Agora eu Morro

By fabiobrust

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Em uma grande cidade, quatro pessoas tentam sobreviver ao terrível ano de 2033, quando grande parte dos probl... More

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By fabiobrust

Estávamos um de frente para o outro. Ela continuava me olhando como se não acreditasse no que tinha acabado de ver. Mas sabia que era verdade.

— Não posso acreditar. — Murmurou.

Eu dei de ombros.

— Você pulou do Empire State e não tem nem um arranhão. Não acredito no que vi! — Ela riu.

— Eu pularia do Burj Khalifa, se ele estivesse inteiro. — Ele fora destruído quinze anos antes. Ainda me lembrava do dia da tragédia. Fora ainda pior do que quando caíram as torres gêmeas. Nestas, 3.234 pessoas morreram. O World Trade Center tinha 110 andares. O Burj Khalifa tinha 195 andares. Ainda me lembro do dia: 11 de Outubro de 2018. Não completou nem mesmo dez anos. Nesse desastre morreram 7.823 pessoas. Foi um dia desprezível, que afetou profundamente o desenvolvimento da cidade mais cheia de extravagâncias do mundo.

— O maior arranha-céu do mundo? — Perguntou ela, satisfeita por saber de que se tratava. — Conheço por causa dos livros. O que você quer dizer com "se ele estivesse inteiro"?

— Bem, ele foi destruído em um atentado há quinze anos.

— Destruído?

Concordei com a cabeça.

— Não nos ensinaram isso nas aulas do instituto — uma careta de surpresa. — Apenas disseram que era um prédio alto. Nada mais.

— Acho que não deram a vocês a informação mais importante.

— Que estranho. Por que não nos disseram isso?

— Quem sabe tenham tentado mantê-los afastados da tristeza, da pobreza, da desumanidade da humanidade. Se é que você me entende — eu disse. — Quem sabe eu preferiria viver dentro de um instituto no qual tudo que eles faziam era para meu bem. A não ser, é claro, tirar meus órgãos.

Ela riu ligeiramente.

— E isso não aconteceu com você. Então acho que deveria estar feliz. — Tentei animá-la.

— Acho que sim — resmungou, bebendo um gole de seu café. — Mas por que eles diziam tantas coisas boas a respeito da sociedade, e nada das ruins?

— Isso você tem de perguntar a eles.

— Nunca vou voltar àquele instituto.

— Não quer saber mais sobre isso? — Perguntei.

— Quem sabe outro dia.

— Porque vocês não se rebelavam?

— Não sabíamos que estávamos em um instituto.

— Ah, como naquele filme "A Ilha", não é?

Ela me encarou, confusa.

Algumas horas mais tarde estávamos com um aparelho de DVD em mãos, além do filme. Não era muito novo, e os aparelhos eram difíceis de conseguir, mas eu tinha um de trinta anos de idade. Fora no lançamento, mas o DVD logo se tornou obsoleto. O progresso do homem tornava tudo obsoleto. Até ele próprio.

Ela comentou o filme inteiro, mostrando coisas que eram parecidas entre a história e o que ela vivera no lugar. Pelo que me pareceu, os homens que a haviam criado tinham se inspirado no filme. As coincidências eram muito grandes.

— Não sei como as pessoas de hoje não impedem essa história de clones, como acontece no filme, depois que descobrem que eles têm vida e alma. — Comentou.

— Você acha que as pessoas se preocupam umas com as outras? — Perguntei, mas ela não respondeu. — Elas só pensam em si mesmas. A humanidade de hoje é egoísta. E daí que uma pessoa terá de morrer para que eu continue vivo? Eu vou continuar vivo, então não há problema. Os valores mudaram, Char. As pessoas não são mais as mesmas.

Ela ficou calada por alguns segundos.

— Do que você me chamou?

— Eu? De nada.

— "Char". Você me chamou de "Char".

Encarei seus olhos grandes e emotivos. Havia mesmo chamado ela de Char. Não sei por que as lembranças haviam voltado naquele momento. Mas havia a chamado pelo nome da única pessoa que amara até aquele momento.

Char.

— O que é "Char"? — Ela perguntou, esquecendo da história do filme.

