Os Guerreiros do Destino

By felipe_gcz

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🧙 RPG 🦖 Batalhas ✨ Magia 💥 Aventura Seis improváveis companheiros são unidos pelo destino, aventurando-se... More

As engrenagens começaram a rodar
Um teste de habilidade
Uma lenda viva
A dura realidade
A cidade que nunca acorda
Uma incursão perigosa
O Cristalário Colorido
A manipulação
Dunascas
Custe o que custar
Os Cristais do Poder
Uma nova habilidade

A queda

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By felipe_gcz

Destino. Uma palavra tão bonita para descrever a consequência de nossos atos. Como diz o ditado, tudo realmente está escrito, só que a lápis. Qualquer mudança de planos pode alterar drasticamente os resultados. De variações ínfimas a finais trágicos, toda ação e decisão podem afetar a história de uma pessoa ou do mundo inteiro.

Mesmo com isso em mente, o Oráculo estava contente e tranquilo. As pessoas ao seu redor ainda não desconfiavam de sua existência e seus planos seguiam como ele queria. As engrenagens giravam, as peças se encaixavam. Tudo estava nos conformes. Analisando toda a situação, ele achava até graça, sorrindo orgulhoso.

Aestus e Orkan estavam ficando a cada dia mais fortes e experientes. Spes conseguia proteger seus amigos, unindo o grupo. Hadria, por mais excêntrica e apática que fosse, se provou uma adição essencial à equipe. O Oráculo se afeiçoou a eles, assim como as pessoas se sentem próximas de personagens em um livro. O Mago era seu personagem favorito nessa história que se desenrolava. Sempre animado e feliz, tão fofinho.

Ao se concentrar e avaliar a situação atual de seus heróis, o Oráculo tomou um susto, se inteirando do perigo em que se encontravam. Mesmo assim, ele riu. Era incrível como eles sempre se metiam em encrenca e conseguiam achar uma saída. Era como se alguém muito poderoso estivesse os ajudando.

Ele soltou uma risada alta e gostosa, atraindo olhares das pessoas à sua volta. O Oráculo se controlou, tentando não chamar atenção ao seu rompante de risos, limpando a garganta e esfregando o rosto. Ele se concentrou novamente, visualizando o futuro próximo dos seus aventureiros. Obviamente eles iriam se safar. A história deles ainda ia longe.

Seus heróis, tão pequenos em suas visões, seriam capazes de tantas grandes mudanças. Logo seus caminhos cruzariam com Hiner e Baruc, os reais protagonistas da história atual de Kairos. Algumas verdades reveladas, reviravoltas inesperadas. O caminho era sinuoso e complicado.

O Oráculo fechou os olhos e se concentrou. Ele imaginou toda a situação como um jogo de tabuleiro e os personagens como bonequinhos. O mapa de Kairos se apresentava como um mapa aberto sobre uma mesa. As peças estavam dispostas em suas posições atuais. Quatro delas na mina de Foscor, as outras ainda dispersas, ainda não tendo entrado em jogo. O Oráculo apanhou uma pequena miniatura de Aestus. Era uma ótima representação do Cavaleiro: forte, segurando sua espada com uma mão e apontando para frente com a outra. Um líder nato.

"Por que os protagonistas são sempre tão chatos? Os heróis sem defeitos." Pensou o Oráculo. "No entanto, sua fachada de perfeição e detentor da moral já está rachando. O que tem no seu interior, Aestus? Por que você tem tanto medo de se abrir?" E recolocou o mini Aestus no tabuleiro.

Em seguida, ele pegou a peça de Orkan, que estava agachado, segurando suas adagas, com um sorriso debochado em seu rosto. O Oráculo imitou a mesma expressão do bonequinho, se divertindo.

"Você está se tornando uma grande surpresa, Orkan. Continua tolo e imprudente, mas melhorou bastante. Mal sabe a bagunça em que se meteu, né?"

Já sorrindo, o Oráculo pegou a peça que representava Spes. Ele analisou o pequeno Lagomorfo, que vestia seu manto branco e segurava seu cajado brilhante erguido à sua frente. Um personagem tão bonzinho, mas que guardava segredos tão profundos. Que orgulho ele sentia do Mago. Digno de ser o protagonista da história, mas preferia se manter como um coadjuvante. Fantástico!

"Tão bondoso, tão brincalhão, mas tão quebrado por dentro. O que seus amigos vão pensar quando descobrirem seu passado, pequeno Spes?"

A miniatura de Hadria foi a seguinte. A pequena Bruxa estava de braços cruzados e séria. Era possível sentir sua apatia só de olhar para seu rosto, até menos quando se tratava de sua réplica.

"Você finge tão bem que não se importa com nada que até você mesmo acredita que seja verdade, não é mesmo? Quando você vai parar de buscar aprovação de seus pais? Um pouco de mudança vai ser bom para você, Hadria."

Depois de deixar a pequena Bruxa em seu lugar, junto aos outros, o Oráculo passou os olhos pelo tabuleiro, focando em uma peça situada um pouco distante das demais, isolada. Ele apoiou o queixo com uma mão e pegou a miniatura com a outra. Era um rapaz bem grande e forte, vestindo uma roupa de tecidos leves, alaranjados. Sua pose de luta, com os punhos fechados e em riste, mostrava que ele estava preparado para batalhar por tudo em que acreditava.

"Logo, logo chega sua vez, grandão. E você vai ser o responsável pela maior guinada nessa história. Ou pelo menos uma delas, eu acredito. Eu mal vejo a hora."

Depois de devolver a peça ao seu lugar, o Oráculo voltou à realidade, respirando fundo e abrindo os olhos. Talvez eles precisassem de um pequeno empurrão na direção certa, em breve. Grandes jornadas precisam de um sutil ajuste em seu caminho, de tempos em tempos.

***

O tempo parecia ter congelado. Os Golens todos prestes a explodir, como fogos de artifício sincronizados em uma noite de festas. Aestus havia se jogado sobre Orkan, na tentativa vã de proteger seu amigo desacordado. Hadria estava em pé, de olhos fechados e braços estendidos próximos ao corpo, com suas mãos abertas, pronta para que sua vida chegasse ao fim. O único que não aceitava esse fim era Spes.

Ele não havia lutado e sofrido tanto para perder tudo em um corredor abafado e sujo de uma mina qualquer. Ele se recusava a virar uma reles estatística de uma cidade insossa como Foscor. Ele não seria mais um Caçador que morre por conta de más decisões em uma missão simples. Spes sabia que ele estava destinado a coisas maiores.

— Ninguém vai morrer aqui! Não sob minha guarda! — Spes bradou, sua voz forte e autoritária, diferente de seu tom animado de sempre. — ESCUDOS TRANSLÚCIDOS!

O Mago se pôs à frente de seus amigos, girando seu cajado sobre sua cabeça. Seu manto era iluminado pelo brilho intenso do cristal branco de sua arma. Ele, então, bateu com o cajado no chão e o apontou na direção das Criaturas, em um arco horizontal com um movimento fluido. Feixes de luz saltaram rapidamente na direção de cada Golem, envolvendo-os em uma esfera radiante. Todos eles foram circundados por cápsulas formadas por uma gaiola de material semelhante a ouro branco e telas de vidro incolor.

Spes estava com uma expressão obstinada em seu rosto, com seus dentes rangendo. Ele aparentava estar usando todo seu poder para conjurar aquelas estruturas divinas de proteção. Seus olhos brilhavam intensamente com um verde vivo, refletindo as luzes que emanavam de seu cajado. Seu cabelo vermelho-fogo balançava mesmo sem qualquer indício de vento naquele túnel onde estavam.

No momento em que Spes terminou de formar os invólucros de proteção, os Golens explodiram, concomitantemente. Uma pequena supernova vermelha piscou dentro de todos os orbes que continham as Criaturas. Foi possível ouvir um som abafado, como um balão de ar sendo estourado debaixo d'água. Os orbes todos tremeram e seus vidros racharam, porém contiveram as ondas de choque perfeitamente. A morte dos quatro aventureiros havia sido evitada pela inteligência do Mago e por suas poderosas habilidades. Subitamente, as esferas que ele havia criado sumiram, deixando para trás apenas alguns cristais vermelhos que surgiram das Criaturas.

Hadria abriu os olhos, confusa, porém muito feliz em não ter morrido. Ela se sentia aliviada em não precisar dar razão às dúvidas que sua mãe sentia. Aestus olhou ao redor, ainda sem acreditar que estavam vivos. Spes tonteou no lugar onde estava, caindo para trás, sentado. A Bruxa foi até ele, preocupada.

— Pode ir ajudar o Aestus. Eu tô bem, — Spes disse, esfregando os olhos. — Eu só preciso me recuperar um pouquinho.

Aestus já estava tentando liberar Orkan da pilha de pedras caídas sobre ele. O Cavaleiro arremessava longe as rochas pesadas, extraindo forças de seu âmago. Ele levantava pesos que nem imaginava conseguir, no desejo de libertar seu amigo logo. Em pouco tempo, o Ladino estava sendo puxado para um lugar seguro.

Spes tirou de seu cinto um tubo comprido contendo um líquido azul-escuro cintilante. Ele arrancou a rolha que o fechava com sua boca, cuspindo-a longe. Em seguida, ele virou o tubo em sua boca, tragando todo seu conteúdo em um grande gole. O Mago fez uma expressão de nojo, tremendo o corpo todo depois de engolir.

