Star Conducting

By RappyAmon

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Os relatos investigativos do jornalista Thoma Skiviera em relação a uma das mais bizarras conspirações a já t... More

I - Os Jornais
II - Eunuco
III - Dejetos

IV - Aquilo Que É Retornável

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By RappyAmon


IV - Aquilo Que É Retornável

Girei a chave do carro, tomei mais alguns comprimidos para a gastrite que acordei com, engatando a marcha e saindo. No banco ao meu lado, haviam páginas arrancadas do caderno de meu pai, os esboços, seriam uma isca. Era um dia bonito, quando há algo errado consigo, e ainda assim permite-se ver o sol, é sempre diferente. Estacionei a uma distância considerável e caminhei até meu emprego, nada lá fiz além de antecipar o passar das horas até o encontro com aquele emissário imundo.

Ele estava lá, do outro lado, esperando-me de pé no bar palco de nossas outras reuniões. Vi-lo sorrir, mirava a porta desde antes que eu saísse. Nutriam, todos, suas esperanças por mim, algo especial para eles, pois sabiam toda a história que somente agora sei. Tentei retribuir a expressão, com um sucesso questionável, mas não importava para ele ou para mim, não seria capaz de imaginar o que de fato se passava por minha mente, passaria por sua cabeça que seria mundano qualquer o meu desconforto.

Por aqueles meros rabiscos, deu-me trinta dólares. Eram já mimos, dados com a intenção de conquistarem-me e agarrarem-me mais e mais; se o dinheiro fala, este deveria ser o canto de uma sereia. Pude ver seu anseio, esse tempo todo esperou por algo além, havia aguardado pacientemente pelo momento em que tudo o que eu poderia oferecer havia se esgotado. "Você não tem mais nada, certo?" Saíram de sua boca como se já houvesse ensaiado-as. "Isso foi tudo." Fingi-me conivente. "Veja, eu posso te oferecer mais do que te ofereci até aqui. Você também é jornalista, pode escrever alguns artigos para nós, coisas que ficarão só entre nosso recluso grupo." E era dessa forma que Ted e outros começavam a trilhar a depravação. "Parece bom, que tipo de artigo?" Evitava falar tanto, do contrário meu nojo seria óbvio. "Nada muito diferente. Como os de seu pai, sobre essa condição..." Enrolou, procurando palavras ou evitando dizê-las de forma a exprimir seu reprimido êxtase, mirou sua visão aos próprios sapatos, virando a cabeça levemente como uma criança envergonhada ao confessar-se. "...Essa condição triste, decadente e deprimente que o mundo tem passado." Voltou a olhar-me nos olhos ao ter dito tudo. "Então, nos vemos amanhã novamente?" Quis encerrar aquilo. "Estarei sempre aqui. E, ah, mais uma coisa." Apoiando e abrindo sua maleta sobre a mesa, tirou dela um envelope gordo, logo dando-me. "São cinco mil dólares, por termos feito negócios juntos até agora. Isso vem de todos da equipe. Espero que possamos continuar com isso." Existia muito intento por trás daquela filantropia.

Esperançosamente esse foi meu último encontro com o mesmo. Andei até o carro, distante o suficiente para que não me notasse ali. Eram cinco mil dólares comigo, sem esforço algum, garantiria uma vida fácil a qualquer pessoa, faz com que eu compreenda como muitos facilmente se venderiam àquilo. - Talvez até mesmo eu, em diferentes circunstâncias, mas nunca nesta que me encontrei. Minha abominação por eles é intensificada em mais valorosa potência pelo destino de meu pai.

Sem que nada bebesse, sem que se sentasse, passaram-se no mínimo vinte minutos até que ele entrasse em seu carro - No mesmo momento, liguei o meu. Parti alguns minutos após ele, escondendo-me o quanto podia atrás de outros veículos que embrenharam-se entre nós naquele curto tempo. Após três horas, o que foi uma jornada até o fim da cidade, estávamos em uma estrada com nada além de árvores em ambos os lados; nesse ponto, o máximo que poderia fazer seria manter certa distância.

Encostou ao lado direito da estrada. Desacelerava para não perdê-lo, e ali por um momento apavorei-me, observando-o quando por acaso meus olhos correram até seu retrovisor, parecia encarar diretamente a mim. Não tive opção senão ultrapassá-lo, em um caminho tão longo e tão repetitivo temia não haver nenhum ponto referencial para que, quando voltasse ali, soubesse onde havia o deixado. Já procurava desesperadamente algum sinal que ajudasse a reencontrar o trecho. Quase como se escondido por seu automóvel, existia uma trilha estranha, larga e limpa, que adentrava aquela mata. Afastado o suficiente, ouvi o som de seu motor religar, as luzes de seu farol escapavam dentre os troncos. Esperou estar só para seguir em frente.

