Carter
A semana desenrolou-se num ritmo frenético. Finalmente sentia entusiasmo ao acordar de manhã para ir trabalhar. Os corredores da universidade tornaram-se familiares, e alguns dos rostos também.
As aulas eram intensas, e a sensação de estar à frente de uma turma, a partilhar conhecimento e paixão pela literatura moderna, era indescritível. A confiança gradual, começou a substituir o meu medo de falar em publico, e a interação com os alunos tornou-se mais fluida.
O Daniel, por outro lado, ainda não tinha tomado a iniciativa para me convidar para jantar, ainda que eu tivesse deixado subentendido, que estava à espera disso. As nossas conversas sobre literatura eram sempre estimulantes, e havia uma centelha de algo mais nas entrelinhas. No entanto, ele ainda não tinha dado o passo seguinte, nem tinha feito nenhum convite para além dos cafés em contexto académico.
O ponto alto dos meus dias eram os almoços com a Blake. A nossa amizade estava a crescer tão rápido, que nem eu mesma me reconhecia perto dela. Era como se voltasse à adolescência. Os risos partilhados tornavam as refeições na cantina uma pausa bem-vinda no meio da agitação que era a vida na universidade. A sua energia contagiava-me, e naquele pouco tempo que passamos juntas eu já a podia considerar amiga.
Era sábado à noite, e a Blake tinha insistido em sairmos para um bar nos subúrbios da cidade. Inicialmente, cogitei a ideia de ficar em casa, mas a persistência dela acabou por me convencer, especialmente depois de ela me relembrar de que eu estava há um mês em Londres e ainda não tinha saído uma única noite.
Estava no meu quarto, a preparar-me para a noite, quando ouvi a campainha.
Ajeitei o vestido vermelho, respirei fundo e sorri para o meu reflexo no espelho, antes de sair do quarto.
Ao chegarmos ao bar, depois de esperar por cerca de trinta minutos no frio, olhei para o letreiro iluminado e li "Under". O nome do lugar parecia sugestivo, e uma sensação de expectativa percorreu-me enquanto nos encaminhávamos para a entrada.
A música e as luzes vibrantes criaram um ambiente eletrizante. Eu não estava à espera de tanta extravagância, mas antes que pudesse processar completamente, a Blake agarrou-me pelo braço, puxando-me em direção à pista de dança.
O som alto e a energia dos corpos à minha volta começaram a influenciar-me a agir da mesma forma. A cada passo, sentia-me mais envolvida pelo ritmo da música. Três bebidas depois, o efeito do álcool começou a deixar-me tonta. A pista de dança tornou-se um remoinho de cores e movimentos, e eu permiti perder-me na música, ignorando temporariamente as minhas preocupações.
A noite continuou a desenrolar-se, e o Under revelou-se surpreendentemente agradável. Eu estava decidida a aproveitar a noite, mesmo que, no fundo, uma parte de mim se sentisse fora do meu elemento.
Enquanto eu e a Blake dançávamos como loucas, deixando-nos levar pela euforia do álcool no meu copo, senti alguém olhar para mim. Ao procurar de onde vinha a sensação, avistei o Liam. Ele ergueu o copo num gesto de cumprimento ao qual eu retribuí o gesto com um sorriso tímido.
De repente, apareceu o Leonardo por trás dele, e sussurrou algo ao ouvido do amigo. O Liam desviou-se para o lado, dando espaço ao Leonardo, que agora procurava algo na pista de dança.
Os nossos olhares cruzaram-se com intensidade. Permaneci no lugar, hipnotizada pela troca de olhares, enquanto a música parecia um barulho semi-abafado no fundo.
- Quem é aquele gato, Anna? Parece que te reconheceu. – a voz da Blake acordou-me.
Sorri, tentando disfarçar a intensidade do momento.
- É apenas alguém que conheço, nada de especial. Vamos dançar! - respondi, puxando-a de volta para a pista, mas não conseguia ignorar completamente as emoções que aquela troca de olhares me causou.
Uma hora depois eu a Blake, estávamos encostadas ao balcão, na companhia de dois tipos que tínhamos acabado de conhecer. Nenhum deles fazia o meu género, e tanto quanto entendi, também não faziam o género da minha amiga, mas os dois rapazes insistiam em oferecer-nos bebidas, e nós, para nos divertirmos um pouco, decidimos deixá-los oferecer-nos.
Ríamo-nos das piadas sem graça deles e fazíamos comentários sarcásticos entre nós. No entanto, a brincadeira começou a ficar aborrecida quando eles começaram a ficar mais chatos.
