tudo repousará nele e cair-se-á no culto da personalidade, no endeusamento, que entra dentroda tradição dos povos subdesenvolvidos, religiosos tradicionalmente. O problema é esse. É que, nos nossos países, tudo repousa num núcleo restrito, porque há falta de quadros, por vezes num só homem. Como contestar no interior dum grupo restrito? Porque é demagogia dizer que o proletariado tomará o poder. Quem toma o poder é um pequeno grupo de homens, na melhor das hipóteses, representando o proletariado ou querendo representá-lo. A mentira começa quando se diz que o proletariado tomou o poder. Para fazer parte da equipa dirigente, é preciso ter uma razoável formação política e cultural. O operário que a isso acede passou muitos anos ou na organização ou estudando. Deixa de ser proletário, é um intelectual. Mas nós todos temos medo de chamar as coisas pelos seus nomes e, sobretudo, esse nome de intelectual. Tu, Comissário, és um camponês? Porque o teu pai foi camponês, tu és camponês? Estudaste um pouco, leste muito, há anos que fazes um trabalho político, és um camponês? Não, és um intelectual. Negá-lo é demagogia, é populismo.
– Está bem. Que sejam todos intelectuais... Que tem isso a ver?
– Não sou contra os intelectuais. Há intelectuais que têm vergonha do seu pecado original,
que parecem desculpar-se de o ser, e gritam aos quatro ventos o seu anti-intelectualismo. Não
sou desses. Sou é contra o princípio de se dizer que um Partido dominado pelos intelectuais édominado pelo proletariado. Porque não é verdade. É essa a primeira mentira, depois vêm as
outras. Deve-se dizer que o Partido é dominado por intelectuais revolucionários, que procuram
fazer uma política a favor do proletariado. Mas começa-se a mentir ao povo, o qual bem vê
que não controla nada o Partido nem o Estado e é o princípio da desconfiança, à qual se
sucederá a desmobilização. Não digo que seja isto o fundamental, nota bem.
– Sei. Mas acho que estás a ser parcial. Se se fizer uma política no geral justa e se conseguir
melhorar o nível de vida do povo, este fará confiança. E isso representará um progresso
enorme em relação à situação actual...
– Evidentemente! Comissário, compreende-me bem. O que estamos a fazer é a única coisa
que devemos fazer. Tentar tornar o país independente, completamente independente, é a única via possível e humana. Para isso, têm de se criar estruturas socialistas, estou de acordo.
Nacionalização das minas, reforma agrária, nacionalização dos bancos, do comércio exterior
etc., etc. Sei disso, é a única solução. E ao fim de certo tempo, logo que não haja muitos erros
nem muitos desvios de fundos, o nível de vida subirá, também não é preciso muito para queele suba. É sem dúvida um progresso, até aí estamos de acordo, não vale a pena discutir. Mas não chamemos socialismo a isso, porque não é forçosamente. Não chamemos Estado
proletário, porque não é. Desmistifiquemos os nomes. Acabemos com o feiticismo dos rótulos.
Democracia nada, porque não haverá democracia, haverá necessariamente, fatalmente, uma
ditadura sobre o povo. Ela pode ser necessária, não sei. Outra via não encontro, mas não é o
ideal, é tudo o que sei. Sejamos sinceros connosco próprios. Não vamos chegar aos cem por
cento, vamos ficar nos cinquenta. Porquê então dizer ao povo que vamos até aos cem por
cento?
– Como é que vais dizer que só ficaremos pelos cinquenta por cento? Isso desmobiliza...
– Aí está onde queria chegar! Como todos os do teu grupo, pensas que se não pode dizer a
verdade ao povo, senão ele desmobiliza-se. Tem de se aumentar, tem de se exagerar, para
aquecer as esperanças que farão as pessoas aguentar os primeiros tempos duros. Eu, se
estivesse à morte, preferia que mo dissessem, detesto as mentiras piedosas. Ora, é o que vocês querem fazer. Para que o moribundo não desanime, não se suicide, prometem-lhe a cura; os
padres pro metem a salvação no outro mundo. O vosso Paraíso, aquele Paraíso que agitam
diante dos olhos das massas, é o futuro, um futuro tão abstracto quanto o Paraíso cristão.