— Vocês podiam deixar essa poção revigorante com um gosto melhor, né? — Spes reclamou, olhando na direção de Hadria. — A fada-da-noite é tão bonita, mas tem um gosto tão ruim. Ugh! — Hadria só levantou os ombros, aceitando a crítica.

Renovado, Spes pulou de pé, pronto para tratar de Orkan. O Mago analisou novamente a situação de seu amigo, verificando se havia novos ferimentos ou algo que merecia mais atenção. Mas, para seu alívio, somente a tíbia direita de Orkan estava fraturada. Spes se ajoelhou ao lado da canela do Ladino, pronto para começar seus trabalhos. Ao ver Aestus se aproximar com uma cara de preocupado, Spes disse, meio rindo:

— Se for abrir a boca pra me apressar, eu vou meter meu cajado na tua cara!

Aestus engoliu em seco, sem graça. Ele estava muito apreensivo sobre o estado de saúde de seu amigo, mas confiava na sabedoria e poder do Lagomorfo. No entanto, aquela era uma situação nova onde Aestus não tinha nenhum controle, deixando-o desconfortável.

Depois de alisar toda a extensão da perna de Orkan, Spes a segurou com uma mão abaixo do joelho e uma logo acima do tornozelo. Ele disse, mais para si:

— Pelo menos ele tá desacordado, já facilita, — e olhando na direção dos outros dois, disse: — Isso não vai ser nada agradável. Quem tem estômago fraco, tampa os ouvidos e fecha os olhos.

Spes prontamente começou a mover a perna de Orkan, rotacionando-a. Um som extremamente desconfortável tomou conta do corredor. Era como se ele estivesse esfregando dois punhados de areia. Os fragmentos de osso raspavam um no outro, criando uma cacofonia insuportável. Aestus quase passou mal, imaginando a dor que seu amigo sentiria se estivesse acordado. Hadria só desejou não ter que passar por algo assim durante sua vida.

Eu pouco tempo, entretanto, Spes conseguiu encaixar as partes quebradas, sentindo que agora estava pronto para curar Orkan. Mantendo a perna do Ladino imóvel com as duas mãos para que os ossos não saíssem do lugar, Spes fechou seus olhos e respirou fundo. Usar magias sem usar seu cajado era muito mais difícil e demandava extrema concentração. Mesmo assim, depois de poucos instantes, luzes verde-claro corriam dos braços de Spes para a perna de Orkan, reconstruindo-a em questão de segundos. Em seguida, Spes moveu a perna de seu amigo, para ter certeza que estava tudo em seu lugar.

Contente com o resultado de sua magia, Spes ficou em pé e materializou novamente seu cajado, terminando de curar os outros ferimentos de Orkan com facilidade e rapidez. O Ladino abriu os olhos e se sentou, visivelmente confuso. Seus amigos contaram o que havia acontecido, tentando não jogar muito a responsabilidade em seu comportamento impulsivo. Seu ataque imprudente contra uma Criatura desconhecida poderia ter matado todos eles, mas aquele não era o momento de brigas ou responsabilização.

— Mas por que você protegeu os Golens ao invés de criar uma redoma em volta da gente? Igual você vez na batalha contra o Hiner? — Aestus perguntou, realmente curioso.

— E correr o risco desse corredor inteiro desabar na gente? — Spes respondeu, apontando com as duas mãos para o teto. — Foi uma magia muito mais difícil, mas acho que valeu a pena, — ele acrescentou, brincando com uma de suas longas orelhas.

Seus amigos todos agradeceram pela sua perspicácia. Aestus lhe deu um abraço apertado, dando tapinhas em suas costas, e Orkan piscou um olho em sua direção, fazendo um joinha com a mão. Spes se sentiu realizado em conseguir salvar todo mundo. Ele realmente se importava com as pessoas ali presentes, cada dia mais. Por ser o mais velho do grupo, ele se sentia responsável em manter todos seguros, quase que como um supervisor de excursão escolar, só que com mais batalhas e perigos.

O grupo fez o caminho de volta, prestando atenção às rochas das paredes, porém sem encontrar mais nenhum Golem novo. Ao alcançar o tapume que isolava o corredor, Aestus bateu na porta, que ainda estava trancada pelo outro lado. Uma voz feminina assustada e trêmula perguntou quem estava ali. O Cavaleiro respondeu:

— Somos nós, os Caçadores que foram contratados pra matar as Criaturas.

— Ah, sim. Só um momento, — a voz respondeu, ainda soando ressabiada.

Uma jovem Minati adolescente abriu apenas uma frestinha, olhando para o interior do corredor com seu olho negro. Confirmando que não havia perigo, ela terminou de abrir a porta e pediu desculpas. Ela usava um uniforme que parecia novo e seu capacete de segurança estava um pouco torto em sua cabeça. Mesmo sem perguntar, era possível saber que ela era uma novata naquele emprego. Ela continuou se desculpando, tentando explicar que era apenas uma estagiária, mas se complicava e confundia tanto que era difícil entender o que dizia. Sem terminar sua explicação, ela pediu licença e saiu andando.

— O que ela achou que ia ter do outro lado da porta? Um Golem que aprendeu a falar? — Orkan perguntou, depois que ela se afastou. Todos deram uma risada contida, exceto Hadria, como sempre.

O funcionário que os acompanhou inicialmente retornou, acompanhado da estagiária encabulada, enquanto os amigos conversavam com vozes baixas. Ele agradeceu profusamente pelo serviço, mas disse para esperarem por ali, enquanto iriam conferir se não havia mais Criaturas escondidas no corredor. Um Humanoide logo apareceu, carregando debaixo do braço um equipamento que mais parecia um brinquedo. Era uma esfera branca, do tamanho de um melão, com quatro rodas grandes. Ele explicou que aquilo era um sensor de Criaturas, que sempre faziam rondas com eles nos corredores antes de começarem qualquer serviço, por precaução.

O Humanoide colocou o objeto no chão que, em uma velocidade maior do que esperavam, sumiu pelo caminho que o grupo havia acabado de percorrer. O funcionário usava um fone em seu ouvido que recebia sinais do equipamento móvel. Depois de alguns segundos, o rapaz assentiu com a cabeça para o Minati bigodudo, que abriu um largo sorriso na direção dos Caçadores.

— Muito obrigado, pessoal! Esse é o setor mais novo da mina. Era uma pena que não dava pra trabalhar nele. Vou informar os meus chefes hoje mesmo. De novo, muito obrigado! Vocês foram fantásticos!

Aestus e Spes ficaram um pouco envergonhados com tamanho reconhecimento, mas Orkan estufou o peito e colocou as mãos na cintura, parecendo que não só seu ego havia inflado com esses elogios. O Minati os levou de volta ao elevador, mandando-os para a superfície. Hadria não aparentava, mas estava extremamente orgulhosa de si. Ela geralmente treinava sozinha e escondida, usando feitiços no ar, aprimorando sua técnica como podia. Tudo que havia aprendido foi por esforço próprio, sem ninguém para ensiná-la. Logo ela poderia ganhar sua tão ansiada liberdade.

O leve solavanco do elevador acordou Hadria de sua imaginação, indicando que haviam chegado à superfície. Todos desceram, conversando sobre banalidades, indo em direção à recepção no outro prédio. O céu escuro causou estranheza nos rapazes, fazendo eles pensarem momentaneamente que haviam passado o dia inteiro dentro da mina. Era difícil de se acostumar à falta de fenômenos circadianos, confundindo a percepção de tempo das pessoas que não moravam em Foscor. Em sua cabeça, Hadria se perguntou se ela se acostumaria às mudanças de dia e noite do resto do mundo.

A recepcionista os congratulou pelo serviço bem feito, informando que um veículo os levaria de volta assim que possível. Eles aproveitaram a espera para comer um pouco dos mantimentos enviados pela equipe do hotel. Os lanches estavam fantásticos, feitos com ingredientes refinados, muito caprichados. Mesmo depois de matarem a fome, ainda havia sobrado bastante comida. Como se tivesse sido combinado, assim que terminaram a refeição, o transporte estava pronto para o retorno. Eles se despediram da recepcionista, acenando, que sorriu e fez uma leve reverência com a cabeça.

Durante a volta, Orkan e Spes cochilaram nos bancos confortáveis, enquanto Aestus conversou um pouco com Hadria. Eles falaram sobre o funcionamento do hotel e como Cornélia reagiria à notícia. Hadria estava otimista, assim como o Cavaleiro.

— A gente não conversou muito com você sobre nossos planos pro futuro, foi tudo muito rápido. Mas, na verdade, Spes, Orkan e eu queríamos montar uma equipe bem forte pra depois, eventualmente, enfrentar Hiner, — Aestus disse, ainda envergonhado de assumir um objetivo tão aparentemente inalcançável. Ele terminou a frase e abriu um sorriso amarelo, sem saber como Hadria reagiria.

— Ok, — ela disse, sem qualquer objeção ou pedir mais esclarecimentos. Aestus ainda não havia se acostumado com a personalidade blasé da Bruxa.

— E você acha que sua mãe ia aceitar mais fácil você ir embora, se soubesse dessa nossa intenção?

— Não. Acho que você ainda não compreendeu o quanto ela é dedicada àquele hotel, — e Hadria se virou para a janela, olhando a paisagem. A fada-da-noite, quando não florescia, deixava uma vegetação verde-escura baixa, parecido com os gramados dos campos fora da região da noite eterna.