O tipo mais alto, que até então estava a comportar-se de forma relativamente decente, começou a tornar-se insistente. Senti-me desconfortável com a proximidade dele, e quando tentou agarrar-me, perdi a paciência.
- Ei, larga-me! - protestei, afastando-me dele.
Ele ignorou o meu pedido e tentou beijar-me à força e eu empurrei-o em resposta, fazendo-o cambalear para trás.
- Já disse para parar! - exclamei, com firmeza.
Vindo do nada, o Leonardo apareceu atrás dele. Quando este notou a sua presença, afastou-se, com uma expressão aterrorizada no olhar.
- Olá, meninas. Está tudo bem por aqui? – perguntou.
- Estava. Até tu chegares. - respondi seca.
Os dois homens, claramente desconfortáveis com a presença do Leonardo, afastaram-se sem nem sequer nos dizer mais nada. O Leonardo olhou para mim de uma forma que não consegui decifrar. Eu tentei responder-lhe ao olhar, com a mesma dose de intensidade, mas o excesso de álcool no sangue, não me permitia focar direito.
Ele riu-se antes de me puxar para um canto, com uma força desnecessária - O que estás a fazer aqui, Anna? – perguntou, sério.
- Estava só a tentar aproveitar a noite. – falei, como se aquela fosse a resposta mais óbvia de sempre.
Ele sorriu, mas havia algo na forma como me olhava que me estava a deixar desconfortável.
- Aproveitar a noite? - disse ele, com um tom sugestivo, fazendo-me olhar para os dois homens, que agora nos observavam de longe.
- Não te preocupes com isso. - respondi, tentando parecer indiferente.
Ele aproximou-se mais, e a sua expressão tornou-se mais intensa. - Eu diria que a tua ideia de aproveitar a noite, está um tanto estragada. Talvez eu devesse te ensinar como aproveitar melhor a noite. - murmurou, lançando-me um olhar provocador.
- Não preciso da tua orientação sobre diversão. - retruquei, cruzando os braços.
Ele riu baixinho, como se estivesse a apreciar algum segredo.
- Tens razão, Anninha. Eu não tenho nada ver com isso. - disse ele, num tom mais sério - Mas este lugar não parece ser o teu estilo.
Arqueei uma sobrancelha, indignada - Sabes lá qual é o meu estilo!
Ele aproximou-se mais e os nossos rostos agora estavam a centímetros de distância.
- Ainda estou a tentar descobrir. - murmurou, com um olhar que sugeria mais do que as palavras podiam expressar.
Os seus olhos verdes deixaram-me sem palavras por um momento. Havia algo na maneira como me estudava que me fazia questionar as minhas próprias certezas. Tentei desviar o olhar, mas a sua proximidade tornava isso difícil.
- Talvez seja a hora de mudares de ares, Anna. - acrescentou, num tom mais suave.
Engoli em seco, sentindo um nó na garganta. O que ele estava a tentar insinuar? Será que ele pensava que podia simplesmente aparecer e dizer como eu deveria viver a minha vida?
- Eu sei muito bem o que estou a fazer. - respondi, tentando manter a minha postura.
Ele sorriu, como se soubesse de algum segredo que eu ainda não tinha descoberto.
- Veremos, irmãzinha. Veremos. - disse antes de se afastar.
Idiota. Pensei.
Confusa, fiquei ali, a tentar entender o que acabara de acontecer, mas nem meio minuto depois, a Blake estava à minha frente, cheia de perguntas.
- Quem era aquele? - ela perguntou, com um sorriso cheio de segundos pensamentos.
- Só alguém que eu conheço. – repeti a mesma resposta de antes, tentando parecer descontraída.
- Alguém que eu conheço?- ela insistiu.
Suspirei, percebendo que a Blake não ia deixar isto passar facilmente.
- É complicado. É o meu meio-irmão. Vamos voltar para a pista de dança e aproveitar o resto da noite, está bem?
A Blake aceitou a resposta com uma expressão surpreendida, e concordamos em deixar o assunto de lado por enquanto. Voltamos à pista de dança, tentando recuperar a leveza da noite. No entanto, aquele momento ia continuar a atormentar-me no resto da noite, tornando tudo menos divertido do que eu esperava.
As luzes pulsantes, o som ensurdecedor e a energia da pista de dança tornavam-se um borrão enquanto eu tentava processar as palavras do Leonardo. A sua presença tinha agitado algo dentro de mim, algo que eu não estava pronta para enfrentar naquele momento.
À medida que a noite avançava, a minha mente vagueava entre as batidas da música, tentando compreender o que aquilo que eu sentia significava.