🌸| Vozes
Quando tudo estava quase pronto, me dispus para arrumar a mesa. Coloquei duas taças, acendi velas, e os melhores pratos e talheres que temos. Tudo para deixar bem perto da experiência de um restaurante, por mais que eu estivesse ansiosa para jantar com minhas amigas, eu prefiro estar a sós com a Dahlia e aproveitar nosso momento.
Ela se aproxima com a bandeja cheia dos bolinhos feitos, e põe sobre a mesa.
— Está pronto nossos burritos. — Sorri orgulhosa olhando para sua obra gastronômica.
— O cheiro está ótimo. — Sinto o aroma pairando com o vapor que saía por estar quente ainda.
Dahlia afasta a cadeira para mim e me sento com um sorriso bobo, agradecendo. Ela coloca um pouco de vinho em cada taça e erguemos fazendo um brinde.
E quando se trata de comida, surge Texis e Jebuff. O papagaio pousa em cima de uma cadeira, enquanto o gato se senta e dá um miado sem tirar sua atenção dos burritos.
— Eu quero! — Jebuff exclama.
— Vai ficar querendo. — Dahlia Caçoa enquanto serve nós duas.
— Chata!
— Calma, ela só está brincando. — Dou uma curta risada, e repreendo ao vê-la negando em silêncio.
Pego um prato e divido um burrito no meio, e coloco no chão para os dois conseguirem comer com mais facilidade.
— Esses interesseiros só vem aqui quando tem comida. — Resmunga.
— É compreensível. — Dou a primeira mordida sentindo a explosão de sabores em minha boca. — Eles não tem comidas gostosas no inferno.
Ela concorda em silêncio por estar com a boca cheia. De repente, me sinto observada, e cruzo meu olhar com os dois ao meu lado. Noto que o prato já estava vazio, e pelo visto eles querem mais.
Comprimo meus lábios em um sorriso, e não resisto em ver um gatinho muito adorável com a fuça suja, e um papagaio com migalhas no bico. Seria desumano da minha parte negar algo para essas criaturinhas.
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Dia seguinte…
Infelizmente, meus dias de folga acabaram, e terei que voltar para aquele bar. O problema não é nem o trabalho, é lidar com aquele merda que recebo ordens.
Com esse tempo, entendi que é necessário um gatilho para o pecado se proliferar. Como, por exemplo, a luxúria, que só por estar perto de Celeste que sinto meu corpo reagir diferente, a ponto de minha cabeça doer na tentativa de eu tentar fazer parar. A irá se torna bastante presente por eu naturalmente me irritar facilmente com as coisas, e agora com um demônio para fazer meu corpo borbulhar de raiva, é difícil controlar, me recordo até de quando tentava controlar aquela fera em que eu me transformava. O orgulho me faz não querer nenhum tipo de ajuda em relação a isso, o restante dificilmente se manifesta por falta de gatilhos.
Visto minha calça jeans escura, uma jaqueta curta de couro e botas com um pequeno salto. Geralmente, é o que costumo vestir, e antes que eu saia de casa, preciso saber se a Celeste quer que eu a busque antes de eu ir trabalhar. Deste, aquele ocorrido com ela, prefiro acompanhá-la, não sei se vai surgir mais daquelas mulheres malucas. Mas, pelo visto, ninguém mais comenta sobre eu ser um demônio, deste que desmenti toda a história.
Ligo para Celeste, e sou atendida rapidamente.
— Oi amor. — Escuto barulho de chaves ao fundo.
— Oi docinho, quer que eu te busque?. — Pergunto pegando minha bolsa.
— Não precisa, passarei em um lugar com a Mia e vamos para casa juntas de carro.
— Tá bom, se cuida… — Umas pontadas de curiosidade me surge. — Vão aonde? — Pergunto trancando a porta de casa.
— Ah… é... — A chamada é abafada, e só escuto murmúrios inaudíveis por uns segundos. — Não é muito longe.
Franzo o cenho em estranheza e encaro o celular. Ela não quer dizer aonde vai? Me deixou mais curiosa, mas prefiro não forçá-la a falar. Celeste é a última pessoa que faria besteira.
— Tá bom, só toma cuidado e me liga quando chegar em casa, ou se precisar de algo. — Caminho até minha moto.
— Não de preocupe. — Diz dócil. — Tenha um bom trabalho.
— Obrigada. — Sorrio levemente e desligo em seguida.
Espero que ela não me ache paranoica, talvez eu só me preocupe demais.
Guardo o celular e monto na moto já colocando o capacete. Vou ir rápido para chegar quanto antes, e não dar motivos para o Joaquim me dar bronca.