Depois que o assunto morreu e eles ficaram em silêncio, Aestus começou a lembrar do que havia se passado nos corredores da mina. Ele ainda não tinha superado seus traumas e sua culpa, o que prejudicava muito seu desempenho. No entanto, Aestus estava obstinado a não repetir o mesmo erro, prometendo a si mesmo que iria controlar seus pensamentos caso o mesmo acontecesse de novo.

O resto do caminho foi bem tranquilo, também sem encontrar Criaturas no trajeto. Ao entrarem na cidade, o Ladino e o Mago acordaram e se espreguiçaram. Em pouco tempo, eles estavam todos desembarcando em frente ao hotel. Seu tamanho imponente ainda impressionava os três forasteiros. Além de ocupar toda a quadra, o prédio ainda tinha vários andares, tornando seu valor praticamente incalculável. O apreço que Cornélia sentia por aquele palácio gótico era facilmente compreensível. O grupo entrou pelas grandes portas, entrando naquela atmosfera mágica que o hotel proporcionava.

Cornélia estava na recepção, falando com uma recepcionista Lagomorfa, que estava com os ombros curvados e uma expressão de subserviência em seu rosto. A jovem estava claramente intimidada pela elegante senhora, ainda com seu cabelo preso no coque mais impecável de todo o planeta. Quando o grupo se aproximou do balcão, a Minati parou o que estava falando no meio de uma frase, olhando todos os quatro de cima a baixo. Sua expressão era um misto de nojo e indignação. Ela não conseguiu se controlar, dizendo baixinho:

— O estado em que vocês estão...

Depois de todas as batalhas e, principalmente, depois da explosão, os Caçadores não estavam realmente em uma condição apresentável. Suas roupas estavam cobertas de poeira e com alguns rasgos. A de Orkan, particularmente, estava deplorável, com a perna direita de sua calça incrustada com uma combinação nojenta de terra e sangue seco. Os quatro se sentiram constrangidos, só percebendo agora que destoavam muito do ambiente chique e imaculado ao redor. Funcionários e hóspedes ao redor os observavam e cochichavam.

— Aquela ali não é a filha da dona? — Um homem perguntou em voz alta para uma amiga sua, sem se preocupar em ser ouvido.

Um burburinho se formou na recepção que, para azar de Hadria, estava mais cheia do que o habitual. Cornélia foi até a porta atrás do balcão e a abriu, segurando-a. Sem falar nada, ela simplesmente fez um sinal com a cabeça, que foi compreendido imediatamente pela trupe. Eles foram rapidamente em direção à porta, deixando pegadas marrons no carpete da recepção. Um por um, eles entraram em fila pela porta, passando em frente de Cornélia. Se seu olhar pudesse causar dor, todos ali estariam se contorcendo desesperadamente, implorando por misericórdia.

Depois que todos entraram, Cornélia passou à frente deles e começou a andar pelos corredores internos. A cena era até cômica, com a pequena senhora Minati sendo seguida diretamente por Aestus, um Cavaleiro brutamontes. Eles foram guiados até uma sala pequena que servia de estoque e almoxarifado, com estantes e caixas com materiais diversos. O lugar era abafado e mal iluminado, mas nem um pouco desorganizado.

— Esperem aqui! — Cornélia disse, fechando a porta e deixando o grupo confuso, olhando ao redor. Depois de alguns segundos em silêncio, eles começaram a conversar baixinho, com medo de ela voltar e ficar ainda mais brava. Passado pouco tempo, a porta se abriu de supetão, assustando os Caçadores. Spes deu um pulo e até fez um barulho, realmente amedrontado.

— Eu me recuso a até conversar com vocês desse jeito. Eu trouxe um rapaz aqui que é Ferreiro. Por sorte ele estava trabalhando aqui no hotel, — e Cornélia fez sinal para um homem corpulento entrar.

O Ferreiro, que usava um uniforme de zelador, entrou no estoque e já começou a pôr suas habilidades em prática. Ele se concentrou bastante para conseguir consertar as roupas e armaduras de todos, aparentemente um pouco destreinado. Mesmo assim, todos os danos e sujeiras presentes sumiram, deixando o grupo apresentável. A matriarca agradeceu pelo serviço do funcionário e o dispensou. Rapidamente, ele saiu do estoque, aliviado de ter feito um bom trabalho na frente da chefe.

— Agora vamos para o escritório, — Cornélia comandou, já partindo com passos fortes e determinados.

Novamente passaram por vários corredores e esquinas, seguindo pelo labirinto interno do hotel. Se largassem Spes ali, ele tinha certeza que demoraria alguns anos para achar a saída. Em contraste, Cornélia podia fazer aquele caminho de olhos fechados. Eles inevitavelmente chegaram ao escritório, encontrando Vásimo sentado novamente à frente de seu computador, sua mesa ainda mais cheia de entulhos e desorganizada e seu óculos de novo quase na ponta do nariz. Como uma repetição do dia anterior, o grupo ficou lado a lado, com Hadria em frente aos rapazes, encarando a Minati furiosa. A senhora cruzou os braços e disse:

— Fale! O que aconteceu que já voltaram?

— Nós fizemos o que você pediu, mãe, — Hadria disse, lentamente, saboreando cada palavra.

Cornélia franziu o cenho, incrédula. Ela puxou o ar para falar algo, mas parou. Essa notícia a pegou de surpresa, já que ela esperava que eles não fossem tão eficientes ou até que não dariam conta do serviço. Ainda sem acreditar no que tinha ouvido, Cornélia pegou um objeto quadrado de cristal, abrindo-o no meio, formando um retângulo pequeno e achatado. Ela manuseou o comunicador com maestria, passando agilmente o dedo em sua superfície, fazendo uma ligação. Orkan e Aestus ficaram impressionados, uma vez que nunca haviam visto um comunicador pessoalmente.

— Oi, aqui é Cornélia, — ela falou no comunicador, após alguns segundos de espera. — Estou ligando para perguntar a respeito da equipe que enviei para exterminar as Criaturas. Ah sim, entendi. Olha, que bom, não é mesmo? Ok, muito obrigada, — e desligou.

Os rapazes estamparam sorrisos em seus rostos, enquanto que Hadria ergueu um pouco mais seu queixo, confiante. Cornélia parecia estar em conflito, tentando decidir o que dizer. No entanto, para surpresa de todos, Vásimo foi o próximo a falar.

— Você conseguiu acabar com o problema da mina, filha? — Ele disse, retirando os óculos, para alívio de Spes, que até suspirou de alegria. — Parabéns, Hadria! Você me surpreendeu.

— Obrigada, pai.

— Eu disse que ela era boa, — Spes acrescentou, com a voz baixinha, mas audível, fazendo Cornélia comprimir os lábios.

— Parabéns por fazer nada mais do que sua obrigação, — Cornélia disse, se esforçando para fazer algum comentário positivo, visivelmente contrariada. — Eu tenho que confessar que achei que essa pataquada ia te fazer voltar correndo, implorando para trabalhar no hotel. Mas eu me enganei.

— Com licença, senhora Cornélia, — Aestus disse, dando um passo à frente. — Eu preciso acrescentar aqui que a Hadria foi muito útil nessa nossa missão. A ajuda dela vai ser essencial pra gente conseguir derrotar Hiner, que é nosso objetivo final.

Pela primeira vez em tempos, Hadria viu sua mãe soltar uma risada. Ela jogou a cabeça para trás, soltando uma gargalhada estranha. O som que ela fazia rindo era desagradável, inquietante, soando como puro deboche. Depois de um tempo, Cornélia se recompôs, voltando à mesma pose anterior. Ela disse:

— Hiner é só um desocupado que gosta de se mostrar por aí. Um lunático que vai ser morto pelo Baruc, mais cedo ou mais tarde. Vocês não precisam se preocupar com ele, — e Cornélia começou a andar pelo escritório. — Mas eu vou honrar minha palavra. Você pode fazer algumas caçadas por aqui, na região, mas você não tem minha permissão para sair por aí, brincando de aventureira. É só isso, pode ir.

— Mas você disse que eu poderia ser uma Caçadora! — Hadria retrucou, tremendo, deixando a raiva transparecer.

— Eu disse que você poderia fazer caçadas, nunca disse que você poderia fazer papel de palhaça por aí, no mundo, — Cornélia respondeu, com um sorriso de canto de boca, parecendo estar se divertindo com o efeito que causava.

Hadria ficou furiosa e revoltada, com seus olhos escurecendo ainda mais. Aestus e Orkan, em vão, tentavam argumentar, falando um por cima do outro. Spes só fechou os punhos e mordeu os lábios, sem acreditar que poderia existir uma pessoa tão desprezível assim. Vásimo só assistia à cena, sem reação, voltando os olhos para o computador em seguida.

— É só isso, eu disse! Podem se retirar! — Cornélia disse, com uma voz estrondosa e autoritária, incompatível com seu tamanho. O grupo se silenciou instantaneamente, saindo um por um do escritório. Era inútil discutir com aquela mulher.

Spes sugeriu irem ao restaurante conversar, mas Hadria se negava a ficar um segundo a mais naquele hotel. Ela sentia seus olhos queimarem, mas não permitia as lágrimas saírem. Toda sua revolta permaneceu internalizada, formando uma tormenta destruidora em sua mente. Eles saíram do hotel e foram, então, até à praça ali em frente, sentando em bancos de pedra cinza próximos a um pequeno chafariz redondo. O som da água corrente era agradável e relaxante, porém não tinha efeito algum em aplacar a raiva da jovem Bruxa.

