Odeio ser desmancha-prazeres — Tyler comentou em voz baixa de modo que apenas Emily pudesse ouvi-lo —, mas temos de levar isso? — e apontou para os objetos de plástico que Helga carregava no velho carrinho de compras.
— É claro que sim — Emily respondeu com firmeza. — Esses são todos os bens que ela possui.
— Mas... — Odiava a idéia de enfiar todo àquele lixo malcheiroso no porta-malas de seu automóvel. — Tenho uma infinidade de objetos de plástico em minha casa, todos novos e limpos. Ela pode ficar com todos, se quiser.
— Não seria a mesma coisa.
É claro que não. Tinha uma sogra há menos de dez minutos e ela já estava ameaçando enlouquecê-lo.
— Bem, vamos lá — Tyler murmurou, preparando-se para acomodar todo o lixo de Helga no porta-malas.
— Ei, cuidado com minhas coisas, seu cabeça-oca! Nem pense em estragar alguma coisa!
— Oh, eu nem sonharia com isso — ele respondeu mal-humorado. Estava começando a suspeitar de que havia cometido o segundo grande engano do dia. Seria capaz de ensinar essa maluca a falar como uma mulher decente? Tivera uma infância difícil, praticamente uma criança de rua, mas chegara ao topo graças à própria inteligência e ambição. Poderia encontrar as mesmas qualidades nesse estranho trio?
Não tinha importância. A única coisa que importava era tirar Roxanne de seu caminho. Estava desesperado a ponto de acreditar que essa farsa funcionaria.
Terminada a odiosa tarefa, Tyler limpou as mãos na calça e virou-se para Emily.
— Pronto — anunciou. — Onde estão suas coisas? Emily o surpreendeu com a beleza de seu sorriso. Apesar da sujeira e do cansaço, algo nessa mulher sugeria classe. Estranho como uma mendiga de beira de estrada podia ter mais classe num dedo da mão do que Roxanne em todo o corpo.
Segurando um caderno espiral numa das mãos e a mão da garotinha na outra, ela respondeu:
— Essas são minhas coisas.
— Só isso? — Como alguém conseguia sobreviver tendo apenas um caderno? E para que precisava daquilo?
— Sim, só isso. Estamos prontas para ir.
Ela sorriu novamente, ajeitou os cabelos sujos e a roupa amarrotada, e Tyler ficou surpreso com a elegância de seus gestos. Adoraria saber como Emily se tornara uma sem-teto.
Sorrindo, ele anunciou:
— Também estou pronto.
— Então pare de olhar para Emily e ponha seu maldito traseiro no carro! — Helga gritou. — Não temos a noite toda. Ainda tenho de montar acampamento quando chegarmos a sua casa. Mexa-se! — e, jogando o banco do motorista para a frente, ela acomodou-se no assento traseiro sem fazer cerimônia.
— Vou precisar de algum tempo para me acostumar com sua mãe. — Pior seria convencer Roxanne de que se casara com alguém dessa família.
Emily ajudou Carmen a entrar no carro enquanto respondia:
— Oh, ela não é minha mãe.
— Não?
— Não. E é melhor partirmos de uma vez, porque ela tem muito o que fazer antes do anoitecer.
Tyler entrou no carro e voltou para a estrada movimentada, oh objetos de plástico chacoalhando em seu porta-malas.
Embora estivessem viajando por alguns minutos, para Emily parecia uma eternidade. Por que diabos demoravam tanto a chegar? Tyler dissera que estavam perto.
Notando a tensão no rosto do motorista, ficou subitamente preocupada. O que sabia sobre esse homem? E se ele fosse uma espécie de assassino perigoso? Nervosa, olhou para o velocímetro e imaginou como conseguiria tirar Helga e Carmen do banco traseiro a setenta quilômetros por hora.
Carmen espirrou e Emily resignou-se com o destino, decidida a assumir os riscos com esse estranho. Afinal, essa era a essência de ser um sem-teto, não? Viver correndo riscos? Se queria que sua tese fosse autêntica, tinha de enfrentar a dura realidade das ruas.
Mais uma vez, olhou para o belo rosto do motorista e tentou adivinhar o que um homem elegante e fino como ele poderia querer com uma pessoa da rua. Não conseguira grandes explicações sobre o tal trabalho, e sabia que ele estava escondendo alguma coisa. Talvez fosse um pervertido, um maníaco sexual...
Que piada! Nem um maníaco sexual se interessaria por uma mulher suja, descabelada, de unhas quebradas e sem maquiagem. Se ao menos tivesse um batom...
Mas o que estava pensando? O que faria com um batom nas circunstâncias que enfrentava? Não queria saber se o belo estranho a considerava atraente ou não. Não. Estava ali com um único objetivo. Conseguir ajuda para Carmen e Helga e reunir material para sua tese.