Quando chego lá, olho ao arredor vendo poucas pessoas nas mesas, indicando que o bar foi aberto agora a pouco. Detrás do balcão já estava Joaquim me olhando com cara fechada, e quando chego perto ele inicia sua palestra, que não faço a menor questão de ouvir.
— Eu já mandei você vir quinze minutos adiantada. — Reclama com sua voz rouca e irritante.
— Em quinze minutos, nem você está aqui. — Retruco pacífica, enquanto guardava minha bolsa debaixo do balcão.
— Eu não te dei a chave de enfeite!
— Uso-as para fechar o bar. — Abro rudemente uma garrafa de cerveja e despejo no copo. — Não está no contrato que devo chegar cedo para abrir. — Bebo o líquido gelado o suficiente para doer a cabeça.
— Francamente… — Resmunga, indo para sua sala.
Pelo visto, ele não tem mais como reclamar. Li todo aquele contrato para poder refutar ele quando puder.
Com o tempo, o bar foi enchendo e chegava um pessoal insuportável, ou uma galera que é até legal.
— Eai Hera! — Chega uma baixinha de cabelos crespos, acompanhada de uns brutamontes.
O Dante realmente fez esse apelido idiota pegar, e agora só me chamam assim. Diz ele que é melhor não saberem meu nome verdadeiro. Mas, na realidade, não me importo.
— Oi, Sky, o que manda? — Encosto no balcão.
— Pode fazer uma rodada de tequila aqui para a gente. — Pede e eles comemoram entre si. — Deixa na conta do Pitágoras. — Aponta para um careca que tinha uns símbolos matemáticos tatuados na cabeça, isso explica o apelido.
Antes que ele reclamasse, todos comemoram abraçando ele. Pela cara dele, acho que não queria ter que bancar todos. Mas, como foi pedido, preparo a rodada para eles e levo até a mesa onde foram se sentar.
Eles vão brindar e beber ao mesmo tempo, e me chamaram para participar disso. Uma coisa que aprendi é que presente não se nega, e o cliente que manda, então aceito o shot de tequila. Eles são tão amigáveis que queriam que eu ficasse ali com eles, pelo visto esqueceram que estou a trabalho.
Volto para o balcão e vejo o homem de dreads platinados amarrados em um coque, vestindo uma regata, deixando suas tatuagens à mostra, pela primeira vez que vejo as tatuagens do Dante. Ele me vê se aproximando e sorri, já esticando a mão para tocar em comprimento.
— Fala aí, viúva negra!
— Não me venha com outro apelido. — Toco nossas mãos.
— Vocês são parecidas. — Justifica, levantando e abaixando os ombros.
— Segundo você, eu me pareço com qualquer personagem ruiva. — Vejo alguém acenando para ser atendido.
Vou até lá e atendo um idoso com o rosto bem enrugado, que pede apenas uma pequena dose de cachaça, um ótimo fígado pelo visto. Em seguida, atendo outro cliente, e assim por diante, me dando pouco tempo para respirar. Me surpreende um dia da semana aqui encher tanto, Joaquim deveria contratar outro atendente enquanto a Priya está de férias.
Vozes já começam a oportunizar minha cabeça, e elas não vêm de fora, e sim de dentro de mim. Após horas em agitação, eu pude relaxar, mas nem nesse momento tenho paz. Ouvir sussurros o tempo todo é enlouquecedor, mas sigo tentando manter o controle. Se normalmente todos têm uma voz no consciente, a minha tem sete.
Não ligarei para a Celeste, essas horas já deve estar descansando, e eu posso lidar com isso sozinha.
Estava tão perdida nos pensamentos, que não ouvi meu chefe chamando, e só noto quando sua mão acena em frente ao meu rosto.
— Você não está aqui para ficar dormindo em pé! — Reclama irritado.
— Não começa a encher meu saco agora. — Passo por ele me afastando.
— Veja bem como fala. — Me segue. — Tem coisas para você fazer, então não fique parada.
— Eu só estava descansando um pouco! — Me viro elevando o tom da voz, mas não o alto o suficiente para sobressair o rock que toca no fundo, e chamar a atenção dos demais.
Nesse momento, minha respiração já estava acelerada, e de repente ele me puxa para a sua sala que estava ao nosso lado, e fecha a porta.
— Que merda você tem na cabeça para gritar comigo na frente de todo mundo!? — Franze o cenho.
Respiro fundo e aperto os punhos, um inferno estava acontecendo na minha cabeça, e discutir não será uma boa ideia.
— Vou voltar ao meu trabalho. — Digo passiva-agressiva, e toco na maçaneta para sair, mas ele entra na frente me fazendo tirar a mão.