Carl Baker, aquele que perseguia, era com certeza suscetível a descuidos como este que entregou-me o caminho - Ainda assim, era o preço a se pagar por um bode expiatório. Com pouca pesquisa, descobri que era como um ninguém dentre outros membros do Star-Conducting, o sobrinho de Edmund Chelston Baker, cujos pais desamparados são sustentados por Edmund. As suposições implicadas por seu interesse nesta perversão me fazem muito pensar, mas não há justificativa para prolongar este texto e gastar de meu papel com estas. Quando se pensa nos dois homens que sabemos que exerceram o mesmo papel, o método empregado pela sociedade secreta parece ser o de sempre enviar membros de "inferiores" para comprarem materiais e converterem seus "bobos da corte".

Em meu relógio, sempre alguns minutos atrasado, eram nove e trinta e sete. Fiz questão de lembrar-me disso, pois deduzia que eram organizadas reuniões do Star-Conducting. Se Carl Baker estivesse chegando pontualmente, também havia me dado o horário dos encontros, tudo o que deveria fazer era infiltrar-me antes, tudo isso nos leva para hoje.

Outro dia inteiro se passou, em um fechar de olhos cansado; se passou como se eu houvesse de fato desperto somente quando estava lá, de frente ao alçapão metálico de uma estrutura maior, escondida por escassa grama. Cinco da tarde, um azul mar em um céu nublado, gostaria de ter chego ainda mais cedo, mas tive de passar por aquele desvio mais de uma vez até notar onde desvirtuavam-se as marcas de pneu. Tirei o par de luvas de um dos bolsos de meu casaco, eram couro sintético e barato; do outro retirei um revólver dado por meu irmão, o qual destravei e mantive em mãos já temendo alguma complicação. Ajoelhei-me perante a escotilha, empurrando as folhas rasteiras que encobriam-a sutilmente, neste varrer senti seu cadeado, por sorte não era uma tranca por chave. O local faltava qualquer segurança, neste caso era fácil de se imaginar o motivo, nenhum funcionário era confiável o suficiente, chego a crer que tudo aquilo foi construído somente pelos membros do grupo. Limpei a terra do objeto com a manga, era um cadeado que necessitava de uma combinação de quatro letras, e pode imaginar quais eram: STAR. Levantei a tampa metálica, descendo aquelas escadas que eram como as de um navio, cada apoio servia não para respirar, mas para que minha apreensão crescesse. Tocar o solo dispersou parte da claustrofobia que surgiu.

Mesmo que não possua importância para o relato, tal peculiaridade me desviou o foco em alguns momentos do que era intrínseco, como uma anomalia à parte. As luzes, ligadas por uma alavanca ao lado da entrada, possuíam um tom diferente de qualquer outra iluminação que vi em toda minha vida, uma cor pulsante como sangue de algo vivo, assemelhava-se à um magenta desbotado, mas não era simplesmente isso.

Aquele primeiro corredor era apertado, mas após ele todo o resto era muito mais espaçoso do que o comum, até outros corredores. Algumas cadeiras, mesas, um palco com microfone, fazia parecer que aquele local era normal, mas ao virar-me para trás vi um ventilador, em formato oval, tão grande quanto um turbina de avião, ou até mesmo maior. Era parte de todo aquele ritual cada vez mais absurdo, enquanto desfrutavam do Star-Conducting o ventilador precisava "assoprá-los". Fui para trás do mesmo, possuía muito mais botões do que de costume para um aparelho como aquele, com regulagens para "baforadas" e "gases". Além havia uma porta.

As paredes do local eram tomadas por colagens, que expandiam-se como um câncer. As mais recentes, notei, eram as que eu havia vendido. Como se já não tão impudico fosse esbaldarem-se com as obras de um homem que mataram, queriam que seu filho, supostamente alheio a tudo, servisse-lhes como bobo da corte. Não eram somente jornais, eram poemas, fotografias, contos, todos repudiavam ou vangloriavam as pragas deste mundo. O que mais pode chocar, o que mais faz com que perca a fé na humanidade, algo assim lá tem seu espaço, reformulado para o prazer. Não é seguro para a mente de alguém sadio ser exposto a tanto em tão pouco tempo, fotografias grotescas impossíveis de ignorar.

