Ilha das Conchas (Seashell Is...

By AkioSorata

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Vivendo numa comunidade pacata de pescadores, Innora cresce sem a presença dos pais, mas conta com o amor e c... More

Capítulo 1 - Turbilhão
Capítulo 2 - Regresso
Capítulo 3 - Bada
Capítulo 5 - Tragédia

Capítulo 4 - Sinais

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By AkioSorata

O som de vozes alteradas em contestação pela decisão de bada-Anza se misturou às gargalhadas da senhora artesã como uma revoada de andorinhas se aproximando de uma canoa pesqueira.

- Como pode ter escolhido ela? - questionavam alguns com os olhos arregalados de ira. - Minha filha passou o mês inteiro trabalhando no projeto dela e não foi aceita - uma mulher corpulenta se juntou ao coro.

Reclamações e mais reclamações saltavam das bocas dos aldeões, incluindo os que nada tinham a ver com a seleção; meros curiosos. A anciã, indiferente à algazarra ao seu redor, continuou olhando fixamente para a jovem Innora com um olhar de acalento. Até que levantou ambas as mãos subitamente e, da mesma forma que o falatório começou, as vozes foram diminuindo até que o silêncio se instaurou. Até os vendedores de frutos do mar mais ao longe pararam de anunciar os preços de seus produtos frescos ao avistarem a figura da velha senhora com os braços estendidos. Alguns instantes depois, ela quebrou o silêncio.

- Eu passei anos tentando ser reconhecida pelos Espíritos. Querem saber a que conclusão cheguei? - fez uma pausa em seu discurso para encarar os rostos à sua volta, contemplando as diferentes feições de medo, surpresa e admiração - Não é sobre o tempo gasto construindo algo. Muito menos sobre o esforço ou capricho. - continuou - Devoção?! Não, também não acho que seja isso. Eles têm seus próprios motivos, os Vigias. E algo me diz que essa jovem está conectada a eles de alguma forma.

Bada-Anza se aproximou de Innora enquanto terminava a frase e segurou em seus ombros com firmeza, não se importando se a multidão tinha compreendido seu discurso ou não.

- Leve-me para sua casa, minha jovem - sussurrou. - Precisamos falar com seus pais e pegar suas coisas antes de partirmos.

- Eu não tenho pais. Eles estão mortos. Eu moro sozinha.

A resposta de Innora levantou uma suspeita na anciã. Ela tinha ouvido falar sobre a trágica morte de um casal mais de uma década atrás, mas não sabia se eles teriam tido filhos antes do incidente. Sem saber exatamente o que falar, bada-Anza apenas conduziu a menina para longe dos olhares curiosos.

- Vamos, de qualquer forma precisaremos pegar suas coisas antes de irmos.

Enquanto andavam, ouviram passos hesitantes as seguindo, mas elas não precisaram olhar para confirmar que os murmúrios às suas costas eram de alguns aldeões ainda insatisfeitos. Entretanto, os opositores logo pararam. Eles sabiam que a bada não voltaria atrás em sua decisão.

- Por que você me escolheu? - Innora quebrou o silêncio, mirando o rosto enrugado da senhora ao seu lado.

- Eu não acho que foi uma escolha minha, querida - a mais velha respondeu olhando fixamente o caminho à frente, pensativa. - Apenas aconteceu.

Sem ter certeza do que aquelas palavras significavam, mas com medo de estar sendo inconveniente com aquela que agora seria sua tutora, Innora deixou o assunto para lá.

Àquela altura já estavam chegando próximo à cabana em que Tomi morava.

- Podemos passar na casa dos meus vizinhos antes? - ela questionou. - Preciso me despedir deles.

- Claro! Mas sairemos amanhã ao primeiro raio de luz do Grande - interpôs a anciã. - O Pequeno já está subindo no céu, talvez seja melhor apenas arrumar suas coisas hoje e descansar.

- Eia, Pequeno! - a voz da garota adentrou a humilde cabana.

- Eia! - de dentro veio a resposta.

As duas figuras passaram pelo cortinado e logo Innora apresentou a velha bada aos demais, um sorriso de excitação enorme no rosto.

- Iliana, Sr. Lino, Tomi, essa é a bada-Anza - os moradores da residência saudaram a senhora, em retorno, com acenos de cabeça.

- Eia! Seja muito bem vinda à nossa humilde cabana e de volta à Ilha das Conchas - falou a anfitriã, demonstrando boa hospitalidade. - Há muito tempo não ouvimos falar da senhora. Eu era ainda menina quando a vimos partir para a Planície.

- Passei um longo tempo na Planície, veja bem - a velha iniciou sua resposta, o semblante demonstrando certo desconforto. - Não pretendia retornar, mas os Vigias me disseram que eu precisava passar adiante tudo que aprendi antes que meu tempo nessa terra se acabasse.

- Eles falaram com a senhora? - Tomi interrompeu a conversa, incapaz de conter sua curiosidade.

Senhor Lino o segurou pelo braço, puxou-o para mais perto, lançando um olhar de repreensão pela falta de respeito com os mais velhos e disse:

- Desculpe os maus modos do meu filho - suplicou. - Sabe como é difícil para algumas crianças exercerem a paciência. Continuem.

- Não há problema algum - bada-Anza o acalmou, voltando a sorrir. Dirigiu o olhar ao garoto e prosseguiu - Bem, eles não se comunicam como eu estou falando com você agora. É preciso estar atento aos sinais que eles deixam para poder entendermos a sua vontade.

Uma expressão de confusão tomou o rosto do menino. Que sinais seriam esses, ficou imaginando. Sua mãe, porém, não parecia compartilhar da mesma fervorosa fé que a velha senhora e mudou de assunto.

