Tinha virado a esquina do hotel e já podia sentir naquele momento olhos sobre si que estudavam todos os movimentos. A equipa de segurança de Mosley só a relembrava que se dirigia para um caminho sem retorno. Em piloto automático permitiu que as suas pernas passassem a entrada imponente onde conseguiu ver ao longe o salão de refeições. Discretamente procurou sinais de Oswald sem sucesso. O medo preenchia pouco a pouco o seu interior e Helena mal conseguia disfarçar que a cada segundo que permanecia naquele lugar essa sensação tomava conta de todos os seus poros. Fez o melhor que conseguia com o que tinha. E a esperança de ser um último esforço para finalmente ter paz era a única coisa que a separava do descontrolo.
-"Senhorita Marques."- Foi chamada de volta à terra dando um leve pulo quando um empregado do hotel se aproximou, reconheceu-o como sendo um dos homens do seu tio.
-"Pois não."- Olhou-o com expectativa.
-"Ele espera por si no quarto 666."- O rapaz estendeu um pequeno envelope com o nome de Helena.-"Ninguém vai conseguir chegar perto porque a segurança é apertada mas já avisei o seu tio do que se vai passar."
A única coisa que soava na cabeça de Helena era 'Merda!'. Isto poderia desenrolar-se de duas maneiras dependo de como iria reagir. Piscou os olhos pesadamente tentando voltar a si.
'Merda!'. 'Merda!'. 'Merda!'.
-"Eu trato disto."- Helena disse abrindo o envelope que continha uma declaração de amor que só lhe torceu ainda mais o estômago.-"Independentemente do que se passe naquele quarto não vai haver um banho de sangue antes do comício ou estará tudo perdido. Não queres ser responsável por isso pois não?"
O empregado engoliu a seco e entendeu a mensagem, abrindo caminho para Helena se dirigir ao elevador e subir. Quarto 666, o número do Diabo. Ela ia meter-se no covil do Diabo. Naquela subida sem fim tentava acalmar a respiração, as suas mãos tremiam sem sentir, aliás sentia todo o seu corpo num estado de dormência. A abrupta paragem do elevador acordou-a do transe e antes mesmo de ter oportunidade de o abrir, um dos capatazes de Oswald já o tinha feito por si. O homem do seu tio não tinha brincado quando disse que a segurança era apertada, pensou brevemente que seriam homens a mais para lutar sozinha por muito preparada que estivesse. Deixou essa ideia de parte quando viu a porta com o 666 bordado a ouro na parte superior. Respirou fundo uma última vez e bateu três vezes na madeira que ecoou. Conseguiu nitidamente ouvir os passos pesados e uma leve música de fundo antes de a porta se abrir num só movimento, revelando o sorriso presunçoso de Mosley que não escondeu em percorrer descaradamente o seu corpo com o olhar. Helena arrepiou-se.
-"Isto é uma visão que gostaria de ver todos os dias."- Mosley estendeu o braço esperando a mão de Helena corresponder e assim que a morena aceitou o seu desconforto perante toda a situação tinha subido para um nível que até a melhor das actrizes teria dificuldade em disfarçar.
A porta do quarto fechou-se atrás de si, Helena não se atreveu a olhar e estudou o quarto por uns breves segundos. Numa pequena mesa do lado esquerdo estava uma garrafa de champanhe aberta e dois copos, a cama tinha algumas pétalas de rosa espalhadas e a água de colónia que Oswald usava impregnava o ambiente de uma forma avassaladora. Helena engoliu a seco e a sua mente gritava-lhe para sair dali o mais depressa possível, mas como?
-"Como é possível a tua beleza crescer de dia para dia?"- Mosley tinha andando alguns passos na sua direção sem se aperceber, Helena forçou um sorriso antes de se virar para o encarar que demasiado perto.
-"Achei que estaria ocupado com os últimos pormenores do comício."- Helena tentou lançar-lhe uma sensação de calma.
-"Tu és um pormenor minha querida!"- Mosley aproximou-se um pouco mais e desviou os fartos cabelos de Helena para trás deixando o seu decote aparecer. A morena estremeceu mais uma vez.- "Aquela caixa é para ti, tomei a liberdade de escolher o que vais usar."
Helena aproveitou a deixa para se afastar e pegar na caixa com um laço vermelho a rodeá-la. Retirou a tampa e lá viu provavelmente um dos vestidos mais bonitos que já tinha visto na sua vida. Ela seria demonstrada e desfilada como se uma mercadoria se tratasse.
-"E no tamanho certo.."- Ela disse relativamente surpresa.
-"Falta apenas um detalhe."- Mosley retirou do bolso interno do casaco uma caixa pequena em vermelho sangue. Helena prendeu a respiração com a possibilidade de ser um anel. Helena abriu a caixa e no centro estava um pequeno pino com o emblema do Partido. Era uma cruz suástica altamente detalhada com as iniciais do seu nome. Sentiu-se enojada mas sorriu.