— É um nome. — Eu disse, em voz baixa.

— É um bom nome. De onde você o tirou?

— Não importa.

— Quem sabe eu possa usá-lo — ela falou em voz alta, mais para si mesma do que para mim. — É um nome diferente. Combina comigo.

— Acho que você não deveria usar esse nome.

— Por quê?

— Não é bom nome.

— Claro que é! Se não, porque me chamou disso? A partir de agora, meu nome vai ser Char. Apenas Char!

— É um nome velho. Você não vai querer usar um nome velho.

— É novo para mim.

— As outras pessoas vão estranhar.

— Até parece que as outras pessoas me importam. Ouvi dizer que a moda é dar nomes com consoantes no final para bebês. Nada melhor do que Char — ela parecia orgulhosa por ter encontrado um nome. — O que há de errado nele? Traz más lembranças a você, quem sabe de um passado de quinhentos anos atrás?

— Não quero falar a respeito.

— Quem sabe seja sua mulher, morta muito tempo atrás? — Ela falou, num tom estranho.

— Foi.

Ela fechou a cara.

— Desculpe.

— Está bem — apoiei os cotovelos na mesa e a cabeça nas mãos, olhando para baixo — Pode usar o nome, se quiser. Não me importo.

— Não... acho que é melhor não.

— Faço questão.

— Está bem.

Foi um momento de tensão, no qual achei que ela levantaria e iria embora, com medo de mim. Logo depois, porém, apenas pegou sua xícara e bebeu seu conteúdo, sorrindo.

— Char. — Testou a palavra,satisfeita. 


***


— Você tem alguém no mundo?

Simplesmente fiz uma careta irônica.

— Ah, claro. Desculpe pela pergunta. Eu também não tenho ninguém. Quem sabe pudéssemos ter um ao outro.

Engoli em seco. A proposta era extremamente ingênua. Por alguns segundos acreditei que estava falando de companheiros sexuais, ou coisa parecida. Logo em seguida, entendi que estava apenas se referindo a ter alguém consigo. Literalmente.

— Eu... não sei...

— A decisão é sua — ela disse. — Não quero forçá-lo a nada. Afinal de contas, o que você faz diz respeito apenas a você mesmo... e acho que não devo me meter nas suas escolhas. Mas também acho que seria maravilhoso ter alguém com quem compartilhar tudo. Tudo, digo, as situações do dia-a-dia, comida, água... o que você quiser.

— Não estou preparado para... viver assim.

— É claro que está! — Ela disse.

Tentara me livrar dela por algumas vezes. Já estávamos há uma semana juntos. Ela me seguia para todos os lados e, quando eu ficava parado, insistia para que fizéssemos alguma coisa. Por algum motivo, eu estava gostando da presença dela. Apreciava o fato de sempre poder contar com ela para o que quer que viesse em meu caminho. Mesmo não havendo muitas mais coisas nele.

— Você nem me conhece.

— Exatamente — ela sorriu outra vez. — Por isso mesmo é que deveríamos ter um ao outro. Quero conhecê-lo.

— Algum motivo em especial?

— Não.

— Está bem.

— Podemos ficar juntos?

— Sim. Teremos um ao outro.Até que você morra, estarei ao seu lado.


***


— Onde vamos dormir?

Fizéramos isso diversas vezes na rua, por mais que ela tivesse medo. Eu disse que a protegeria. Alguns tarados e ladrões tentaram nos atacar, mas os afastei com facilidade. A casa da original de Char era longe. Ela viera de avião para Nova York, como uma turista. Mas agora estava um tanto perdida.

Eu normalmente ficava na rua ,durante as noites. Não dormia. Com ela, não poderia ficar para sempre vagando pelas ruas. Precisava de algum lugar.

— Não sei. Não gosta de dormir na rua? — Perguntei.

— Já disse que não sou muito de dormir em qualquer lugar. No instituto, estávamos seguros.

— Eu cuido de você.

— Mesmo assim — ela disse, séria. — Além do mais, há bandos de homens espalhados por toda essa cidade. Eu já vi você os espantando durante a noite.

— Tarados.

— O quê?

— Homens que querem... abusar sexualmente de você.