Tyler devia ter sentido seu olhar curioso, porque virou-se e sorriu. E, de repente, por razões que não conseguia imaginar, Emily soube que estavam seguras.
Simplesmente sentia, da mesma forma que pressentira o desespero desse homem naquele acostamento. Mesmo depois de uma semana de pesadelo nas ruas de Los Angeles, ainda se comovia com os que precisavam de sua ajuda. Mas que tipo de problemas teria o tal Tyler Newroth?
— Estamos chegando. Mais dez minutos e estaremos em casa — ele avisou em voz baixa, temendo despertar Helga, que roncava no banco de trás. — Espero que não repare na bagunça. Acabei de me mudar de Boston, e ainda não terminei de arrumar as coisas.
— Por isso precisa de ajuda? Para terminar de arrumar sua casa?
— De certa forma, sim. Explicarei tudo assim que estivermos em casa. É realmente uma longa história.
O estômago de Emily escolheu justamente esse momento para roncar, deixando-a mortificada.
— Que tal uma pizza? — Tyler sugeriu.
— Perfeito.
Usando o telefone do carro, ele entrou em contacto com a pizzaria mais próxima de sua casa e fez o pedido.
— Que sabor prefere?
— Qualquer um — Emily suspirou, sonhando com uma refeição quente.
— É melhor pedir duas, não?
— Pelo menos — Emily concordou. Seria capaz de comer uma pizza inteira sozinha, e sabia que Helga não faria cerimônia.
Minutos depois Tyler acionava um botão ao lado do espelho retrovisor e abria os imponentes portões de uma mansão. Boquiaberta, Emily resistia ao desejo de beliscar-se para ter certeza de que não estava sonhando. De onde estavam era possível ver a piscina bem cuidada, um quiosque e um grande pátio que devia abrigar festas maravilhosas.
— A pizza chegará em meia hora — Tyler avisou ao desligar o carro. — Tempo suficiente para acomodá-las.
— Sem dúvida. Por que não tira as coisas de Helga do porta-malas, enquanto acordo essas duas?
— Parece uma boa idéia — ele riu, aceitando a sugestão.
— Venha, meu amor — Emily murmurou, erguendo Carmen nos braços. — Estamos em casa.
— Ei, ei, ei! — Helga gritou. — Eu disse para tomar cuidado com as minhas coisas! O que está tentando fazer?
Tentando entender o comportamento de Helga, normalmente pacífica e amiga, Emily esperou que ela descesse do carro para aproximar-se.
— O que está fazendo? — sussurrou, a testa franzida.
— Vendo do que ele é feito — Helga piscou. — Quero testá-lo para ter certeza de que é um bom rapaz.
— Pois trate de ir mais devagar com esse teste, ouviu bem? Precisamos de remédios para Carmen.
— Deixe comigo.
— Ela é sempre assim? — Tyler perguntou a Emily assim, que Helga afastou-se alguns passos.
Emily surpreendeu-se mais uma vez com a aparência de Tyler. Havia algo de vulnerável por trás da fachada de empresário bem-sucedido, algo terno e carinhoso.
— Não — ela respondeu com um sorriso. — Às vezes Helga é pior.
— Ótimo. Simplesmente ótimo. Roxanne vai adorar. Venha, vou levá-las ao quarto.
Roxanne? Sim, é claro. Por que não pensara nisso antes? Ele era casado. Lutando contra uma inexplicável onda de melancolia, Emily segurou a mão de Carmen e seguiu o dono da casa. Que diferença fazia se ele era casado ou solteiro? Não estava diante de nenhum cavaleiro de armadura prateada. Além do mais, só aceitara a proposta do sujeito para conseguir ajuda para as duas amigas, não para bancar a donzela desamparada.
E quanto a Will? Já estava interessada num homem. Will Spencer, o homem para quem trabalhava como babá durante este verão, ou melhor, trabalhara, até a universidade solicitar os resultados de sua pesquisa com três meses de antecedência. Will acreditava que ela ainda estivesse lá, desempenhando seu trabalho. E estava... na pessoa de sua irmã gêmea. Gostaria de saber como Erica estava se saindo em Harvest Valley, ocupando seu lugar. Bem, provavelmente. Além do mais, Will jamais prestara muita atenção nela. Sua paixão por ele sempre havia sido unilateral. Não, Will jamais perceberia a diferença. Era engraçado como quase não pensara nele desde sua partida.
— La casa es muy bonita — Carmen dizia entusiasmada, puxando sua mão e espirrando várias vezes, os olhos bem abertos captando todos os detalhes do interior da mansão, j
— Qual é o problema com ela? — Tyler perguntou.
— Um vírus, acho.
— Não! Quero dizer, por que ela está falando desse jeito?
— Em espanhol, você quer dizer?
— Espanhol? Ela fala espanhol?
— Sim, ela é mexicana.