Todos permaneceram em silêncio, parte por não saber muito o que dizer em uma situação dessas, parte por não ter mais ideia do que fazer. Os três rapazes agora haviam voltado à estaca zero, tendo que recomeçar a busca por um Bruxo disposto a ser Caçador novamente. Na verdade, os três até cogitavam essa alternativa, mas queriam mesmo era que Hadria se juntasse à equipe. Sua proficiência com feitiços era absurda, mesmo ela sendo uma figura atípica e muito particular. Na verdade, sua esquisitice também a tornava, de certo modo, uma adição especial à equipe, já que suas peculiaridades não eram irritantes.

— Aestus, eu queria pedir um favor, — Hadria disse, depois de um tempo. Ela soava irritada e decidida. O Cavaleiro, que estava sentado com os cotovelos apoiados no joelho, olhou em sua direção, curioso. — Pegue uns contratos na Guilda. Eu preciso extravasar. Desculpa se estou soando autoritária, — ela acrescentou, preocupada em estar passando uma imagem ruim.

Ele se levantou, assegurando-a que ele entendia, e foi em direção ao hotel. Spes disse que iria junto, ajudar a escolher (e achar, naquela bagunça) contratos adequados. Orkan ficou para trás, para fazer companhia a Hadria. Ela ainda permanecia quieta, extremamente frustrada. O Ladino conseguia se condoer da situação da garota, uma vez que seus pais também não eram um exemplo de apoio e carinho. No entanto, não entrava em sua cabeça por que ela não simplesmente fugia, seguia seu caminho. Parecendo que Hadria lia sua mente, a Bruxa desabafou:

— Eu queria tanto conseguir só ir embora, — ela disse, olhando para o chão, com os pés apoiados no banco e o queixo apoiado em seus joelhos. — Queria não ter nascido Minati.

— Mas o que tem a ver?

Ela olhou na direção de Orkan com seus olhos marejados. Sua expressão, no entanto, continuava ilegível, criando um contraste estranho.

— Nossa raça tem essa conexão bizarra entre pais e filhos. Por mais que eu tente, eu não consigo desobedecer completamente à minha mãe. É mais do que um costume, do que uma tradição. É tipo um pacto, sabe?

— E o que acontece se você quebrar? — Orkan perguntou, tentando entender.

— Não sei. Nunca ninguém conseguiu.

Com essa nova informação em mente, Orkan só conseguia sentir ainda mais pena de Hadria. A dupla permaneceu em silêncio, ouvindo o barulho da água do chafariz e o farfalhar das folhas das árvores falsas ao redor. De acordo com os cálculos do Ladino, era o começo da tarde agora. O sino da universidade começou a badalar alguns momentos depois, confirmando o que ele havia pensado. A falta de luminosidade só deixava aquela cidade e aquele momento, particularmente, mais depressivos.

Não muito tempo depois, Spes e Aestus voltavam do hotel, carregando alguns contratos em mãos. Eles mostraram as opções à garota, que definiu a ordem que iriam fazer. Sem demora, ela já pulou do banco em que estava sentada e partiu, liderando a equipe. Aquele era seu momento. De alguma maneira ela precisava expressar sua raiva e frustração.

Os quatro passaram a tarde e até o começo da noite batalhando contra Criaturas, ajudando os habitantes de Foscor. Eles enfrentaram Gosmas dentro do esgoto novamente, porém agora da maneira certa; derrotaram Dentes-de-sabre, que rondavam os muros da cidade; e uns Diabretes de Fogo, que estavam estragando plantações de fada-da-noite. Todas as batalhas foram protagonizadas por Hadria, que conjurava seus feitiços com maestria, dilacerando seus inimigos com facilidade. Os três rapazes já haviam se acostumado com sua mudança abrupta de comportamento, soltando gargalhadas e contorcendo seu rosto com seu sorriso maléfico.

Cansados, eles voltaram para o hotel, um pouco mais calmos e aceitando o fato de que não teriam a companhia de Hadria fora da cidade. O jantar foi descontraído, recontando as aventuras do dia. Eles conversavam animados, rindo e brincando sobre os erros que cometeram nos combates do dia, além de contarem casos passados engraçados. Depois de um tempo, todos ficaram em silêncio, que foi quebrado por Hadria:

— Então amanhã vocês vão atrás de um outro Bruxo?

Os três rapazes assentiram, um pouco encabulados e desanimados. Eles sabiam que não era o que queriam, mas era a única alternativa. Um clima pesado caiu sobre a mesa, tornando a conversa enfadonha e lenta. Até a ótima sobremesa que comiam parecia sem gosto. Spes, claramente contrariado, resolveu ir dormir, sendo seguido pelos outros rapazes em sequência. Hadria permaneceu sentada à mesa, olhando ao redor, se perguntando se aquela seria sua vida para sempre. Tentando não entrar em depressão, ela também se dirigiu aos seus aposentos. Cansada, ela dormiu pesado, depois de um longo banho.

***

Para piorar a situação desfavorável em que se encontravam, o dia seguinte se iniciou chovendo. Gotas grossas batiam contra as janelas, criando um barulho branco agradável, embalando o sono de Orkan. Seu despertador já havia tocado três vezes, mas ele se recusava a acordar. Os lençóis de linho e os travesseiros de plumas, diferente de tudo com o que ele estava acostumado, só dificultavam seu despertar. Ele não queria transparecer, mas Orkan conseguia pressentir que a busca por um novo Bruxo seria infrutífera. Hadria era a única pessoa que poderia preencher a vaga na equipe. E não era só o fato que ela era excepcional em batalha, mas ele sentia algo a mais, assim como aconteceu quando pensaram em chamar Spes para a equipe.

Uma batida leve na porta interrompeu seus pensamentos. Como em uma sintonia do destino, Spes era quem estava ali, o chamando para tomar café da manhã. "Se bem que deveria ser só chamado de café, né? Porque aqui nunca é sempre manhã," ele disse rindo. E o Mago se afastou da porta, enquanto sua risada característica ia diminuindo. Orkan pulou da cama, vestindo somente uma calça de pijama, e sentiu o ar mais frio no quarto. A chuva, somada à falta de sol, havia baixado a temperatura consideravelmente. Ele tomou uma ducha bem quente e se vestiu, colocando uma camisa verde manga comprida, com seu capuz usual, calças marrons e uma bota velha. Eles podiam aproveitar o dia chuvoso para comprar equipamentos novos.

Ao descer para o já conhecido salão de jantar, Orkan encontrou seus dois amigos sentados à mesa de sempre, quase terminando a refeição. Antes mesmo que pudesse perguntar, Spes se adiantou e disse que Hadria hoje precisava trabalhar, porque a pilha de lençóis sujos estava quase chegando no teto, segundo Cornélia. "Um desperdício de habilidade," o Ladino pensou, mas resolveu guardar para si, porque todos ali com certeza pensavam o mesmo.

Depois de se servir e enquanto comia, Orkan sugeriu aos outros rapazes o que havia pensado, a respeito de irem comprar novos equipamentos. Caçadas não combinam com chuva forte, então eles tinham que procurar algo para fazer enquanto o tempo não melhorava.

— Não seria melhor esperar um dia que a Hadria também pudesse ir? — Spes perguntou. Ele ainda não havia perdido a esperança de que ela se juntaria à equipe.

— Acho melhor a gente ir sem ela mesmo, — Aestus respondeu. — A gente tem que se acostumar com a ideia que ela vai ficar por aqui mesmo. É melhor começar a fazer umas coisas sem ela.

O Lagomorfo concordou, olhando para baixo, dobrando seu guardanapo cinza-claro. Orkan se apressou e terminou de comer, se levantando imediatamente. Quanto menos tempo ficassem parados, menos tempo teriam de se lamentar. Assim, eles passaram o dia tentando resolver coisas mais banais. Passaram por um Ferreiro e compraram armaduras e um manto novo, mais resistentes. Também trocaram alguns acessórios, como luvas, botas e manoplas. O Ferreiro era excepcional em seu serviço, cobrando caro, mas melhorando bastante os encantamentos nas armas de Aestus e Spes. Orkan, por sua vez, trocou novamente de adagas, desta vez usando um par maior, com lâminas de obsidiana extremamente afiadas.

O próximo destino foi o banco, onde gerenciaram o dinheiro de cada um e separaram uma conta só para a equipe, que gastariam com suprimentos e alguns itens essenciais para o combate. Com os vários contratos que já haviam completado, eles conseguiram juntar uma quantia razoável, permitindo-os viver sem preocupações financeiras por um bom tempo. Sem ter muito o que fazer, resolveram ir atrás de outros Bruxos em lugares públicos da região.

O dia acabou não sendo nada produtivo. A equipe retornou ao hotel no fim do dia, molhados e cansados. A chuva não havia dado trégua, diminuindo ainda mais a moral do grupo. Eles encontraram Hadria atrás do balcão da recepção, que abriu um sorriso discreto por um milissegundo ao vê-los, porém logo voltando à sua inexpressão de sempre. Os rapazes contaram como tinham passado o dia e a Bruxa disse que não tinha muito o que contar de sua parte, mas que estaria livre no dia seguinte. Aquela notícia melhorou um pouco o humor deles, que jantaram e dormiram cedo.