– Não há dúvida que ainda tens problemas metafísicos. O vocabulário trai-te, Comandante!
Sem Medo fez uma pausa. Repetiu o seu gesto maquinal de acariciar o cano da arma.
O silêncio ia invadindo a Base, ao aproximar-se a hora de recolher. Mas da casa do Comando
saíam risos abafados dos guerrilheiros que escutavam a rádio. Muatiânvua e Ekuikui, sentados
a distância dos dois homens, tentavam adivinhar nos vultos e nas palavras que por vezes a eles
chegavam se o clima de confiança fora restabelecido.
– É possível – disse Sem Medo. – Ou é apenas um hábito que ficou. Todos nós pensamos na
morte e isso é um problema metafísico. Mas essa linguagem exprime bem o meu pensamento,
por isso a utilizo. O que queria que tu compreendesses, e que me parece que o Mundo Novo
não percebeu no outro dia, é que não é pelo facto de eu saber que não chegaremos ao paraíso
prometido que recuarei.
– Eu sei, ele falou-me disso. Pôs essa dúvida. Respondi-lhe que não recuarás porque as tuas
razões de lutar são sinceras.
– Quais são?
– Quais são? Enfim, sei lá! São razões humanas, de crença numa necessidade de justiça, de
ódio à opressão... as mesmas que as nossas. A única divergência é no futuro. Tu és mais um
homem para esta fase da luta, recusas-te a pensar no futuro. Nós pensamos também nesse
futuro. Como te vês em Angola independente?
– Eu? Não me vejo. Simplesmente, e em toda a sinceridade, não me vejo. Isso é que vos
choca?
– Enfim, cada um tem os seus planos... Onde mais gostará de trabalhar, ou então quais as
suas ambições.
– A ti vejo-te claramente, como um quadro político. A mim, não me vejo. Talvez noutro país
em luta... Quem sabe se na cadeia? Não me vejo em Angola independente. O que me não
impede de lutar por essa independência.
– A primeira vez que te vi, não, a segunda vez, estavas num bar a beber uma cerveja. As
pessoas dançavam, as mesas estavam cheias de pares barulhentos, como são os bares
congoleses. Havia uma orquestra que tocava, num barulho infernal. Entrei com vários
camaradas, não havia mesa vaga. Num canto descobrimos-te a uma mesa, sozinho, com uma
garrafa de cerveja à frente. Contemplavas a garrafa vazia. Tudo te parecia indiferente, o
barulho, as pessoas que dançavam, as mulheres que passavam à frente da mesa, fazendo-te
sinais. Disseram-me: está ali o Sem Medo, o chefe de secção Sem Medo. Eu era novo no
Movimento, tinha chegado há pouco de Kinshasa, tinha-te visto uma vez no bureau.
Compreendi então que eras um homem só. Os outros quiseram ir ter contigo, para se sentarem
à mesa vaga. Consegui convencê-los a irmos para outro bar, a deixar-te sozinho. Nunca me
esqueci dessa cena, tu a olhares a garrafa vazia, longe, muito longe do mundo que te rodeava.
És um homem só, Sem Medo.
O Comandante aprovou com a cabeça.
– No entanto – continuou o Comissário – há uma coisa em ti, talvez a solidão, que intimida e
ao mesmo tempo leva as pessoas a serem sinceras contigo...
– Talvez a solidão...
– Achas que sim?
– Todos nós somos uns solitários – disse Sem Medo. – Os solitários do Mayombe! Porque
gostamos de viver na mata? Não é porque gostamos de nos sentir sós no meio da multidão de
árvores que nos rodeia? Quando estava na Europa, eu gostava de andar no meio da gente, à
hora da saída dos empregos. Anónimo, absolutamente anónimo no meio da massa. Por isso
gosto das grandes cidades ou então da mata, onde se não é anónimo, antes pelo contrário, é-se singular, mas em que realmente uma pessoa sente ser uma personalidade singular, assim como no meio da multidão. Por isso não gosto de cidades pequenas, que são o destestável meio termo da mediocridade. Desculpa os palavrões, mas é isso mesmo!