— Você não é um tarado, é? — Perguntou ela, depois de uma breve e cômica expressão de espanto.

— Você foi atrás de mim, não o contrário. Como eu poderia ser o tarado? É mais provável que você seja a tarada. — Ironizei.

Remexi em meus bolsos, à procura de dinheiro.

— Tenho algumas moedas. Podemos ficar em algum hotel pequeno e sem luxo nenhum. Quem sabe um meia-estrela aceite uma mulher "pobre" e um mendigo esfarrapado — fingi refletir. — Ou não.

— Eu durmo em qualquer lugar — ela disse. — Menos na rua. — corrigiu-se.

— Que tal um banco de praça?

— Sem chances.

— Vamos até lá, de qualquer maneira.

— Lá, onde?

— Acabei de lembrar de algo.

Algumas horas depois, estávamos hospedados em uma suíte do The New York Palace, quem sabe o melhor dos hotéis de Nova York. Ficamos com um dos melhores quartos, no topo, além de ter um terraço individual. Era onde estávamos sentados, olhando para os prédios iluminados à volta e comendo uma refeição trazida pelo serviço de quarto.

— Porque você é um mendigo, se tem tanto dinheiro?

— Tenho cara de mendigo?

— Sim.

— Acho que prefiro uma vida mais comum do que uma cheia de luxo. Tudo que quero é morrer. Sendo assim, não preciso me preocupar com aparências ou status. Se quiser morrer, conforto é tudo de que não preciso. Nunca fui rico.

— Aonde foi que você arranjou esse dinheiro?

— Roubei e enterrei. Não se preocupe. Foi muito tempo atrás.

Ela riu.

— É sério. Passei alguns anos na cadeia por isso. Mas agora estou aqui. E pareço bem, mesmo depois daquele período enclausurado. De qualquer maneira, o que são alguns anos para mim?

Ela ficou boquiaberta. Quem sabe eu devesse ter mentido.

— Você realmente roubou esse dinheiro?

— Sim. Mas não me julgue.

Ela suspirou.

— Sinceramente, eu nem lembrava dele. Lembrei agora.

— Você passou alguns anos na cadeia por ter roubado isso e depois simplesmente esqueceu? — Ela perguntou. — Não consigo acreditar.

— Apenas acredite. — Eu disse.

Ela tentou sorrir.

— É uma pena que estejamos em Nova York. — Ela disse, depois de algum tempo. Olhei para ela, surpreso, mas estava com os olhos virados para o céu. Ou o que podíamos ver dele, entre os topos dos edifícios.

Apenas esperei que ela continuasse.

— Sempre achei que esses prédios, essas construções, seriam maravilhosos. Agora vejo que o que há de mais bonito na noite está escondido. Atrás de tijolos, concreto, vidro, há um céu lindo. Mas não conseguimos vê-lo.

— Eu sempre gostei do céu estrelado. — Concordei, mesmo sabendo que há muito não tinha interesse nesse tipo de coisa.

— Aqui não podemos ver sua beleza. Queria conseguir ver a Lua. Ela sempre me traz coisas boas, é tão bela. Me faz pensar em como somos pequenos. Você não acha? — Parou por alguns segundos. — A luz é tão grande, tão solitária, tão bonita... e, mesmo assim, são poucos os que realmente olham para ela com a devida atenção.

— É verdade. — Me empertiguei, sentado no chão.

— Você entende o que quero dizer?

Em milésimos de segundo, todo aquele momento pulsou em minha cabeça. Aproximei-me dela lentamente, olhei para o céu e sussurrei em seu ouvido:

— Você está vendo? A lua está mais alta no céu, agora.

O brilho branco do astro iluminou nossas faces. Maravilhada, ela abriu a boca para falar alguma coisa. Desistiu logo depois. Cheguei mais perto. Ela suspirou conforme o satélite se mostrava para nós, imune aos prédios e à atividade humana. Surpreendi-me com a facilidade com a qual ela tinha feito com que me apaixonasse por ela.

— Ela não te faz pensar? — Ela perguntou.

— Faz.

— É linda.