A estadia em Foscor não estava sendo agradável. A cidade, apesar de bonita e muito limpa, parecia estar envolta por uma atmosfera pesada que drenava as energias. Tudo era perfeito demais, forçado. Os próximos dias se arrastaram em um marasmo improdutivo. O grupo se reunia para fazer caçadas esporádicas, enquanto procuravam sem muito esforço um substituto para Hadria. Eles até encontraram dois Bruxos novatos que se interessaram, mas que mal conseguiam conjurar feitiços simples. Hadria mostrou para eles como se fazia, intimidando os pobres garotos com sua proficiência (e com suas risadas).

Sentindo que a situação com sua mãe não melhoraria, Hadria resolveu abrir o coração com seus novos amigos, durante um jantar depois de um dia longo:

— Eu decidi que não vou mais acompanhar vocês em caçadas, — ela disse, com as mãos no colo, encarando os outros três. Percebendo a derrota no olhar de seus companheiros, ela acrescentou: — Não me levem a mal, eu amo batalhar ao lado de vocês. Eu nunca me senti tão realizada na vida. Mas, ao mesmo tempo, eu fico muito triste quando volto pro hotel e percebo que não vou poder continuar fazendo isso com vocês. Eu acho que, no fundo, minha mãe estava certa. Tudo isso não passa de uma fantasia de uma menina boba.

Os três rapazes começaram a falar juntos, tentando argumentar e defender Hadria, mas a Bruxa se levantou abruptamente, calando-os.

— Eu vou dar uma volta. Preciso ficar sozinha, — e ela partiu, saindo do salão, indo em direção à porta principal que levava à rua. Sem nem falar nada, os rapazes concordaram que precisavam deixar ela em paz. Não havia palavras sábias ou gentis o suficiente para apaziguar o coração de alguém que desistia de seus sonhos.

A mesa ficou com um clima pior do que de um enterro. Spes se sentia como se tivesse acabado de se despedir de um grande amigo, chorando em silêncio. Aestus, abnegado, havia aceitado que esse era o destino de Hadria, mas mesmo assim estava destroçado por dentro. Orkan, por outro lado, estava furioso. Ele se levantou de uma vez, derrubando um copo, que se espatifou ruidosamente, e foi para seu quarto. Os outros clientes olhavam com reprovação para o Ladino, que pouco se importava. Enquanto um garçom proativo limpava a sujeira deixada por Orkan, Spes disse:

— Eu já vou pro meu quarto também, Aestus. Você vem?

— Não, eu vou ficar mais um pouco aqui. Tô sem sono.

Spes balançou a cabeça e limpou suas lágrimas na manga de seu manto. Ele também não estava com um pingo de sono, mas achou melhor se recolher. Aestus permaneceu sentado, recostado na cadeira acolchoada, bebendo água de uma taça refinada, analisando as pessoas e o restaurante ao redor. Toda a admiração e fascínio que sentiu ao chegar em Foscor tinha se transformado em aversão. Os sorrisos dos habitantes locais, antes acolhedores e simpáticos, agora pareciam falsos e forçados. A ganância que regia a cidade, exemplificada pela figura da Cornélia, tinha drenado toda a energia daquele lugar. Ele não via a hora de ir embora dali, começar um capítulo novo em sua aventura.

O Cavaleiro permaneceu no mesmo lugar, praticamente imóvel, tentando pensar em alguma estratégia para convencer Cornélia, porém sem sucesso. A megera parecia decidida e intransigente. O único idioma que ela falava era dinheiro. Sua vida era resumida àquele hotel (que Aestus reconhecia que era majestoso). Ele colocou os cotovelos na mesa, apoiando o queixo nas mãos. Com um suspiro, depois de muitos tratos à bola, ele finalmente aceitou que tinha perdido essa batalha. Ele pensou em ir atrás de Hadria para tentar conversar, mas desistiu. Ela poderia estar em qualquer lugar da cidade e o Cavaleiro não sabia ainda se virar sozinho pelas ruas quase idênticas de Foscor. Sua única opção viável era ir dormir.

Enquanto isso, Hadria vagava sem rumo pelas ruas. O vento frio batia em seu rosto, fazendo seu cabelo lustroso ondular. Seu coturno pisava o chão com raiva, atritando contra os pedregulhos das ruas de calçamento. Seu trajeto era errático, decidindo em qual rua virar quando alcançava algum cruzamento. Revoltada, ela lançava feitiços aleatórios, congelando uma placa de um restaurante, lavando de água a fachada de alguma casa, fazendo um galo de ferro de um campanário girar com um pequeno tornado nos telhados. Eram pequenos gestos de vandalismo inocente para expressar o que sentia. Ela torcia para encontrar algum assaltante ou alguém mal intencionado, para poder realmente extravasar, mas, felizmente, ninguém assim cruzou seu caminho.

Ela não conseguia dizer quanto tempo passou caminhando. Poderiam ter sido apenas minutos ou longas horas. Seu cérebro foi desligado, desconectando-se do mundo e da realidade, a fim de evitar mais sofrimento. A Bruxa voltou a si enquanto andava em uma rua residencial, passando em frente a casas simples, mas ainda assim bonitas e com um jardim decorado. Ela parou e olhou ao redor, percebendo que estava um pouco perdida. Não que isso a deixasse preocupada, longe disso, mas talvez fosse difícil para se localizar. No entanto, depois de percorrer poucas quadras, foi possível ver, ao longe, o telhado e os andares superiores do Hotel Grandioso.

Hadria fechou os punhos com força, seus nós dos dedos ficando brancos. Ela buscava forças dentro de si para ir contra sua mãe, mas só encontrava revolta e frustração. Quando ela pensava que estava mentalmente vencendo sua conexão materna, seu cérebro parecia piscar e retomar a programação original, assumindo-se submissa às vontades de Cornélia. Descartando sua rebeldia e voltando ao seu estado apático de sempre, Hadria decidiu voltar ao hotel, aceitar sua vida predestinada de sempre. Agora, ao contrário de como começou seu passeio noturno, ela arrastava os pés, olhando para o chão, os braços caídos ao lado do corpo. Não restava a não ser admitir derrota.

Depois de muito caminhar, ao se aproximar dos fundos do hotel, um movimento em sua visão periférica chamou a atenção de Hadria. Uma figura suspeita, da altura de um Humanoide adulto, usando uma capa preta com um capuz obstruindo a visão de seu rosto, se esgueirava por entre os postes, buscando a escuridão. Devia ser tarde, já que as ruas estavam desertas, sem qualquer movimentação. Por isso, aquela pessoa chamou tanto a atenção da garota. Hadria ficou curiosa e seu desejo por conflito retornou com tudo. Ela foi em linha reta na direção daquele indivíduo suspeito, determinada a caçar confusão. Ele virou à direita em uma rua larga que começava nos fundos do hotel, saindo do campo de visão de Hadria.

Destemida, a garota fez a curva em passos rápidos, quase correndo. No entanto, para sua surpresa, não havia mais ninguém ali. A Bruxa deu alguns passos incertos, quase chegando à metade da quadra, olhando ao seu redor, decidida a encontrar o fugitivo suspeito. Aquela rua era particularmente vazia, consistindo basicamente dos fundos de comércios próximos, com áreas de carga e descarga de produtos. Alguns postes de luz salpicados pela calçada iluminavam muito mal a região, piorando a inquietação de Hadria. Ao ouvir um barulho quase imperceptível às suas costas, ela se virou de uma vez, materializando seu grimório e encarando a pessoa encapuzada.

— Quem está aí? — Hadria gritou, mantendo seu grimório flutuando ao seu lado, instintivamente tentando parecer mais intimidadora.

A figura enigmática estava parada no meio da rua, olhando na direção da garota. Sua capa preta cobria todo seu corpo, arrastando no chão, porém sem nenhum rasgo ou sujeira. Mantendo o mistério, a pessoa estava em um ponto escuro da via, mantendo seu rosto coberto pelo capuz e pelas sombras. Mesmo assim, uma sensação ruim percorreu o corpo todo de Hadria quando aquele indivíduo finalmente levantou o rosto e a encarou. Ela, no entanto, permaneceu imóvel, obstinada a enfrentar quem quer que fosse.

— Eu estava mesmo te procurando, Hadriazinha, — uma voz masculina com um leve tom de escárnio disse. — Assim você facilita meu serviço.

— Eu te conheço, por algum acaso? — Ela perguntou, afrontosa.

— Ah, não, não. Não pessoalmente. Mas, de certo modo, sim. Todo mundo me conhece, eu diria, — o homem divagou, gesticulando sutilmente com as mãos. — Me desculpe, eu estou um pouco nervoso. Faz um bom tempo que não converso com uma pessoa assim, diretamente, — e, mesmo sem conseguir ver direito, Hadria sabia que ele havia aberto um sorriso.

— Eu estou sem paciência hoje, seu esquisito. Eu não me provocaria se fosse você. Diz logo o que você quer comigo, — Hadria disse, devagar, inclinando a cabeça para a direita. Ela estava irritada, mas também intrigada.

— Direta, como eu gosto, — o homem disse, soltando um riso abafado. — Então, eu sei que você tá desanimada por estar presa em uma situação desfavorável. Eu posso resolver isso pra você, se você quiser, — ele ofereceu, abrindo as duas mãos na direção da garota. Seu tom de voz era forçadamente gentil, além de um pouco jocoso.

