Trem para Barrymore [CONCLUÍD...

By LuckVianna

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VENCEDOR DO GRANDE PRÊMIO - WATTYS 2023 🎖 "NĂŁo pode ser coincidĂȘncia que nossos destinos tenham se cruzado j... More

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PrĂłlogo - "Embarque"
Capítulo 1 - "Do outro lado, o que há?" ‱ Parte 1
Capítulo 2 - "Do outro lado, o que há?" ‱ Parte 2
CapĂ­tulo 3 - "Cartas ao limbo"
CapĂ­tulo 4 - "Borboletas de lugar nenhum"
CapĂ­tulo 5 - "Entranhas do desconhecido"
CapĂ­tulo 6 - "Criminosos a bordo"
Capítulo 7 - "O sumiço dos girassóis"
CapĂ­tulo 8 - "Nunca subestime a tempestade"
CapĂ­tulo 9 - "Fim do mundo Ă  meia-noite"
CapĂ­tulo 10 - "Trem fantasma"
CapĂ­tulo 11 - "Anjo das duas faces"
CapĂ­tulo 12 - "Jantar dos esquecidos"
CapĂ­tulo 13 - "Brindamos ao abismo"
"Páginas não lidas do Diário Montgomery" ‱ Parte 1
"Páginas não lidas do Diário Montgomery" ‱ Parte 2
CapĂ­tulo 15 - "NĂŁo hĂĄ nada do outro lado"
EpĂ­logo - "Desembarque"
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Capítulo 14 - "Últimas horas antes do fim da linha"

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By LuckVianna

30 de outubro. Manhã.

Trovões violentos no céu. Um milharal, centenas de sussurros ao seu redor e, de repente... um disparo. Thomas deixou que alguém morresse.

Outra vez, Thomas deixou que alguém morresse.

Ele abriu os olhos. A paisagem passava com rapidez pelos vidros do trem, que havia deixado a região do abismo há alguns minutos. Do lado de dentro, tudo estava quieto. Ninguém gritava. Ninguém chorava. Ninguém vivia.

O corpo de Bethany só foi parar de se mover completamente perto das nove horas, quando todos os seus nervos acalmaram-se e ela adentrou um estado de inconsciência definitivo. Foi nesse momento que o veredito se concretizou: Bethany Hayes havia sido a décima segunda vítima, e restavam dois passageiros no trem para Barrymore.

Thomas Capucci se afastou do cadáver quando percebeu a chegada de Chariot àquele vagão. Sem olhá-la nos olhos, o homem caminhou até o balcão e encarou o copo em que ele mesmo havia bebido. Não tinha nada dentro.

Mas quando apanhou o de Bethany, que estava no chão, enxergou alguma substância sólida grudada no fundo do recipiente. Ela foi envenenada, como ele já suspeitava. Passou pela sua cabeça que, se não tivesse trocado os copos de lugar por um motivo tão idiota como aquele, seria ele apodrecendo no chão frio. E não a garota que Thomas havia amado por significantes três minutos.

Três minutos. Foi o tempo exato que se passou enquanto dançavam felizes no quiosque. Depois disso, chegamos ao momento atual: um poço de sofrimento e caos.

Chariot Green observou os traços demoníacos na face de Thomas. Ela imaginou que ele talvez quisesse culpá-la pelo que aconteceu com Bethany. Porém, embora fosse perfeitamente possível que Chariot tivesse envenenado aquele copo horas atrás, ela não tinha um motivo aparente para tal. Bethany havia salvo a sua vida quando desceu lá embaixo, quisesse ou não.

A Green desapareceu entre os vagões seguintes, e Thomas caminhou até o salão de jantar num estado mórbido de luto. Todas as ações que tinha feito até agora haviam surgido de iniciativas involuntárias: era como se o seu corpo só estivesse continuando a se mover. Porque dentro de sua cabeça, ele já era algo bem próximo de um homem morto.

Para facilitar o seu entendimento, eu tentarei exemplificar algo parecido com a citada sensação. Pense na hipótese de que você tenha atirado na cabeça da própria esposa. Um tempo depois, jogou o corpo dela por um abismo enquanto estava sob efeitos alucinógenos. Então, para salvar a sua vida e a de uma garota da qual gostava, você também deixou outras duas aliadas para trás. E, no fim das contas, a sua garota morreu nos seus braços.