Muatiânvua tocou na perna de Ekuikui. Sussurrou:
– Está tudo porreiro! E conversa mole, pá!
– Sim, parece que está tudo porreiro. Vamos deitar?
– Não, aguenta. É bom tomar conta deles, a noite está escura.
Teoria fora urinar e encontrou os outros dois.
– Que fazem aí, camaradas?
– Guarda – disse Muatiânvua, apontando os dois vultos.
Teoria sentou-se também, com a arma entre os joelhos, contemplando o Comissário e Sem
Medo.
– Enquanto os outros desejam que eles se peguem um com o outro, vocês são os únicos que
velam por eles – disse Teoria.
– Há mais, camarada, há mais! – disse Ekuikui.
Sem Medo acendeu outro cigarro. À luz do fósforo, o Comissário viu os olhos que
brilhavam. Apertou-lhe o braço.
– Comandante, podes fazer confiança em mim. Confiança total! Tens um segredo, uma coisa
que te faz ser um solitário, mais solitário que nós todos. Se achas que te faria bem contar,
podes ter confiança. A minha boca não o revelará a ninguém.
– Mais tarde, Comissário, mais tarde. Mas não penses que é um segredo temível que me leva
a ser solitário. Todos temos uma história, eu também tenho uma, mas não é nada de especial.
Sempre fui um solitário. Quando era miúdo, escondia-me para inventar aventuras
extraordinárias em que participava.... como herói, bem entendido! Tudo começou com uma
tareia que apanhei dum mais velho, e do qual fugi vergonhosamente. Como compensação,
comecei a inventar estórias, situadas nos mais variados ambientes, em que o fim era sempre o
mesmo: o duelo de morte contra esse miúdo. Até que me convenci que inventar estórias não
chegava e que era preciso agir, chegar até esse duelo de morte. Provoquei-o e lutámos. Mas
nunca mais deixei de inventar estórias em que era o herói. Como não era tipo para ficar só na
invenção das estórias, tinha dois únicos caminhos na vida: ou escrevê-las ou vivê-las. A
Revolução deu-me oportunidade de as criar na acção. Se não houvesse revolução, com certeza
acabaria como escritor, que é outra maneira de se ser solitário. Como vês, não é esse segredo,
que pensas terrível, a causa da minha solidão, é uma questão de temperamento.
– Sabes o que penso? Deverias casar.
– Trop tard !
– Porquê?
– Passou a época. Penso que já me habituei demasiado a ser o único dono de mim próprio,
para me poder partilhar. Ou então arranjaria uma mulher em quem mandasse, o que não é o
meu estilo. Viver duradoiramente com uma mulher, respeitar os seus desejos, confrontá-los
com os meus, procurar um compromisso quando os desejos são divergentes, aceitar que ela
decida, como eu, sobre os pequenos e grandes problemas, tudo isso hoje me é difícil. Tornei-
me demasiado independente. Para continuar a fazer uma vida independente, mesmo casado,
então não vale a pena. Prefiro a independência duma vida e a dependência duma noite, de vez
em quando. A menos que apareça a mulher excepcional, aquela que só aparece uma vez numa
década! Até aqui não a encontrei. Mas isso tudo leva-nos longe do assunto principal e não
jantei por causa dele...
– Tens razão, estou a ser egoísta – disse o Comissário.
– Lá estás tu a desculpar-te! Se não quisesse, não teria vindo, ou teria abreviado.
– Sabes o que se passa na Base? Há o campo kimbundo e o kikongo. Ambos os campos
desejam a nossa ruptura, para terem um chefe de fracção, pelo que entendi.
– À parte os elementos destribalizados, que são pela nossa união – disse Sem Medo.
– Exacto. A tensão tribal tem vindo a crescer desde a missão. Os kimbundos não estão
contentes por causa do que aconteceu ao Ingratidão e por causa do André...
– Lá nisso do André têm razão...
– Os kimbundos atribuem os erros todos ao André, mas também a ti. São os dois kikongos
mais em vista. Querem pois um conflito, de modo que eu tenha de me apoiar neles contra ti.