— Só vai sair daqui quando eu terminar de falar. — Diz arrogante, me fazendo enrugar as sobrancelhas. — O seu comportamento está péssimo, me faz pensar se devo quebrar o contrato de admissão.
Suas palavras me causavam mais fervor, toda a frustração de trabalhar feito uma condenada caí sobre mim, e ser tratada dessa forma me faz pensar que eu não permitia nem Lúcifer me tratar assim, quem dirá um humano.
— Escuta aqui, seu velho asqueroso, se não está contente, é problema seu. — Encaro fixamente seus olhos espantados. — Será um prazer se me demitir, assim vou embora daqui de bolsos cheios. Mas se você acha que fazer um inferno na minha vida vai me fazer quebrar o contrato e ter que pagar uma nota, pode se decepcionar, porquê sei o que é viver o inferno literal, e sei muito bem como posso aplicar isso na porra da sua vida medíocre. — Aperto tanto meus punhos que sinto minhas unhas perfurarem minha palma. — Agora sai da minha frente se não quer que eu te derrube com a porta.
— Vai se arrepend-
Antes que ele terminasse de falar, eu soco ao lado de sua cabeça, forte o suficiente para atravessar minha mão pela porta de madeira, fazendo ele olhar assustado. Retiro meu punho, e dessa vez ele não ousou retrucar para o próximo soco não ser em sua cara. Ele se afasta depressa e abro a porta, saindo dali, voltando ao bar e torcendo para ninguém ter visto uma mão atravessando a porta. Mas ao olhar ao arredor, me deparo com Dante, me olhando assustado e, ao mesmo tempo, curioso.
Ignoro ele e vou até a pia para lavar o sangue que estava por minhas mãos, e Dante se aproxima depressa.
— Cacete! O que rolou?
— Não me irrita agora. — Murmuro e termino de lavar as mãos.
— Claro, não estou a fim de levar um soco daquele ali. — Diz humorado.
Por sorte o movimento já diminuiu, até porque amanhã a maioria trabalha. E infelizmente eu também.
— Eu não posso matar mais ninguém… — Comento baixo, encarando o platinado.
— Tô ligado… O Joaquim não é fácil de se conviver, e imagino sua vontade de quebrar ele. — Bebe a garrafa de cerveja que estava em mãos. — Você está se controlando bem. — Sorri reconfortante.
— É, mas se as coisas continuarem assim… — Aperto minhas mãos na borda da pia, respirando fundo.
— Escuta… — Se inclina mais um pouco e balbucia. — Se quiser dar um sumiço nele, ou só uma surra, eu tenho um jeito de não ferrar para o seu lado.
No instante, sua ideia pareceu perfeita para mim, mas em seguida me lembro que prometi não fazer mais isso.
— Esquece isso. — Dou de ombros.
— Tá bom, mas se quiser… — Sorri, levando a garrafa até a boca. — Inclusive, tenho um trampo que pode te dar muito dinheiro e é algo que você consegue lidar facilmente.
— Não quero trabalhar ilegalmente. — Falo direta.
— Não é ilegal se ninguém descobrir.
— Ninguém…? — Abaixo o olhar pensativa.
Fazer algo e ninguém descobrir, não sei se isso funciona, e nesse “ninguém” inclui a Celeste. Não sei se vale a pena esconder algo dela, e decepciona-la novamente.
— Eu também tenho alguém importante que não pode saber o que eu faço. — Comenta, me chamando a atenção. — Com o dinheiro, eu dou a melhor vida possível para meu filho, e nem por isso ele precisa saber.
— Isso ainda não me parece certo…
— Irônico ouvir isso de um demônio. — Dá uma curta risada.
Era loucura tudo que eu estava ouvindo, mas não deixava de ser verdade. Meus atos nunca foram compreendidos pelos outros como certos, importando apenas que isso seja o correto para mim.
— Quanto seria muito dinheiro?
— Com o que recebo, meu filho e sua mãe moram no melhor apartamento de Paris, na melhor escola, na melhor qualidade de vida e tudo que eles precisarem posso proporcionar. — Revela, me fazendo ficar surpresa.
— E o que você faz exatamente? — Pergunto pouco interessada.
— Infelizmente, não posso dar detalhes para quem não está dentro. — Coça a cabeça. — Mas posso dizer que você se daria bem nisso, e hoje tenho um trampo, se quiser me acompanhar, só para ter uma noção…
Respiro fundo, e apoio a mão na cintura pensativa.
— Não vai me trazer problemas?
— Se está comigo, está com Deus. — Sorri, mostrando o polegar.
— Então não vou. — Enrugo o rosto.
— Querida, eu sou só um humano, preciso de ajuda divina. — Fala brincalhão.
