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No outro dia, nosso trabalho foi procurar por provisões. Os sobreviventes do shopping conseguiam sobreviver bebendo a pouca água que encontraram no lugar, mas não era o bastante para todos. Ainda tínhamos as quatro garrafas que trouxéramos conosco e bebíamos com cuidado, mas dentro do avião precisaríamos de mais. E, também, de comida.

Encontrar mantimentos não foi a coisa mais fácil da face da Terra, mas também não foi tão difícil. Não havia sedentos, exceto pelos já mortos, então não precisávamos ficar atentos a todo instante. A tarefa, no entanto, era tão complicada quanto procurar por sobreviventes em Nova York.

Ainda assim, ao final do dia encontramos mais quatro garrafas, e nelas colocamos toda a água que encontramos. No fundo de um refrigerador apagado há muito tempo, Char achou um suco vencido, mas lacrado. Também conseguimos arranjar alguma comida e um aparelho de micro-ondas em bom estado. O centro comercial tinha energia de geradores, então preparamos refeições que há meses não comíamos. A noite transcorreu tranquila, ainda que houvesse a perspectiva de uma grande viagem próxima. Sairíamos no dia seguinte.


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— É estranho eu me sentir uma contraventora por não ter passado pela segurança? — perguntou Yuma, dando uma risada.

O aeroporto internacional da Filadélfia era grande e estava completamente vazio, exceto por alguns corpos encolhidos juntos em um canto, como se tivessem morrido de frio, não de sede. Imaginei o que aconteceria conosco naquele inverno.

Os invernos tornaram-se cada vez mais frios e, os verões, cada vez mais quentes. O inverno de 2033 provavelmente seria o pior de todos. Se dependesse de mim, preferiria estar morto quando ele chegasse, mas sabia que antes teria de encontrar alguma maneira de morrer.

John demorou-se um bom tempo decidindo que tipo de avião seria o ideal para a viagem. Ele parou várias vezes em frente a diferentes aeronaves, e na maior parte delas parecia não estar de fato refletindo a respeito de suas vantagens ou desvantagens, mas admirando a própria capacidade de simplesmente escolher uma e decolar. Decolar sem qualquer impedimento, sem qualquer documento, simplesmente voar para longe dali. Não que ele tenha dito qualquer coisa do gênero, é claro.

Por fim, o homem escolheu um jatinho não muito grande, mas com tamanho suficiente para viajarmos com conforto. Pelo que o piloto dizia, era um modelo antigo, que funcionava com combustíveis tradicionais. Não haviam conseguido construir um avião que funcionasse apenas com eletricidade devido ao tamanho que as baterias precisariam ter. Fizeram uma única tentativa. O avião se espatifou no chão com piloto e copiloto. Os dois morreram. Depois disso não houve mais voluntários para testar protótipos.

Sentei perto da janela. Partimos ao entardecer.

Logo o jato cortava a noite com suas asas longas e turbinas potentes. Os novos aviões rompiam a barreira do som com tranquilidade, mas este não. No começo, houve protestos a respeito do estrondo sônico, e então os aviões que ultrapassavam a barreira só foram permitidos em voos sobre água, onde eles poderiam realizar tantos estrondos sônicos quanto fossem necessários. No oceano, ninguém reclamava de vidros quebrados.


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— Que tal conversarmos um pouco? — disse Gustav, saindo da cabine. Pelo tom dele, eu poderia jurar que o piloto lhe dissera que era bom que viesse falar conosco usando um tom gentil.

Ninguém respondeu nada e, pelo que parecia, o homem viera com um roteiro do que iria dizer. Ele aguardou por alguns instantes, então olhou para fora da janela e, sem jeito, sentou-se em uma das poltronas viradas na direção do nosso grupo.

— Você é... japonesa?

— Sim — concordou Yuma, que levantou os olhos rapidamente e decidiu responder para que não ele se sentisse mal.

— Eu notei alguma coisa no seu sotaque. Mas é muito sutil.

Ela deu um sorriso, tentando ser simpática ao mesmo tempo em que não sabia o que mais dizer.

— Por que você viajou para tão longe?

— Vim com os meus pais, muitos anos atrás. Eles eram muito cautelosos. Não queriam se envolver na guerra que estava prestes a se formar, então viemos para os Estados Unidos. Compramos um apartamento aqui com as economias da família. Tudo o que pudemos bancar foi um apartamento pequeno e nos contentar com ele. Ficava na periferia, mas não era um problema, até porque só pretendíamos ficar cinco anos, esperando a guerra terminar... — Ela deixou a conclusão da frase no ar.

— E como chegou aqui? — perguntou o homem.

Yuma hesitou a princípio. Então começou a falar.


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Yuma foi a primeira a se juntar a nós.

Na época, era uma estudante. Estava na Biblioteca Central de Nova York quando estourou a crise mundial. Como "crise", entenda-se o aparecimento dos sedentos e a bomba de hidrogênio lançada na Europa. Na verdade, o aparecimento dos sedentos foi um processo um pouco mais lento do que se pode imaginar: demorou um mês a partir da explosão da bomba, e foi justamente por causa dela que eles apareceram. Yuma estava na biblioteca quando a bomba foi lançada.

A Alemanha, é claro, estava envolvida: tinha acumulado em suas terras um reservatório de água que outros países da Europa acharam tratar-se de uma forma de autoafirmação, uma declaração de que força e poder.Quando foi necessário dividir, no entanto, o país decidiu que a água do reservatório não era propriedade da União Europeia, mas do povo alemão, que a recebia uma vez por semana em grandes galões plásticos em suas casas. Isso era um luxo exagerado.

Claro que, no começo, a crise foi diplomática através de negociações bonitinhas e reuniões de cúpula para decidir o assunto. A Alemanha, porém, se recusava a ceder, afirmando que aquele recurso era sua propriedade e de seu povo. Sempre disseram que os alemães eram patrióticos demais. Isso fez com que o país fosse destruído, é claro.

Os esforços foram em vão. Em 21 de Setembro de 2032 foi lançada uma bomba de hidrogênio que equivalia a 750 bombas nucleares. Supostamente a ideia era apenas lançar um aviso, pois existiam armas ainda mais potentes do que essa. Na verdade, a intenção era eliminar a nação para que fosse possível tomar posse do reservatório. A bomba foi lançada em cheio sobre Berlim e explodiu toda cidade, assim como grande parte do país, lançando radiação para todos os lados e gerando os "mutantes" que chamávamos de sedentos.

E, também, destruindo o reservatório de água.

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