— Que maravilha! Uma filha que fala espanhol. Roxanne vai morrer de rir.
Que história era essa de filha? Esse homem e sua esposa queriam uma filha? Não conhecia essa tal Roxanne, mas tinha a impressão de que ela não era exatamente o tipo maternal.
Tyler suspirou.
— Bem, não cheguei ao lugar em que estou sem ter aprendido a resolver um problema tão simples como um idioma estrangeiro. Disse que ela tem um vírus?
— Acho que sim. Ela teve febre ontem à noite, e está espirrando e tossindo há alguns dias. Receio que o quadro piore se ela não for medicada com alguma urgência.
— Temos um médico na Connstarr que costuma atender os funcionários em suas casas. Vou telefonar para ele assim que terminar de acomodá-las.
— Obrigada — Emily suspirou, notando que Carmen esfregava os olhos sonolenta. Passava das sete da noite. Talvez o médico não atendesse a esta hora. Esperava estar enganada, pois sabia que não seria capaz de dormir enquanto Carmen não fosse examinada e medicada. Desta vez foi o estômago da menina que apresentou-se.
— A pizza já deve estar chegando — Tyler comentou com um sorriso compreensivo. — Venham, os quartos ficam no segundo andar — ele indicou, dirigindo-se à escada.
Antes que houvesse chegado ao terceiro degrau, a porta da frente se abriu e Helga invadiu o hall da mansão com seu amontoado de lixo.
— Onde ponho essas coisas? — ela gritou, olhando em volta com curiosidade.
Tyler olhou para o carrinho repleto de objetos plásticos, suspirou e respondeu:
— Venha por aqui.
— Que diabos ela está fazendo? — Tyler perguntou, equilibrando três pizzas.
Emily o empurrou para fora do quarto de Helga e fechou a porta.
— Ela está... construindo o ninho — explicou.
— Ninho? Para quê? Ela tem uma enorme cama de casal com lençóis limpos bem no meio do quarto! Por que precisa de uma barraca imunda?
— Porque foi nessa barraca imunda que ela passou os últimos anos. É como uma criança com seu cobertor, entende? Deixe-a seguir os próprios hábitos, por favor.
Uma sogra lunática e uma filha que falava espanhol, Roxanne teria um dia inesquecível!
— Está bem... — ele suspirou. — Traga a criança e a velha maluca para a cozinha. O jantar está servido. Conversaremos sobre seus novos deveres depois de comermos.
Emily parecia tão grata que Tyler sentia-se culpado por ter reclamado da confusão no quarto de Helga. Por que ficava tão confuso cada vez que ela sorria?
Emily jamais havia comido uma pizza tão deliciosa. A única pessoa capaz de comer mais depressa e com maior apetite era Helga.
— Vai comer isso? — a velha perguntou, apontando para uma beirada de massa no prato de Tyler.
— Não, não... Sirva-se.
— Obrigada. — Helga enfiou a massa na boca e piscou para Emily.
Tinha de admitir que admirava a maneira como Tyler estava lidando com Helga. Ela o infernizara durante todo o jantar, e era evidente que estava rendendo-se lentamente ao charme do dono da casa.
— Bem, vou levar nossa amiga Carmen para a cama — Helga anunciou enquanto levantava-se da mesa. — Já passou da hora de uma criança estar dormindo.
— Tem razão — Emily concordou. — Obrigada, Helga, e boa noite.
Tyler a observava intensamente. Gostaria que ele dissesse de uma vez o que esperava dela, pois a expectativa estava mexendo com seus nervos.
Num esforço para quebrar o gelo, decidiu agradecer por ele ter providenciado a visita do médico com tanta rapidez. Sentia-se muito melhor agora que sabia que Carmen não tinha nada mais sério.
— O médico disse que Carmen vai ficar boa — começou. — É apenas um resfriado, e ela já está superando a pior fase. Não sabia que os médicos ainda faziam consultas domiciliares — disse, sem entender por que ele a fitava com tanto interesse.
Tyler sorriu.
— É bom saber que ela vai ficar boa, porque amanhã todos nós teremos um dia cheio — ele disse, amassando o guardanapo de papel e jogando-o dentro do prato. Em seguida ele recostou-se na cadeira e cruzou as mãos sobre o estômago. Interpretando a expressão confusa de Emily, ofereceu mais um sorriso e comentou: — Deve estar imaginando por que a trouxe aqui.
— Para ser franca, sim. — Impossível evitar o medo e a ansiedade.
— Boa pergunta — Tyler suspirou, estudando seu rosto com ar crítico. — Por que a trouxe aqui? — ele repetiu a pergunta, os olhos fixos no teto como se buscasse respostas para as próprias dúvidas. — Bem... — começou, voltando a encará-la. — Resumindo, eu a trouxe aqui porque preciso de uma esposa.