Capítulo 410 Às vezes, as pazes são como uma espécie de adeus
— É nesse tipo de pessoa que você confia para chamar de Yifu?
A pergunta soou como uma pedrada na cabeça, mas Huan Shui entendia que seu pai estava ressentido com Shu Rong por fatos do passado e ferido, por ter também adotado um assassino como pai postiço.
— Sacerdote... — Huan Shui tinha a voz baixa, não que estivesse calmo por dentro. — Perceba a diferença, o senhor me viu nascer e crescer... Me preparou para ser a pessoa que eu sou e quando desapareci... Sumindo por três anos no futuro, você usou esse mesmo tom ressentindo para me expulsar de onde nasci.
— Eu não sou o único ressentido aqui... Sou?
O rapaz meneou com a cabeça e refutou com um tom mais frio:
— Deixe que eu termine, Sacerdote... Enquanto me expulsou por me culpar secretamente por anos pela morte da minha mãe, eu vim parar neste lugar... Perdido como um cão doente e foi a família Shu que me acolheu, que cuidou de mim, enquanto os outros me viam como um forasteiro vadio... Foi a pessoa que o Sacerdote chama de assassino que comprou com o dinheiro suado do trabalho dele, remédios e roupas para mim!
A beleza do poente se esvaia, sendo desperdiçada por aqueles dois olhares que se embatiam sobre a areia, o vento que entrecortava suas figuras.
— Shui... Você acha mesmo que eu vim aqui somente para outra briga? Nesses longos meses em que deixei de ser o Sacerdote-chefe, viajei algumas vezes em missões para Zhen Yan e refleti muito sobre meus sentimentos e ações... E uma das questões que me dei conta... É que a culpa pela morte da sua mãe, nunca foi sua. Eu estava cego por rancores que não deveriam ser direcionados a você.
Huan Shui se virou de costas para o mar, com a brisa marítima soprando seu cabelo amarrado por cima de um dos ombros, somente então ele percebeu as cores quentes do poente na figura de seu pai.
— E o que mais, Sacerdote? Estou ouvindo, embora... Esse não seja um pedido de desculpas muito bom.
— Eu subi o Monte Esquecimento, fiquei por dias dormindo feito um miserável dentro de uma gruta, sendo aquecido pelo meu cavalo... Até que eu consegui falar com o fantasma da sua mãe.
— Ela se materializou... — Shui falou devagar, como se estivesse dentro de um sonho. — … Apareceu tal como era para o senhor?
— Precisamente... Porém, foi o mesmo que defrontar tantas amarguras do passado. Sua mãe não sabe lidar com o fato de ter morrido e no fim... Nem sei dizer se algum dia ela me amou.
Yijun se aproximou mais do filho, de modo que aquelas mesmas ondas, também colidissem frias e espumantes contra suas botas.
— Foi nesse ciclo medonho que me meti? Sendo meramente um humano que precisa incessantemente culpar o outro para se sentir melhor?... Que ilusão sem tamanho... Eu não quero ser esse tipo de pessoa.
— Mas, então... Não devia se resolver apenas comigo. — Huan Shui replicou mais apaziguado. — Assim que se aproximou do barco, até Qing Song percebeu que tanto Shu Rong quanto o senhor, são mal resolvidos um com o outro.
O sacerdote mirou-se vagamente para o mar, para o céu que lentamente arrefecia e escurecia e se refletia nas ondas, toda essa paisagem se refletindo nas meninas de seus olhos.
— Essa não é somente uma questão entre ele e eu... Mas, esteja certo que se ele te acolheu, não foi unicamente por um gesto desinteressado de bondade. Tem a ver com sua mãe... Como eu, este homem Shu deve olhar para você e pensar nela.
Yijun subitamente desviou o olhar do mar e encarou seu filho, sua expressão deixando por completo a melancolia de lado.
— Mas, este assunto não importa agora... Olhe para você, vestido como um pescador, quando há templos erguidos em seu nome. Se não quer ir para o Reino Celeste, volte para Zhen Yan.
Huan Shui baixou o olhar para a areia e puxou ligeiramente sua manga, mostrando o grilhão em seu pulso.
— Eu não posso, ainda não estou livre de Bai Wu Xiang... Se tem poder espiritual em meu corpo, foi o Daozhang que me deu e embora hoje eu esteja me sentindo melhor... Não posso garantir que continuarei assim até amanhã, não posso envolver Zhen Yan mais uma vez em meus problemas, pai.