-"Só existem dois e são reservados a mim e à futura Primeira Dama."- Mosley pegou nos copos de champanhe que encheu e estendeu a Helena.-"Vou ser o mais sincero possível contigo, Helena. Preciso de firmar a minha reputação e dar uma sensação de estabilidade aos meus seguidores, por isso no final do meu discurso vou chamar-te ao palco e pedir-te em casamento."
O copo de Helena escapou da mão e estilhaçou-se em mil pedaços no chão. Sentiu a sua cabeça andar a roda e senão fosse pelo braço de Mosley a ampará-la, teria mesmo caído.
-"Então querida, não é necessário tanta emoção!"- Oswald passou-lhe o seu copo que Helena bebeu de uma só vez tentando controlar a respiração. -"Vou apresentar-te aos cargos mais elevados, eles ficaram fascinados com uma mulher como tu, vamos sorrir e acenar juntos e depois vem a cereja no topo do bolo. E como uma boa mulher que serás vais aceitar e esboçar a felicidade na tua cara."
Helena acabou por se sentar na cadeira e encher novamente o copo de champanhe.
-"Claro que irei falar com o teu tio assim que possível para lhe comunicar a minha intenção mas não queria que fosses apanhada de surpresa."- Mosley ajoelhou-se à sua frente e retirou-lhe o copo da mão. -"E achei que já que vamos ser marido e mulher, nos poderíamos divertir um pouco hoje."
Helena engoliu a seco a caminhou apavorada até a porta. -"O meu tio não vai gostar que me toques desta maneira."
-" O teu tio só irá saber o que tu lhe contares e nada do que se vai passar neste quarto vai sair daqui."- Mosley retirou o casaco lentamente e a gravata. A mente de Helena dizia-lhe para sair por aquela porta fora ou acabar com isto de uma vez por todas e matá-lo. Mas a criança assustada que emergia naquele cenário nunca se podia sobrepor à mulher que sabe que esta história vai para além daquela divisão. Fugir seria uma opção arriscada pois poderia quebrar o interesse da parte de Mosley e acabar com a vida daquele monstro naquele preciso momento iria cancelar o evento e não levar ninguém a Lisboa. Ela precisava continuar com o plano, o plano a que tinha prometido dar tudo o que tinha e não tinha para acontecer. Encostou-se á porta vendo aquela figura caminhar até si com um olhar maquiavélico, as suas mãos estavam escondidas atrás das costas e suavam freneticamente.
-"Não me pediste em casamento adequadamente."- Helena soltou e Mosley travou por alguns segundos antes de soltar uma gargalhada surpresa.
-"Devo confessar que não páras de me surpreender."- Passou as mãos no bigode e abanou a cabeça.-"Não estás à espera que me ajoelhe pois não?"
-"Vais fazê-lo amanhã."- Helena endireitou levemente o queixo podendo ver a sobrancelha de Mosley subir com o comentário.-"Se queres criar impacto nada melhor que mostrares que és um homem devoto e disposto a criar uma família dentro dos ideais que tanto defendes."
Os olhos de Mosley brilharam e um leve sorriso surgiu na sua cara, muito lentamente começou a desabotoar os punhos da camisa e a dobrar as mangas até à altura dos cotovelos.
-"Ahhh Helena, tu e eu fomos feitos um para o outro."- Mosley estava finalmente colado a si.-"Vamos mudar o mundo juntos, esse é o teu destino."- A cara de Helena foi agarrada com firmeza fazendo-a suspirar discretamente sobre o medo e nojo que lhe percorriam o corpo. A mão de Oswald era firme e áspera e passou para a nuca puxando-lhe os cabelos. Helena preparou-se para aceitar o seu destino e fechou os olhos. O contacto dos lábios lançou sobre o seu estômago um soco e sobre a sua cabeça a lembrança viva dos seus pais morrendo às mãos do homem que investia sobre si naquele momento. A morena tentava de alguma forma prender a respiração quando sentiu a língua de Mosley forçar a passagem enquanto uma das mãos desceu aos seus seios apertando-os com firmeza.
Helena lutava, lutava contra si, contra a vontade de lhe cortar a garganta ali mesmo, contra o impulso que sentia no seu estômago em mandar tudo que tinha fora. Mosley estava cada vez mais selvagem nos seus toques, Helena sentiu a mão entrar sobre o seu vestido e agarrar a coxa com força até que uma batida forte na porta soou e a morena afastou-se para perto da cama tentando controlar a respiração e limpando discretamente o sabor de Mosley da boca.
O homem deu um murro na porta e mostrava-se frustrado antes de abrir o trinco.
-"Interrompo?"
Helena endireitou a cabeça reconhecendo de imediato aquela voz rouca e profunda, ainda de costas fechou os olhos e respirou fundo virando-se finalmente para Thomas que estava parcialmente escondido pelo braço de Mosley que ainda segurava a porta.