Hadria titubeou antes de responder, tentando imaginar o que aquele homem misterioso e suspeito poderia estar querendo dizer. O que ela mais queria era uma solução para seu problema, mas ela não via nenhuma alternativa possível que também fosse razoável. Ela resolveu retrucar:

— Eu não estou interessada. Pode ir embora.

O homem riu, levantando um pouco a cabeça e levando sua mão ao rosto, passando a mão em sua barba. Hadria achou, por um segundo, que conhecia aqueles traços.

— Eu não sei por que eu disse que poderia resolver as coisas. Acho que eu queria parecer simpático, talvez. Na verdade, não importa o que você quer ou não. Eu vou fazer o que precisa ser feito, — o homem disse, com sua voz adquirindo um tom mais sério e ameaçador. — Afinal de contas, as pessoas precisam de um pequeno empurrão na direção certa de tempos em tempos.

— Eu falei que estava sem paciência! Vai embora! — Hadria gritou, irritando-se e conjurando um feitiço de vento na direção do homem. Uma rajada fina, agindo como uma lâmina, atingiu o rosto de seu alvo, jogando seu capuz para trás e fazendo-o virar sua face. Nesse momento, a Bruxa arregalou seus olhos negros, reconhecendo seu oponente mesmo com aquela luminosidade baixa.

Hiner virou a cabeça e voltou a encarar Hadria, com um sorriso largo em seu rosto. Ele deu alguns passos na direção da menina, parando sob um poste, adentrando o cone de luz que permitia sua visualização completa. O ponto em seu rosto onde foi atingido pelo feitiço de Hadria, na maçã direita de seu rosto, agora apresentava um corte horizontal, de onde escorria um filete de sangue. O Bruxo passou o polegar sobre o ferimento e depois observou seu dedo, com uma expressão mista de surpresa e admiração. Hadria, por mais que não parecesse, estava paralisada de medo, pensando se teria feito a coisa certa.

— Você conseguiu me ferir, Hadria, — Hiner disse, limpando o sangue de sua mão em sua capa. Sua voz estava calma, até um pouco feliz. — Tem que ser muito poderoso pra conseguir isso, ainda mais com um feitiço simples. Mas chega de brincadeira, — e, em um movimento ágil, ele levantou seu braço direito, materializando um grimório pequeno e simples, que também flutuou no ar. — Parada!

Hadria sentiu seu corpo subitamente parar no lugar, sem conseguir mover um músculo sequer. Seu coração ainda batia debilmente e seu pulmão mal conseguia puxar o ar, mas, de resto, nada mais se mexia. Seu grimório, que pairava ao seu lado, caiu sobre o calçamento da rua, quase sem fazer ruído. Sua mão esquerda, no entanto, ainda estava na mesma posição, porém não mais controlando sua arma. Por mais que ela tentasse resistir ao feitiço, todos os seus esforços eram inúteis. Era uma sensação horrível, incapacitante. Ela estava completamente indefesa e vulnerável em frente à pessoa mais poderosa de Kairos.

— Achei que você seria mais maleável, mais aberta às minhas propostas, Hadria, — Hiner disse, brincando com o grimório no ar. Por impulso e sem pensar, ele trouxe sua mão esquerda sobre o ferimento em seu rosto, que brilhou com uma luz branca efêmera. Ao tirar a mão, sua pele estava imaculada, sem qualquer sinal de corte ou sangue. Percebendo o que tinha feito, Hiner hesitou e encarou Hadria, abrindo um sorriso em seguida. — Ops, acho que você descobriu meu segredo, — e deu uma risada.

O cérebro de Hadria quase entrou em parafuso. Um Bruxo das Trevas nunca conseguiria se curar sem usar uma poção ou algo do tipo. Aquilo que ela viu foi, sem dúvidas, um Mago da Luz tratando de seu ferimento com uma magia. Ela tinha certeza do que tinha visto. Como Hiner podia usar habilidades de duas Classes? Hadria imaginou se sua paralisia havia afetado seu raciocínio e percepção, mas ela sabia que não. Seus olhos ardiam, secos, sem conseguir piscar. O desconforto que ela sentia era real, assim como o que ela havia visto.

— Mas vamos acabar logo com isso, né? — O homem disse, levantando um pouco sua mão e conjurando uma bola de fogo no ar, que ia girando e crescendo, como ocorreu em Silvi. Hadria não temia a morte, mas também não queria que esse fosse seu fim. — Só quero que se lembre de duas coisas: primeiro, não acredite em tudo o que disserem; e segundo, o que você vê, nem sempre é a verdade.

Enquanto isso o orbe flamejante inflava cada vez mais, iluminando toda a rua, criando sombras que faziam uma dança macabra. Hadria conseguia sentir o calor em seu rosto, incompatível com a distância e tamanho da bola de fogo. O poder de Hiner era realmente incomparável, conseguindo injetar uma energia absurda nos feitiços que conjurava. Ele fechou os olhos e estendeu o braço esquerdo acima da cabeça, pronto para arremessar seu sol artificial em miniatura. Antes, no entanto, ele encarou a garota novamente, com um sorriso pequeno no rosto, e disse:

— Parafraseando o ditado: quanto mais Grandioso, maior a queda. Ah, essa foi boa! — E então Hiner estalou seu dedo, dividindo a bola de fogo em nove menores, dispostas em uma linha reta no ar. Ato contínuo, ele fez um movimento curto e rápido com a mão para trás, lançando os nove orbes na direção do Hotel Grandioso. Os projéteis se expandiram logo antes de atingir a construção, criando labaredas que atingiram pontos e alturas variados, simultânea e silenciosamente. Um incêndio silencioso iniciou-se de forma generalizada no prédio, ainda discreto, porém crescendo de maneira exponencial.

Hiner olhou para trás, admirando sua obra, orgulhoso, muito diferente de anos atrás, quando incendiou aquele orfanato. Conforme as chamas iam se alastrando, nuvens de fumaça preta começavam a subir, encobrindo as luas no céu. O Bruxo fixou seus olhos em Hadria novamente, que começava a mostrar sinais de que voltaria a se mover em breve. Colocando seu capuz novamente sobre sua cabeça, Hiner se despediu:

— Bem, tenho que ir. Até a próxima, Hadria! — E, antes de começar a correr, ele parou no lugar, se lembrando de algo, levantando o dedo indicador e erguendo as sobrancelhas. — Ah, eu quase esqueci! Minha próxima grande aparição vai ser em Dunascas! Informação valiosa essa, hein? Tchau, tchau! — E partiu em disparada, saindo do campo de visão da garota.

Hadria se esforçava ao máximo para quebrar o efeito daquele feitiço e se mover. Ela agora conseguia sentir a ponta dos dedos se mexendo e piscar os olhos, trazendo um alívio à sua córnea ressecada. Enquanto isso, o fogo aumentava e se espalhava, sem nenhum obstáculo. Por mais que ela odiasse aquele hotel, vê-lo queimando não a fazia se sentir melhor. Hadria só conseguia imaginar como estariam seus amigos e sua família lá dentro, criando cenários horríveis em sua mente. Os segundos se arrastavam e ela ainda não conseguia sair do lugar, assistindo de camarote o começo do desastre que estava prestes a acontecer.

***

Orkan estava em um sono profundo, deitado esparramado na cama, de bruços, com uma das pernas dobrada. Ele foi acordado com batidas fortes na porta e uma gritaria vinda do corredor. Seu cérebro ainda estava tentando processar o que estava acontecendo, quando a porta de seu quarto foi arrombada com um estrondo. O Ladino pulou sobre sua cama, ainda meio atordoado, mas preparado para se defender. Para piorar sua confusão, ele se deparou com Aestus vestindo apenas um short, segurando a porta destruída, com Spes logo atrás, trajando seu manto novo, com as duas mãos no rosto e os olhos arregalados em pânico.

— Pega suas coisas! O hotel tá pegando fogo! — Aestus gritou, arremessando para o corredor a porta que havia arrancado. Spes se abaixou a tempo, evitando por pouco ser atingido. Antes que Orkan pudesse processar a informação, Aestus já havia saído do quarto. Spes ficou atarantado, sem saber se ajudava seu amigo ou se também ia buscar seus pertences.

Ativando seus sentidos, Orkan conseguiu ouvir as pessoas correndo e gritando em andares superiores, escutou o fogo devorando a madeira do hotel em diferentes lugares inespecíficos, sentiu o cheiro áspero da fumaça. Em milésimos de segundos, o Ladino já estava de pé, se vestindo e colocando o que era de importância em sua mochila. Spes resolveu fazer o mesmo, se atentando para a emergência em que estavam. Em pouquíssimo tempo, Orkan já tinha arrumado sua bagagem (no limite do possível) e a arremessado pela janela do quarto, planejando coletá-la depois de conseguir sair dali.

Aestus e Orkan saíram para o corredor praticamente ao mesmo tempo, indo em direção ao quarto de Spes. O Mago tinha acabado de arrumar suas coisas e estava com o olhar perdido, claramente dissociando-se da realidade. Ele balbuciava:

— As pessoas vão... O fogo... A gente...

— Spes! Eu preciso que você se concentre! A gente vai tentar ajudar quem conseguir e dar o fora daqui, tá certo? — Aestus disse, firme, segurando seu amigo pelos ombros e se abaixando, para ficar da altura dele. Enquanto isso, Orkan jogou também a bagagem do Lagomorfo na rua. Spes focou seus olhos em Aestus e balançou a cabeça, controlando seus pensamentos.