Os kikongos, por seu lado, defendem o André e querem que tu te coloques como o líder militar
kikongo que expulse os kimbundos do Comando.
– O azar dos kikongos é que não posso com o André e não o escondo.
– E o azar dos kimbundos é que entre mim e o Das Operações...
Riram os dois, como duas crianças que enganaram os pais. Muatiânvua e os companheiros
ouviram os risos e apertaram os braços uns dos outros.
– O Das Operações está a trabalhar na sombra – disse o Comissário. – Toda a tarde esteve
em conferência com os kimbundos, até mesmo com o Teoria... Chamou-o a sós!
– Ah, bom? O tribalismo nele é mais forte que o racismo? Não o pensava.
– Não é o tribalismo. É a ambição!
Sem Medo aprovou com a cabeça. O Comissário disse:
– Falou também a sós com o Mundo Novo, que depois me veio sondar. Como pensas que
joga o Mundo Novo?
– Acho que não se meterá nas coisas, desde que perceba que a base de tudo é tribalismo.
Talvez ainda não tenha topado muito bem e as complicações teóricas baralham-no...
Complicações que ele vê, mas que não existem, entenda-se! Esse moço é realmente um
teórico, mas tem estofo, gosto dele. Certamente pensa que sou um burguês, ele é o mais alto
expoente do vosso grupo de dogmáticos. Mas isso passa-lhe!
– Que devemos fazer? – perguntou o Comissário.
– Acho que o melhor é deixar andar – disse Sem Medo.
– Se vamos fazer uma reunião geral, como é do teu gosto porque isso vem no manual do
perfeito comissário, não vamos resolver nada, antes vamos dar razão aos que pensam haver
makas escondidas que pretendemos camuflar. Vamos deixar passar a vaga, preparar as coisas
para outra missão e depois reúne-se, quando o ambiente esfriar.
– Por uma vez estou de acordo contigo sobre a reunião. Mas como preparar a missão, se não
há comida?
– É verdade. Esse gajo do André... Temos de resolver isso em primeiro lugar. Não convém
que nenhum de nós abandone a Base. Vamos enviar o Das Operações a Dolisie. Já sei que vai
lá ficar uma semana, mas não há outra solução.
– OK.
– Desde que ele traga a comida, vamos fazer uma acção. A inactividade cria toda a espécie
de problemas. Como diz o Milagre, a guerra está fria, por isso a lei também fica fria! E só
poderemos vencer o tribalismo quando o povo de Cabinda começar a aderir. Mesmo a maka
entre kikongos e kimbundos aí fica menos aguda.
– Temos de ter muita cautela para não cometer uma injustiça que possa provocar uma
catástrofe. E dar sempre a entender que somos unânimes. Sobre o caso do Pangu-A-Kitina é
melhor deixar andar.
– É isso, Comissário. Mais nada?
– Não, o resto fica para depois, deves estar com fome.
– E estou mesmo. O papo abriu-me o apetite.
– A mim, levantou-me o moral.
– Comissário, então que significa o meu súbito apetite? Não é o mesmo?
Levantaram-se, rindo. Foram para a casa do Comando, livres como as volutas de fumo que
se libertavam na mata. Tranquilizados, Muatiânvua e os companheiros foram-se deitar.
Em breve soavam as palmas do toque de silêncio.
EU, O NARRADOR, SOU MUATIÂNVUA..
Meu pai era um trabalhador bailundo da Diamang, minha mãe uma kimbundo do Songo.
O meu pai morreu tuberculoso com o trabalho das minas, um ano depois de eu nascer. Nasci
na Lunda, no centro do diamante. O meu pai cavou com a picareta a terra virgem, carregou
vagões de terra, que ia ser separada para dela se libertarem os diamantes. Morreu num
hospital da Companhia, tuberculoso. O meu pai pegou com as mãos rudes milhares de escudos
de diamantes. A nós não deixou um só, nem sequer o salário de um mês. O diamante entrou-lhe no peito, chupou-lhe a força, chupou, até que ele morreu.