-"Mas que merda estás aqui a fazer Shelby?!"- Levantou o tom de voz.- "E como conseguiste passar pelos meus homens?"
-"Temos uma reunião marcada Mosley."- Thomas disse antes de dar mais um travo no cigarro que já ia a meio. O homem sem conseguir ainda esconder a frustração procurou freneticamente o seu relógio de bolso levantando as sobrancelhas com espanto.
-"Não vi as horas passarem."- Coçou a cabeça e voltou-se para Helena que permanecia no mesmo lugar. Foi quando Thomas fez o primeiro contacto visual e exigiu tudo o que tinha de si não correr naquele momento para ela e consolá-la enquanto puxava da arma e estourava os miolos de Mosley. Trancou o maxilar sem quebrar o olhar.
-"Helena querida, continuaremos em outra altura."- Mosley beijou-lhe a mão demoradamente antes de Helena pegar nas caixas.-"Prepara-te para amanhã sim?"
Thomas viu a mão de Mosley deslizar nos longos cabelos de Helena antes de a mesma se dirigir para a porta, a mão que estava no bolso das calças estava fechada ao ponto das unhas trilharem a carne na tentativa desesperada que fazia em manter-se aparentemente calmo. Quando Helena finalmente saiu Thomas fechou a porta e deu mais um bafo no cigarro.
-"Sabes com quem estás a lidar não sabes?"
-"Sim, com a minha futura mulher."
A afirmação apanhou Thomas desprevenido, piscou os olhos duas vezes pensado que poderia estar a alucinar.
-"O quê?"- Thomas encostou-se à parede processando a afirmação.
-"Vou pedi-la em casamento durante o comício."- Mosley tinha agora ido buscar a garrafa de whisky e fumava também um cigarro.
-"E ela concordou?"- Thomas tentava esconder o ódio e raiva que sentia naquele momento, estava à beira de um ataque de loucura que poderia deitar tudo a perder.
-"Nunca pensei dizer isto sobre uma mulher mas Helena é inteligente."- Mosley estendeu o copo a Thomas que o tombou de uma só vez.-"E o seu tio ainda mais."
-"Joaquim não se envolve em política."- Thomas abanou a cabeça olhando para o copo.
-"Oh mas envolve meu caro, ele está à frente deste país."- Mosley sentou-se a abriu o sorriso. -"Talvez esteja na altura de mudar as coisas e quem melhor para assumir esse papel que o seu genro?"- Pegou no telefone ligando para o Raposa Vermelha. Thomas levou alguns segundos a soltar a fumaça que tinha preso nos pulmões. Conhecia todos os dias uma nova faceta monstruosa daquele homem. Tudo teria um fim em breve.
Helena tinha saído a correr do hotel e assim que teve a certeza que não seria mais vista entrou num beco e vomitou. O seu estômago não aguentava mais e as lágrimas contra as quais tinha lutado com tanto vigor antes caiam agora livremente. Levou algum tempo a recompôr-se antes de se dirigir para o pub, onde a tensão era palpável. Houve uma sensação de alívio assim que passou a porta. Alfie mandou a cabeça para trás e a muito custo levantou-se apoiado na sua bengala e abraçou-a.
-"Por Deus love, estava prestes a começar a merda de uma guerra senão voltasses nos próximos minutos, yeah?"- Alfie sentia falta daquilo como quem sente fome ou sede. Inspirou o seu cheiro e deu-lhe um leve beijo na testa. -"Juro por tudo o que há mais sagrado que se ele te meteu um dedo em cima eu vou esventrá-lo e atirá-lo aos cães!"- Alfie borbulhava de raiva, Helena sabia pelas veias salientes na sua cabeça.
-"Pediu-me em casamento."- Helena disse tentando forçar um sorriso, viu o choque na cara de Alfie e do resto da sala.
-"Aquele filho da puta o quê?!"- Alfie gritou em plenos pulmões sentido uma dor repentina no peito. Helena auxiliou-o a voltar à cadeira, o judeu não podia negar que gostava desta aproximação sem Thomas por perto no momento.
-"Está tudo bem Alfie."- Helena passou delicadamente a mão na sua bochecha.- "Acabaste de sair do hospital e precisamos de ti amanhã, não podes esforçar-te por agora. O Tommy chegou na altura certa."
-"E esta caixa, sis?"- Arthur pergunta chegando-se perto da mesa. Helena posou a caixa maior em cima da mesa e abriu a mais pequena.
-"Para que todos vejam quem é o meu dono."- Helena disse assim que o seu tio desceu as escadas e se juntou ao grupo olhando o emblema.
-"Acabei de saber."- o seu tio sentou-se ajeitando o chapéu.
-"Esse homem é a razão pela qual as crianças têm pesadelos."- Arthur disse e toda a gente concordou, até mesmo Alfie.
-"O pesadelo acaba amanhã."
Helena iria garantir que isso acontecesse.