- Não querem ficar para o jantar? - interpôs rapidamente. - Vocês passaram a tarde toda no comércio, devem estar famintas. Vamos, Tomi, me ajude a pôr a mesa.

Sem esperar pela resposta das duas visitantes, ela moveu-se rapidamente pela sala, pegando pratos, pequenas canecas e potes com comida. Iliana dispôs os utensílios sobre a mesa com a ajuda de seu filho enquanto o Sr. Lino levou as visitas para perto da bacia d'água junto à janela para que pudessem lavar suas mãos. Um ronco produzido pela barriga da pequena Innora a impediu de recusar a oferta e bada-Anza soltou mais umas boas gargalhadas.

Todos se serviram com fartura. Pegaram bocados de peixes, moluscos e frutas, além de terem bebido bastante água de coco para se reidratar depois de toda a agitação do dia que passou.

Enquanto descansavam de barriga cheia, Tomi contava à artesã todo o desespero que sua amiga tinha passado nas últimas semanas escolhendo as mais belas conchas enquanto caminhavam na praia juntos, e a luta para que a menina decidisse que projeto faria.

Nesse meio tempo, Iliana se afastou um pouco, e pediu ajuda à Innora para carregar os pratos vazios até o lado oposto da cabana, ao lado da bacia de água para, na manhã seguinte, limpá-los. No entanto, isso foi apenas uma estratégia sua para falar em particular com a jovem. Assim que depositaram os pratos no chão, a mulher segurou Innora pela mão e conduziu-a para fora da cabana sorrateiramente. Um olhar sério foi revelado pela luz prateada emanada pelo Pequeno Espírito Vigia assim que saíram da cabana.

- Innora, eu não posso deixar que você parta sem te falar algumas coisas muito importantes - iniciou Iliana, num tom baixo para que ninguém dentro da moradia a ouvisse. - É sobre seus pais.

Tal afirmação deixou a garota apreensiva e seu coração agora batia mais forte. Ansiosa com o que Iliana poderia falar em seguida, ao mesmo tempo em que se perguntava por que agora. Se sua vizinha sabia de detalhes sobre a vida de seus pais, por que nunca se prestara a contá-los antes?

- O que... os meus pais? - por fim falou.

- Sim. É melhor que você ouça isso por mim - Iliana agora parecia hesitante em suas palavras. - O que aconteceu com eles foi uma tragédia. Sua mãe e eu éramos muito amigas desde crianças. A Kalani, esse era o nome dela, foi a pessoa mais meiga e alegre que eu conheci.

A apreensão demonstrada por ela ao falar contrastava com a imagem de mulher forte que Innora tinha criado ao longo dos anos.

- Teiru, seu pai, era um homem muito gentil e trabalhador - Iliana continuou. - Crescemos todos juntos, incluindo o Lino, e na adolescência foi natural que seus pais se apaixonassem um pelo outro, assim como meu esposo e eu nos apaixonamos. Não demorou muito e Kalani engravidou do seu pai, eu também, alguns meses depois, do Lino.

A garota aprumou bem os ouvidos, atenta a cada sílaba que saía da boca de Iliana. Algo, porém, a perturbava. Ela não sabia explicar, mas uma sensação estranha se formava na boca do seu estômago, como se pressentisse um final ruim para o enredo daquela história.

- Estávamos todos felizes. Teríamos nossos bebês em um intervalo de tempo muito próximo e eles cresceriam juntos e seriam melhores amigos, igual a suas mães. Quando chegamos na metade de nossas gestações, porém, sua mãe começou a agir de forma estranha, mais reservada. Todos nós notamos isso, mas apesar da nossa insistência em perguntar o que estava acontecendo, ela não revelava qual era o problema. Então, acabamos desistindo com o passar dos meses até que, certo dia, Lino e seu pai estavam retornando para o costão rochoso depois de mais um dia de pescaria em alto mar e avistaram Kalani banhada em sangue. Ela estava em uma gruta próxima de onde eles costumavam amarrar as canoas.

Iliana deu alguns passos em direção à beirada do costão, olhando para o mar que jazia calmo.

- Não é possível avistar essa gruta daqui de cima, é preciso estar no mar. Teiru não esperou ancorarem a canoa, pulou na água e saiu nadando o mais rápido que podia. A cena que ele encontrou ao chegar lá não faz sentido na minha mente até hoje. O que ele viu foi um bebê chorando a plenos pulmões, envolto pelos braços de sua mãe, mas uma das mãos dela segurava um punhal com firmeza. Imagino que seu pai tenha pensado "Porque a Kalani estaria segurando um punhal?". Mas ele não teve muito tempo para devanear. Numa fração de segundos aquela mão se levantou, ameaçadora, a ponta do punhal mirando o corpo indefeso do pobre bebê.

A avalanche de informações fez a pequena Innora se sentir como se uma grande onda a tivesse derrubado e, antes que ela pudesse voltar à tona para respirar, outra e mais outra onda a submergiam de novo e de novo. Iliana, não obstante, persistia em desenterrar o passado na frente da menina.

- Com um grito gutural de desespero, Teiru se lançou sobre Kalani, na tentativa de impedir tal ato hediondo. Agarrou a pequena criança recém nascida e protegeu-a com seu próprio corpo, recebendo não apenas uma, mas várias estacadas do punhal.

- Chega! - Innora não conseguia mais continuar ouvindo aquilo - Isso tudo é mentira. Você disse que eles se amavam. E por que minha mãe tentaria me ma...

A frase foi interrompida por uma efusão de lágrimas. Um choro impossível de ser reprimido. Bada-Anza e os outros dois que estavam dentro da cabana saíram apressados para ver o que se passava e ficaram confusos com a cena.

Indiferente a tudo aquilo, o Pequeno Espírito Vigia pairava no céu, sereno lá no alto.

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