— Tem uma deusa na sua frente. — Me gabo.
— Do inferno… — Murmura.
— Isso é só detalhe. — Sorrio.
|...|
Eu estava pronta para negar e não ir com ele, mas a curiosidade falou mais alto, e não vejo nada de mal em apenas acompanhá-lo.
Joaquim já havia ido embora, e nem olhou na minha cara ou encheu meu saco, apenas passou reto e se foi. Já eram quatro da manhã, e Dante ficou me esperando no estacionamento enquanto eu fechava o bar. Quando termino meus afazeres, vou de encontro a ele e me deparo com o mesmo, agora usando uma jaqueta preta, encostado em sua própria moto enquanto fumava.
— Vamos logo.
— Relaxa, sem pressa. — Me oferece o cigarro e pego de sua mão. — É melhor você ir à garupa comigo por segurança.
— Uhum... — Concordo enquanto tragava a fumaça, e solto em seguida. — Vamos passar em casa só para eu guardar minha moto.
— Tá bom, vamos então. — Sobe na própria moto e range o motor, se amostrando.
— A minha é melhor. — Apago o cigarro no chão.
— Vai sonhando. — Ergue uma sobrancelha rindo.
Sem enrolação, nós seguimos estrada até minha casa, e guardo a moto no estacionamento. É melhor a Celeste não saber que passei aqui para evitar uma possível bronca — com razão — e vou até a garupa do Dante, e ele inicia a partida rapidamente.
— Não tira o capacete em nenhuma hipótese. — Comenta. — E não falamos nossos apelidos e nem nomes verdadeiros, temos que evitar identificação.
Ouvir as orientações me deixava receosa sobre o que faremos, não sentia medo, apenas apreensão por esperar de tudo.
Estávamos nos subúrbios do bairro vizinho, e ele para em frente a um beco. Entramos nele e até então pediu que ficássemos em silêncio, e esperar uns minutinhos. Depois de um tempo, ele encosta na parede e parece estar esperando alguém passar, e foi como eu pensei. Um cara todo acabado e sujo ia passar, mas é rapidamente puxado por Dante e jogado no chão, caindo bem em frente aos meus pés.
— Q-quem é você!? — Se arrasta para trás, e para ao perceber que estou ali. — Quem são vocês!? — Pergunta, gaguejando de tanto medo.
— Sabe muito bem, Jeff. — Engrossa a voz e se aproxima do homem.
— O-o senhor russo que mandou vocês, não é? — Aperta os dentes.
— Uau, você é bem esperto. — Diz com sarcasmo.
— Diz para ele me dar só mais uma semana! — Implora desesperado.
— E você vai ter mais uma semana. — Se afasta um pouco, e se abaixa pegando um pedaço de madeira que estava ali jogado. — Vou cobrar seu atraso de forma mais amigável... — Se aproxima novamente.
— N-não! — Tenta se levantar.
Em um impulso, chuto suas costas, fazendo-o cair gemendo de dor. Não sei se deveria ter feito isso, mas Dante parece estar agradecido.
— Basicamente, é isso o que eu faço. — Se direciona a mim. — Faço o trabalho sujo que uns caras ricos não podem se arriscar em fazer.
— P-por favor, me deixe ir! — Diz choroso. — Eu pago para você tambe-
Sem tempo para terminar de falar, Dante acerta a perna do homem, causando um estralo alto que até me assustou por não esperar tanta força. O homem grita e antes que pudesse tocar na própria perna, Dante acerta a outra na mesma intensidade, e tenho quase certeza que ouvi algo se quebrando.
— Fácil, não é? — Apoia a madeira no ombro, e começa a chutar a coluna do cara.
— Quanto que você vai ganhar com isso?
— O valor se baseia na dificuldade, e bater nesse saco de vacilo é bem simples. — Explica. — Vou ganhar em torno de cinco mil, mas espero que ele não pague o que deve, e assim posso matá-lo e receber uma grana alta. — Se agacha. — Ouviu, Jeff? Se não quiser morrer, é melhor pagar logo. — Avisa.
— E-eu vou... pagar. — Murmura com dificuldade, e em seguida tosse sangue.
— Hum? Continua acordado? — Se ergue novamente e estende a madeira em minha direção. — A honra é toda sua.
Arregalo meus olhos, e encaro o pedaço de madeira por uns instantes, que em minha cabeça se tornaram horas. Meus batimentos deviam estar tão acelerados?
Levo minha mão trêmula até o objeto, e me repreendo por estar tão nervosa por isso. Pego a madeira e encaro mordendo o lábio. O que estou fazendo? O que está acontecendo? Por que essas vozes em minha mente estão cochichando o tempo todo?
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08/12/23
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