O brilho do diamante são as lágrimas dos trabalhadores da Companhia. A dureza do
diamante é ilusão: não é mais que gotas de suor esmagadas pelas toneladas de terra que o
cobrem.
Nasci no meio de diamantes, sem os ver. Talvez porque nasci no meio de diamantes, ainda
jovem senti atracção pelas gotas do mar imenso, aquelas gotas-diamante que chocam contra o
casco dos navios e saltam para o ar, aos milhares, com o brilho leitoso das lágrimas
escondidas.
O mar foi por mim percorrido durante anos, de norte para sul, até à Namíbia, onde o deserto
vem misturar-se com a areia da praia, até ao Gabão e ao Ghana, e ao Senegal, onde o verde
das praias vai amarelecendo, até de novo se confundir com elas na Mauritânia, juntando aÁfrica do Norte à África Austral, no amarelo das suas praias. Marinheiro do Atlântico, e
mesmo do Indico eu fui. Cheguei até à Arábia, e de novo encontrei as praias amarelas de
Moçâmedes e Benguela, onde cresci. Praias de Benguela, praias da Mauritânia, praias da
Arábia, não são as amarelas praias de todo o Mundo?
Em todos os portos tive uma mulher, em cada porto uma maka. Até que, um dia, estava eu
nos Camarões, ouvi na rádio o ataque às prisões, no 4 de Fevereiro. O meu barco voltava para
o sul e não cheguei a Angola. Fiquei em Matadi, ex-congo Belga. Lumumba tinha morrido, a
ferida sangrava ainda, a ferida só ficou sarada quando o 4 de Fevereiro estalou.
Onde eu nasci, havia homens de todas as línguas vivendo nas casas comuns e miseráveis da
Companhia. Onde eu cresci, no Bairro Benfica, em Benguela, havia homens de todas as
línguas, sofrendo as mesmas amarguras. O primeiro bando a que pertenci tinha mesmo
meninos brancos, e tinha miúdos nascidos de pai umbundo, tchokue, kimbundo, fiote,
kuanhama.
As mulheres que eu amei eram de todas as tribos, desde as Reguibat do Marrocos às Zulu daÁfrica do Sul. Todas eram belas e sabiam fazer amor, melhor umas que outras, é certo. Qual a diferença entre a mulher que esconde a face com um véu ou a que o deforma com
escarificações?
Querem hoje que eu seja tribalista!
De que tribo?, pergunto eu. De que tribo, se eu sou de todas as tribos, não só de Angola,
como de África? Não falo eu o swahili, não aprendi eu o haussa com um nigeriano? Qual é a
minha língua, eu, que não dizia uma frase sem empregar palavras de línguas diferentes? E
agora, que utilizo para falar com os camaradas, para deles ser compreendido? O português. A
que tribo angolana pertence a língua portuguesa?
Eu sou o que é posto de lado, porque não seguiu o sangue da mãe kimbundo ou o sangue do
pai umbundo. Também Sem Medo, também Teoria, também o Comissário, e tantos outros mais.
A imensidão do mar que nada pode modificar ensinou-me a paciência. O mar une, o mar
estreita, o mar liga. Nós também temos o nosso mar interior, que não é o Kuanza, nem o Loje,
nem o Kunene. O nosso mar, feito de gotas-diamante, suores e lágrimas esmagados, o nosso
mar é o brilho da arma bem oleada que faísca no meio da verdura do Mayombe, lançando
fulgurações de diamante ao sol da Lunda.
Eu, Muatiânvua, de nome de rei, eu que escolhi a minha rota no meio dos caminhos do
Mundo, eu, ladrão, marinheiro, contrabandista, guerrilheiro, sempre à margem de tudo (mas
não é a praia uma margem?), eu não preciso de me apoiar numa tribo para sentir a minha
força. A minha força vem da terra que chupou a força de outros homens, a minha força vem do esforço de puxar cabos e dar à manivela e de dar murros na mesa duma taberna situada
algures no Mundo, à margem da rota dos grandes transatlânticos que passam, indiferentes,
sem nada compreenderem do que é o brilho-diamante da areia duma praia.