— Por que acha que está melhor aqui? Mas, que teimosia... Em Zhen Yan você tem as Cinco Virtudes que tem o poder de pedir reforços dos céus, um grupo talentoso de cultivadores a seu favor, como vai estar seguro numa vila de pescadores?! Encontrei Jun Wu em meditação para o restauro de Qi por conta de um ferimento, nem ele pode lidar com Bai Wu Xiang!
“Ninguém pode.” — Huan Shui piscou, ciente que apenas ele devia lidar com a Calamidade Vestida de Branco, realmente não fazia diferença se estava no meio de um deserto ou dentro da fortaleza mais bem guardada do mundo.
— Eu espero voltar para Zhen Yan em algum momento, pai... Mas, não agora. Foi o senhor que me preparou para ascender, confie no seu esforço e confie em mim.
— O que está me pedindo... Não é uma questão de confiança. — Huan Yijun admoestou, tocando os ombros de seu filho. — Eu queria te proteger tanto dessa profecia...
Algo pareceu se engastalhar na garganta de Yijun, as palavras se recusando a sair num lamento que se misturava com os sons da praia.
No entanto, Huan Shui tinha sido super protegido por dezenove anos, tão ignorante dos assuntos do mundo, ele sabia de todo coração que esta não era uma solução.
— O senhor me protegeu desde que nasci... Mas, eu me tornei um homem, aprendi sobre o peso das minhas decisões e eu não estou sozinho, eu tenho ao meu lado a pessoa que eu amo.
O Sacerdote afastou as mãos do ombro de seu filho mais velho, lançando um olhar um tanto desgostoso, de soslaio para a aliança que já tinha percebido no dedo anelar, na mão esquerda.
— O que sua mãe estava pensando quando fez a prece para o Divino Imperador? — O sacerdote questionou com sarcasmo na voz, tocando o meio franzido de seus olhos. — Ela pediu o que?... Que Jun Wu casasse com você? Não entendo como uma prece terminou dessa forma!
Ao ouvir o questionamento irônico de seu pai, foi a primeira vez na conversa que Huan Shui sorriu, rindo baixo pelo sacerdote cogitar tal coisa.
— Pai, tenho certeza que é algo que vai além de uma prece feita antes mesmo de eu nascer... O karma e o dharma¹ são incorruptíveis.
Havia uma tranquilidade nessas palavras que surpreenderam Huan Yijun, ele não estava mais diante daquele rapaz de outrora.
O sacerdote de Zhen Yan não via seu filho por meio ano e neste instante, diante de seus olhos, Shui lhe parecia tão amadurecido, menos preso às suas inquietudes, retendo e freando sua maneira impulsiva de ser, obstinado e focado em fazer o que é certo.
Até poderia ser uma impressão momentânea, mas Yijun queria acreditar que era real.
— Ainda assim... — O sacerdote ponderou, sem se livrar do peso dos próprios pensamentos mais profundos. — Considere ir para outro lugar com o Daozhang Jun, você não tem ideia do tipo de encrenca que Shu Rong se envolvia, ninguém se livra por completo do passado, não quero você envolvido nas questões dele.
Huan Shui cruzou os braços e se manteve em silêncio, o que seu pai estava pedindo era simplesmente impossível.
Quando destinos se entrelaçam e laços afetivos se formam, questões deixam de ser individuais e tornam-se únicas.
E após mirar-se no horizonte, condensando com certa frustração o silêncio do jovem deus, Yijun apenas disse:
— Tenho que voltar e encontrar o General Nan Yang, preciso voltar... Pode me acompanhar no caminho de volta?
— Posso... Quando voltar, agradeça o Sacerdote Wu Chang por mim. Eu ainda estava inconsciente quando ele se foi.
Dando meia volta, os dois já iam retornando pelo caminho oposto, com a noite caindo e o céu tornando-se cada vez mais escuro.
— Teimoso... — Yijun resmungou, abrindo um meio sorriso sugestivo. — Podia ir agradecer pessoalmente...
— Pai...
Huan Shui somente riu discreto e censurou, no fundo, era seu jeito de proteger Zhen Yan e preservar tudo que tinha deixado para trás.
Usando seu melhor sorriso, ainda que tímido, para disfarçar suas aflições e reais intenções quando ocorresse o pior.
Nota de rodapé:
Dharma = seria o oposto de karma, pois o dharma é uma força maior, a verdade do existir universalmente, a nossa missão e não se pode lutar contra, seguindo o seu fluxo, agregando conhecimento e harmonia, é o aprendizado espiritual pela busca da felicidade.
Para complementar a ideia de oposto, o karma se trata do individual, nossas escolhas afetam o nosso destino, tal qual a Lei da causa e efeito, ação e reação.