Eu olhava em seus olhos, mas ela não percebia. Estava perplexa com a luz do satélite. Puxei seu rosto com delicadeza pelo queixo. Seus negros olhos soltaram-se do céu e viraram para me encarar, ao mesmo tempo perplexos e calmos.

— Ela é linda. Mas a beleza dela não se compara à imensidão da sua.

Sorriu timidamente. Aproximei-me lentamente dela, ainda segurando seu queixo. Fiquei perto dela, sorvendo seu ar por alguns segundos, percebendo sua respiração ficar mais rápida. Parei de respirar e fechei os olhos, aproximei a boca da dela e a beijei.

Era certeza que ela me lembrava a antiga Char. Seu beijo era quente e aconchegante. Ela era a melhor coisa que me acontecera em anos. As únicas mulheres que jamais tinha amado se chamavam Char. As outras eram apenas um passatempo.

Ela me beijava apaixonadamente, eu finalmente larguei seu queixo e pus a mão em sua barriga e cintura. Fazia muito tempo que não sentia aquilo.

Ela se desgrudou de mim.

— O que você está fazendo? Sempre disseram que amor é para sempre, no instituto. Diziam que não deveríamos fazer algo em nome do amor, porque ele não existe. E, além do mais, eu te conheci há apenas uma semana. Você é um mendigo ladrão, imortal...

Voltei a beijá-la.

— ... eu não te conheço... e... você é estranho, é imortal...

— Já terminou?

Ela suspirou e sorriu.

— Acho que sim.

— Você também é muito estranha. É uma pessoa diferente de todas as outras, porque é um clone. Provavelmente vai morrer logo, por isso eu não deveria me envolver com você. Será uma decepção gigantesca quando você morrer. E o pior de tudo é que você é tão anormal, tão diferente, que em sete dias conseguiu fazer coisas que ninguém conseguiu em muitos anos. Em sete dias me fez ficar apaixonado.

Encarei-a ternamente. Ela olhou para o chão e então me encarou também, sorrindo.

Sorri de volta, tornando abeijá-la.


***


— Nunca senti nada assim.

Eu nada disse. Já havia sentido aquilo, mas apenas uma vez. Era bom sentir paixão, amor, depois de tanto tempo assim. Deitei cuidadosamente o corpo dela no colchão do quarto.

Toquei seu pescoço carinhosamente com os lábios.

— Já sentiu isso? — Ela perguntou.

— Sim.

— É amor?

— Não sei. Isso é com você.

— Acho que é amor. — Disse, aconchegando-se.

Ficou alguns segundos me beijando. Eu imaginei se aquele era o primeiro beijo da vida dela e me surpreendi pensando que seria plausível.

— Eles sempre disseram que amor é eterno. Será que isso que estou sentindo agora é eterno? Será isso eterno? — Não me dei o trabalho de responder. Sabia que ela estava pensando em voz alta.

Desci com a boca e continuei a beijando, puxando sua blusa para cima.

Subi outra vez e olhei dentro dos olhos dela.

— Eu te amo. Isso basta?

— Sim.

Sobre aquele colchão fiz amor com ela. Aquele momento resumiu tudo que eu havia sentido em muitos anos, mas que ficara aprisionado dentro de mim. Estava finalmente sentindo alguma coisa. Prazer? Amor? Paixão?

Não sabia exatamente o que era, mas estava sentindo novamente. Depois de tantos anos passados na solidão vazia do suicídio, finalmente encontrara um motivo para não me matar. Mesmo ele sendo temporário.

— Por que está triste? — Ela perguntou, aproximando-se de mim. Encarávamos um ao outro. Meu rosto deveria estar expressando o que sentia. Fora uma semana difícil. Não estava acostumado àquele tipo de coisa.

— Você vai morrer.

Ela esboçou espanto.

— Porque está pensando nisso?

— Você vai morrer. E eu ficarei vivo.

Ela segurou minha cabeça e beijou-me como uma mãe ao filho. Então sentou na cama e carinhosamente colocou minha cabeça em seu ombro e peito, me tranquilizando. Ela não sabia o que fazer além disso. Afagou o topo de minha cabeça e sussurrou:

— Juro que não vou morrer.

E, ainda assim, nem umalágrima caiu de meus secos olhos.   

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