Os três rapazes saíram apressados pelo corredor, batendo nas portas pelas quais passavam e atentos a gritos de socorro. Algumas pessoas estavam correndo para a saída, enquanto outras ainda estavam perdidas, tentando entender o que estava acontecendo. O fogo ainda não havia atingido a região em que estavam, então tudo parecia distante e surreal ainda. No entanto, ao subir dois lances de escadas, eles viram uma nuvem espessa e negra começando a dominar o ambiente. A temperatura ali estava perceptivelmente elevada, fazendo-os suar, colando a roupa ao corpo. O grupou notou que, aparentemente, os hóspedes já haviam evacuado em sua maior parte.

No meio do corredor, a poucos metros do grupo, duas crianças Lagomorfas de pijama choravam abraçadas, sozinhas. Spes correu até elas e se abaixou, tentando acalmá-las e perguntar sobre seus pais. Aestus e Orkan verificaram os quartos ao redor, tentando encontrar outras pessoas por perto, mas não acharam ninguém. Aestus resolveu levar os dois pequenos no colo para a saída mais próxima, mas, assim que ficou em pé com as crianças nos braços, um pedaço do teto desabou bem próximo de onde estavam. O andar de cima estava completamente tomado pelo fogo. Línguas flamejantes chicoteavam o ar, parecendo buscar vítimas para queimar. O calor ardia na pele e a fumaça aumentou consideravelmente.

O grupo recuou, tentando fugir do perigo, com medo de mais parte do teto desabar. Spes tentou criar um globo de proteção ao redor do entulho, mas o calor extremo e o contato direto com o fogo destruíam sua magia em segundos. O choro das crianças só aumentava a cada segundo, somando-se à orquestra que era o hotel sendo destruído rapidamente pelo fogo. Orkan apontou para escadas que ficavam um pouco à frente, guiando o grupo, correndo rapidamente. Entretanto, como se o Hotel Grandioso fosse uma entidade tentando punir o grupo, outro setor do teto caiu quase em cima de Orkan, que pulou à frente, não sendo atingido por milímetros. Agora, o Ladino estava separado do resto de seus amigos, que ficaram presos entre duas pilhas de escombros flamejantes.

Orkan estava caído, deitado de costas, com os cotovelos apoiados no chão. Ele se levantou, tossindo, e procurou algum outro caminho que poderia fazer, mesmo sabendo que não tinha como ajudar seus amigos. Logo ele desistiu, resignado, e gritou:

— Eu vou buscar ajuda! — E desceu as escadas, em uma velocidade nada segura.

Spes, tentando manter as crianças, Aestus e a si mesmo seguros, criou uma redoma de proteção, tentando evitar que a fumaça os intoxicasse. Já que estavam mais distantes das chamas, essa redoma conseguia se manter em pé. O Cavaleiro estava ajoelhado, tentando acalmar os pequenos Lagomorfos, assegurando-os que logo sairiam dali, porém nem ele sabia como iriam fazer isso. Era uma questão de tempo até que todo o teto desabasse e matasse todos ali.

***

Em menos de um minuto, Orkan havia descido os seis andares, ficando sem fôlego, turvando sua visão momentaneamente. Ele estava no lobby, onde uma multidão havia se juntado. Havia funcionários evacuando hóspedes, muita gente chorando, equipes de Bruxos se organizando para tentar apagar o fogo com seus feitiços... A definição de pandemônio. O Ladino não sabia o que fazer, a quem pedir ajuda, varrendo todo o local atrás de alguma ideia. Ele era a pessoa mais alta dali, permitindo-o ver todos ao redor. No entanto, uma voz chamando o seu nome o fez olhar para a porta de entrada.

— Orkan! — Era Hadria, com uma urgência em sua voz que lembrava um pouco sua mãe. O rapaz correu até a pequena Bruxa, empurrando algumas pessoas no caminho.

Orkan estava com a roupa chamuscada e seu cabelo loiro sujo de fuligem, enquanto que Hadria estava impecável, apenas com sua testa molhada de suor. O Ladino ficou em pé em frente à garota, muito mais alto que ela, tendo que olhar diretamente para baixo.

— Eu sei quem causou isso. Onde estão os outros? — Hadria disse, por cima do vozerio redor.

— Vem comigo! Depois a gente conversa! — E Orkan pegou a garota no colo, sem pensar muito sobre o que ela achava disso. Felizmente, ela imaginou que a situação deveria ser emergencial, não se sentindo desrespeitada.

O Ladino desviou da multidão, onde Hadria via vários rostos conhecidos. Ela procurou sua família, mas não os encontrou. Ela ficou um pouco preocupada, porém, antes que pudesse olhar todo o lobby, Orkan já estava subindo as escadas, mais lentamente do que as desceu. Ele não falava nada, concentrando-se em sua respiração, tentando fazer o percurso de volta o mais rápido o possível. Enquanto iam subindo, Hadria pôde vislumbrar o estado em que estava o interior do hotel. A cada andar que alcançavam, a destruição e o calor iam aumentando.

Ao chegar no sexto andar, o cenário era aterrorizante. Eles mal conseguiam acessar o corredor. As chamas alcançavam o teto e a fumaça obstruía a visão. Respirar ali era doloroso, fazendo o pulmão arder.

— Eles estão ali! — Orkan arfou, apontando para o meio do corredor. Sua voz era quase inaudível sob o estalar constante do fogo.

Hadria não precisava de mais nenhuma informação. Ela materializou seu grimório e, quase que instantaneamente, lançou um feitiço na direção das labaredas. Três jatos grossos de água jorraram de sua mão estendida, fazendo o fogo assobiar e se extinguir. Orkan conseguiu ver, atrás de uma pilha de escombros, Spes em pé, mantendo sua redoma de proteção ao redor de Aestus e as crianças. Ele parecia exaurido, porém firme. Antes que Orkan pudesse comemorar, as chamas voltaram novamente com tudo, transformando o corredor novamente no inferno que estava antes.

— Hiner causou esse incêndio! Seu feitiço é mais forte que o meu, eu não vou conseguir apagar! — Hadria disse, percebendo a confusão e desespero no rosto de Orkan.

Enquanto isso, no meio do corredor, Spes viu Hadria tentando ajudá-los, porém sem sucesso. O fio de esperança que ele ainda sentia foi rompido, fazendo-o entrar em desespero. Para piorar, um pedaço do teto caiu sobre a beirada da redoma, fazendo-a rachar. A fumaça e o calor começaram a invadir aquele pequeno espaço seguro que ainda restava.

— Você tem que fazer alguma coisa, Aestus! Eu não vou conseguir proteger a gente por muito mais tempo! — Spes gritou, segurando seu cajado com as mãos trêmulas e com o suor escorrendo pelo rosto e corpo.

— Eu... Eu não tenho o que fazer... — Aestus disse, derrotado. Ele alternava o olhar entre Spes e as crianças, perdido.

— Você é o único que pode! Você não pode deixar a gente morrer!

Essas palavras de Spes serviram de gatilho para Aestus. Ele se lembrou de sua promessa de proteger a todos, depois do que aconteceu com seus pais na mina tantos anos atrás. O Cavaleiro ficou em pé, contraindo todos seus músculos, fazendo-os brilhar sob a camada de suor. Sua mandíbula estava travada e seus olhos semicerrados. Ao materializar sua espada, o cristal azul sob sua base brilhava absurdamente forte, se misturando à luz alaranjada do fogo ao redor. Ele segurou sua arma com as duas mãos, mantendo a lâmina em frente ao corpo, apontando para cima, ficando à frente de Spes, olhando na direção onde Orkan e Hadria estavam.

— Eu vou honrar minhas palavras, — ele disse baixinho, de dentes cerrados. Em seguida ele gritou: — Limpem o caminho, ONDAS DAS PROFUNDEZAS!

Aestus fez dois cortes perpendiculares com sua espada, criando dois feixes de luz azul intensa que pairaram em frente a ele. Ao fazer um terceiro corte no ar, uma onda de choque foi lançada pelo corredor, rompendo a redoma de Spes e varrendo os escombros que impediam seu caminho. O fogo todo se apagou, como se muitos litros de água tivessem sido despejados de uma vez. Orkan e Hadria pularam para a escada de onde haviam subido, escapando de serem atingidos pelo ataque potente de seu amigo.

Ao ver o corredor desobstruído, Aestus rapidamente pegou as duas crianças com uma mão e Spes com a outra, carregando os três para a saída. Eles se juntaram a Hadria e Orkan, que já estavam fazendo o caminho de volta. Quando alcançaram a metade daquele lance de escadas, todo o teto ruiu no sexto andar, destruindo o trecho onde estavam há poucos segundos. O Cavaleiro conseguiu manter sua promessa, protegendo as pessoas com quem se preocupava.

Ao alcançarem o lobby, encontraram o hotel praticamente vazio, com algumas pessoas na porta. O fogo já havia atingido o térreo, começando a destruir a grande bancada da recepção e o estande improvisado da Guilda. O grupo saiu do prédio correndo. Eles estavam sujos, com queimaduras pelo corpo, as roupas em péssimo estado, mas pelo menos estavam vivos e a salvo. Um casal de Lagomorfos correu na direção deles, chorando, pegando as crianças do colo de Aestus.

— Meus filhos! Meus filhos! — A mãe dizia, aliviada e emocionada. Ela tremia e beijava a cabeça dos pequenos, que soluçavam em prantos descontroladamente.