Na última sala, uma pilha, um amontoado de vestes de estrelas roxas, com somente um olho, sustentadas por arames em seu interior, todas expeliam ao ar o odor asqueroso impregnado nestas, qualquer secreção do corpo parecia preencher as paredes molhadas das mesmas, como se animais em pânico fossem frequentemente confinados nestas. Eram elas o símbolo, o que dava nome ao grupo, eram as vestes que os escondiam de Deus em seus momentos nefastos. Foi quando ouvi a escotilha abrir. Lancei-me sobre a pilha em choque, procurando como entrar naquelas roupas, entreabri o zíper de uma delas e me vesti depressa. Era quente, quente como uma estufa, talvez desejassem sofrer em pequena escala o que o mundo sofreria. Tentava me controlar para não vomitar.

Pouco podia enxergar, se não pelo furo do olho localizado no centro da fantasia, ouvia passos. Com muitos dos meus movimentos restringidos, tentei alcançar meu revólver preparando-me para o pior. O alçapão foi fechado, e pelos passos, somente um deles estava comigo. Levantei-me, lançando as fantasias acima de mim, caminhando desengonçado enquanto empunhava a arma com sua traseira quase que colada ao meu estômago. As passadas se aproximaram até que estivesse em minha frente, em outro cômodo qualquer. Meu coração ecoava por toda a veste. Ouvi seus sapatos recuarem subitamente, paralisou apavorado ao ver que havia alguém ali, tentou manter-se calmo antes de qualquer outra coisa. "Olá?" era a voz de Carl. Me aproximei, sem responder, e quando próximo o suficiente senti meu crânio contra o dele. Parecia fraco, e de fato era, derrubado por uma única cabeçada. Meus dedos trêmulos acomodaram-se no gatilho. "Seus vermes desgraçados..." com o joelho acima do peito dele, arranquei-me daquela roupa imunda. "Você não entende, não é?" Seus músculos contorciam-se de toda forma, era incapaz de esconder seu pavor - independente do que acontecesse, tudo estava arruinado, seria sua culpa. Naquele momento, queria que sofressem, queria marcá-los, queria que soubessem que estive ali, queria que sentissem o mesmo desespero que senti ao vê-lo descer pelo rio. "Uma vez no Star Conducting, não existe mais volta, nada mais te dá prazer ou sequer felicidade, você pertence a ele uma vez que o aceita..." Mas não iria matá-lo, não poderia fazer isso, mesmo que ouví-lo me inclinasse beira a este precipício. Com uma coronhada tentei calá-lo, mas gaguejando continuou: "Você pode ser parte disso tudo, é impossível que no fundo não deseje. Você pode ter tudo e ainda ter este prazer... Por qual motivo não se veste novamente? Aqui não há nenhuma agenda além do prazer..." O sangue fazendo-o engasgar-se. "Nada disso faz sentido, vocês são doentes..." "Que bom..." Havia desistido, sabia o que aconteceria, olhou para mim e sei que me viu como sua musa, pôde sorrir. Como se estivesse pronto para morrer, deitou a cabeça de lado, sua mão se rastejava entre nós enquanto eu desesperadamente procurava me controlar. Desabotoou seu zíper, erguendo suas mãos até o meu, tocando meu abdômen, tentando invadir-me. Admirava algo, logo meus olhos perseguiram o olhar do mesmo até a parede, minha visão ali congelou, forçado a encarar aquilo, meu corpo não me permitiu desviar o olhar até que fosse queimado para sempre em minha psique: Pendurado na parede, um retrato de seu caixão vazio, do corpo de meu pai em um amontoado de lixo, humilhado como mero brinquedo. Não são humanos, não poderiam ser. Agi por impulso. O sangue de Carl não era quente o suficiente, não para ser considerado um humano. Gritava, e mesmo que sua mão tenha se esvaído de qualquer força, ainda estava vivo, disparei mais uma vez. Com tudo isso, espero somente que meu pai encontre alguma paz, que me perdoe.

                                                                                                  ...

Em 4 de fevereiro de 2016, a revista Verga republicou a história de Star-Conducting, adicionando ao caso em poucos parágrafos adicionais.

Investigações do estado após a publicação da história não obtiveram informações além das providenciadas por Thoma Skiviera. Peculiarmente, grande parte dos documentos oficiais do caso foram perdidos, poucos recuperados após o retorno de Fernando Olácio Henriques.

Não existem registros de Skiviera após 25 de dezembro de 72, é dito que não ia mais à sua casa, preferindo passar os dias na casa de conhecidos e amigos. O Instituto Thoma Skiviera completa quarenta anos hoje, e a pedido do mesmo a revista Verga alegremente republica essa tão importante história.

Até os dias atuais, as práticas do grupo são incertas, também não se sabe se alguma filial do mesmo ainda existe, já que diversas foram dissolvidas após grande pressão da imprensa e também graças à perseguição do Instituto. É certo, todavia, que os danos sociais e ambientais causados pelo Star Conducting atingiram níveis irreversíveis, comparáveis aos do grande tabu. 

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