— Obrigado, a gente se separou deles no meio da multidão, — um Lagomorfo disse, segurando outras duas crianças no colo.

Aestus sorriu, satisfeito por ter conseguido fazer seu papel. Spes estava ocupado tomando uma poção revigorante e indo atrás de feridos para poder curar, enquanto que Orkan tinha ido até a praça para respirar um pouco e descansar. Hadria, por sua vez, procurava sua família, perguntando ao redor se alguém os tinha visto. Logo ela foi informada por uma Humanoide que eles estavam reunidos um pouco à frente.

— Hadria! Onde você estava? — Seu pai perguntou, finalmente aparentando não estar morrendo de cansaço. Ele vestia um roupão escuro por cima de seu pijama e pantufas imundas no pé. Sua mãe estava abraçada a seus outros filhos e, ao ver Hadria, foi até ela, com passos trôpegos.

— Achei que tinha perdido você, querida. Eu não ia conseguir viver em paz se tivesse te perdido hoje aqui, — Cornélia disse, com lágrimas escorrendo pelo rosto. Ela estava usando um vestido simples preto, com uma jaqueta emprestada de algum outro Minati. Seu coque não estava mais impecável, com muitos fios de cabelo fora do lugar.

A família toda olhou na direção do Hotel Grandioso, que ardia fortemente. Pela primeira vez em muitos anos, Foscor estava iluminada como se fosse dia, porém de uma maneira tétrica e mortal. Algumas plantas sintéticas derretiam ao redor, prédios próximos já estavam sendo atingidos por detritos flamejantes. Hadria olhou nos olhos de Cornélia e disse:

— Você sabe o que tem que fazer, mãe.

Cornélia assentiu, olhando em seguida para seu marido em busca de incentivo. Vásimo fez um pequeno sinal com a cabeça, sem precisar dizer mais nada. A poderosa senhora se afastou da família, buscando um local mais aberto na multidão que assistia o hotel queimar. Ela fechou seus olhos, baixou a cabeça e trouxe suas mãos em frente em peito, em súplica. Todos ao redor fizeram silêncio, assistindo aquela cena atônitos. Muitos ali sabiam o que estava acontecendo, porém não conseguiam acreditar. Depois de muitos anos, Cornélia estava finalmente invocando uma entidade.

A Minati sussurrava palavras inaudíveis, concentrada. Ela então ergueu a cabeça e abriu seus olhos. Ao contrário do negrume de sempre, eles agora brilhavam brancos como duas pérolas encantadas. Seu cabelo se soltou de seu coque, como se fosse um véu preto brilhoso. À sua frente, água começou a brotar do chão, como se uma nascente tivesse irrompido do solo. Um círculo de pedras cresceu, criando uma pequena lagoa com a água que ali se acumulava rapidamente, com uma grande rocha no meio.

As pessoas ao redor assistiam maravilhas enquanto esse cenário mágico era criado. Parte da água da lagoa subiu sobre a rocha central, tomando forma. Era possível ver o tronco de uma mulher acoplado a um grande rabo de peixe, ainda completamente formado de água. Completando a invocação, Cornélia disse, com a voz gentil, mas firme:

— Iara, mãe das águas, venha nos ajudar com seus incríveis poderes!

Assim que Cornélia terminou a invocação, uma luz piscou e a água sobre a rocha tomou a forma de Iara. Era uma mulher muito bonita, da pele marrom da cor de um belo vaso de barro. Ela tinha um cabelo preto liso que chegava até seu quadril, enfeitado por pedras coloridas e folhagens. Seu rosto tinha uma pintura vermelha sobre a testa e também sobre seus belos olhos pretos. Em seu pescoço estavam pendurados vários colares, de diferentes tamanhos, feitos de miçangas e cristais azuis. Ao invés de pernas, ela possuía uma cauda de peixe coberta por escamas rajadas de amarelo e preto, formando um padrão bonito e iridescente. Seu rosto tinha traços suaves, porém com um olhar guerreiro e incisivo.

Cornélia fez uma reverência à entidade à sua frente, agradecendo por responder ao seu chamado. Iara, a encantadora das águas, retribuiu a reverência, mostrando-se subserviente à sua mestra. A Minati apontou para o Hotel Grandioso, que tinha se tornado uma grande fogueira a céu aberto. Iara não precisou de mais nenhuma orientação, estando mentalmente conectada à poderosa Invocadora. A entidade criou um caminho de água até o topo da grande construção, nadando rapidamente ao bater sua enorme cauda.

Em pouco tempo, Iara estava flutuando sobre o Hotel Grandioso, nadando em uma grande bolha d'água, em movimentos circulares. Ela começou a cantar uma bela melodia, sendo ouvida em toda a cidade, trazendo tranquilidade e conforto a todos abençoados por sua voz. Grandes volumes de água foram lançados sobre o hotel, caindo como poderosas cascatas, atingindo-o de maneira generalizada. O fogo foi sendo apagado de forma gradual, mas rapidamente. Em instantes, o incêndio havia sido controlado, restando apenas brasas acesas espalhadas pelos andares. Agora era possível ver somente a carcaça enegrecida que restou do hotel.

Os andares superiores haviam sido completamente consumidos pelo fogo. O restante estava em pé de maneira precária, ameaçando tombar a qualquer momento. O maior prédio da cidade agora consistia somente de cinzas e tristeza. A madeira queimada das paredes mostrava que todo poder é temporário, podendo ruir a qualquer momento. Nada é eterno.

Iara voltou para sua lagoa formada em frente à Cornélia, se despedindo de sua Invocadora. A entidade mergulhou na água, que foi absorvida pelo chão, juntamente das pedras, não deixando qualquer sinal de sua existência. A exaustão pelo esforço que não fazia há anos, somada à aceitação que sua maior razão de viver foi destruída, fez com que Cornélia caísse de joelhos no chão. Antes uma senhora imponente e temida, agora ela era apenas uma figura desolada e digna de pena. Seus filhos, exceto Hadria, correram em sua direção, abraçando-a. Vásimo ficou atrás dela, preparada caso sua esposa caísse desmaiada.

— Como isso pôde acontecer? Todos os sistemas de segurança estavam funcionando, eu mesma verifiquei recentemente, — Cornélia disse, inconsolável.

— Foi Hiner quem fez isso, — Hadria disse, em pé em frente à sua mãe. — Eu estava lá na hora em que ele usou um feitiço pra atear fogo no hotel. E contra os feitiços do Hiner, não tem sistema de segurança que resolva.

— Hiner? Mas o que aquele idiota quer com isso? O que ele ganha destruindo o meu hotel?!

— Não tem lógica nas coisas que ele faz, — Aestus disse, se aproximando da família. — Ele gosta da destruição, do caos, do sofrimento. Ele precisa ser parado!

Cornélia se pôs de pé, apoiando-se nos seus filhos e marido. Ela ficou no mesmo nível de Hadria, fitando sua filha nos olhos. Um ódio crescente borbulhava, silencioso, no coração da matriarca. A única coisa que aplacaria aquele sentimento era a vingança. Ela disse para Hadria, com a voz tremendo de raiva:

— Você pode partir com seus amigos, faça suas caçadas, mas só volte depois de ter matado aquele desgraçado. Defenda a honra da sua família, essa é a sua missão.

As palavras de Cornélia saíram de sua boca e, como os vapores de um incensário, flutuaram pelo ar e entraram no cérebro de Hadria. Era como se uma vela tivesse sido magicamente acesa, iluminando o caminho para fora de Foscor, que antes estava perdido na escuridão. A pequena Bruxa abraçou sua mãe, depois de ter passado muitos anos sem qualquer toque ou demonstração de carinho. Vásimo e os outros filhos se uniram ao abraço, unindo a família toda como se fosse um só ser. Spes depois de ter visto essa cena, ficou com os olhos marejados e desfocados, perdido em suas lembranças. Notando isso, Orkan falou com ele, tentando consolá-lo:

— Traz algumas memórias, Spes?

— É, eu sempre me lembro da... — Spes fechou os olhos e chacoalhou a cabeça. — Me lembro do Milo. Meu irmão faz muita falta, era a única família que tinha me restado. — E, com uma voz mais animada e falando rapidamente, acrescentou: — Mas deixa eu ir curar mais pessoas. Tem muita gente ferida por aqui, — e o Lagomorfo saiu apressado, fungando o nariz, tentando fingir que não estava emocionado. Orkan e Aestus também se espalharam, ajudando na organização da bagunça que estava ao redor do hotel destruído.

Enquanto Spes ia fazendo sua ronda, curando rapidamente quem precisava, sua mente trabalhava, absorto em pensamentos:

"Eu quase falei seu nome naquela hora, Evely. Foi por pouco, eu tava muito distraído. Eu preciso tomar mais cuidado, né? Mas isso é só pra provar que eu não te esqueci e nunca vou te esquecer."

O Lagomorfo continuou andando por entre as pessoas, tentando atender o máximo de feridos, sempre gentil e atencioso. Seu olhar cruzou com o de Aestus, que acenou para o Mago, contente. Spes abriu um grande sorriso, porém ainda pensando:

"Meus amigos nem imaginam quais são meus objetivos, eu tenho certeza." Spes pensou, agora olhando para Orkan, que conferia as mochilas que havia achado jogadas no chão. "Mas meu plano vai dar certo. Eu ainda vou te vingar, Evely. As pessoas precisam saber da verdade."

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