Thomas Capucci era um andarilho. Essa é a melhor definição.

Ele sentou-se com as costas contra a parede e deixou que o vento da janela principal alcançasse os seus cabelos. Não havia mais o que encarar, sobre o que falar ou pensar. Tudo o que ele tinha era aquele revólver idiota que não protegeu ninguém desde que chegaram ali.

Chariot voltou para o salão algum tempo depois. Ela esboçava o semblante de alguém que tinha medo de Thomas, embora ele não tenha representado vontade de culpá-la por nada. A menina largou perto de seus pés um pedaço de papel que ela encontrou na mesa principal.

Assim que ergueu o rosto, Capucci soube do que se tratava. Havia se passado quatro horas desde o último bilhete, o que significava que já era tempo de o Anfitrião dizer alguma coisa outra vez.

Com os olhos cansados, o homem desenrolou o papel e leu com atenção o enunciado. Depois começou a gargalhar. Riu loucamente, como se tudo aquilo fosse uma grande piada, como se nada mais fizesse sentido e, ao mesmo tempo, como se tudo agora fizesse sentido.

A reação do homem fez com que Chariot Green se afastasse. Ela sentou-se do outro lado do corredor, com as costas também viradas para a parede, e os dois passaram a encarar o bilhete entre eles.

"O Anfitrião informa: a sua estadia está prestes a expirar. Todas as entradas e saídas serão seladas. Prepare-se para o desembarque."

— Eu ficaria feliz em oferecer a você uma dose dupla de suicídio. Estou falando sério. Não seria um problema se usássemos isso aqui — Thomas mostrou a arma à Chariot. — para finalizar as coisas de uma vez por todas. Há duas balas aqui dentro. No entanto, acredito que seria ainda mais patético se um de nós precisasse ver os miolos do outro caindo no chão, antes de efetuar o segundo disparo.

Chariot não entendeu boa parte do que aquele rapaz perturbado tinha acabado de dizer, mas foi o suficiente para que soubesse: ele estava completamente louco.

— Me desculpe. — continuou. — Veja, ao menos você pode aproveitar este tempo para me dizer que eu fui um péssimo policial no final das contas. Não consegui salvá-la quando você desapareceu naquela noite. Eu... eu não consegui salvar ninguém. De nada serviram todos os esforços que foram feitos... as tentativas para evitar esta tragédia... — Thomas tentou chorar. Nada saía. — Que mundo de merda.

Então o silêncio novamente. Thomas e Chariot encararam suas próprias roupas sujas com os resquícios do lugar imundo em que estiveram algumas horas atrás. Seus estômagos roncavam. Era frio, por mais que o sol fizesse uma mínima diferença.

Vinte minutos depois, a menina cansou-se de dividir o vagão com aquele passageiro esquisito e caminhou até a porta que os separava do vagão de dormitórios traseiro. Ao tentar girar a alavanca, porém, Chariot se deu conta de que a passagem estava emperrada.

Ela tentou por mais algum tempo, e então virou-se para Thomas. Parecendo interessado, o homem foi até lá e girou a alavanca. Nada aconteceu. A porta havia sido realmente trancada.

— Não... não, não. Bethany ainda está lá. — ele continuou a forçar a fechadura. — Deixamos Bethany do outro lado, no quiosque. Temos... temos que... merda! — Capucci desferiu um soco contra o pequeno vidro da porta.

Os dois permaneceram parados por mais um tempo. Encararam-se, em seguida, e depois caminharam até o vagão de dormitórios dianteiro. Thomas checou a própria cabine e as demais: estavam todas trancadas.

Ele correu de volta às janelas do salão de jantar — que aparentavam ser o único meio de escape, embora lhe parecesse idiota saltar de um trem em movimento.

Como era possível? Como alguém arquitetaria tão bem uma situação para que as vítimas nela inseridas só tivessem a própria morte como solução? Eu realmente gostaria de ter uma resposta agora, mas não tenho. Tudo o que você pode saber é que aquele foi o momento em que os últimos dois passageiros do trem se deram conta de que estavam presos em uma armadilha.

Thomas e Chariot viraram-se um para cada direção. A menina enxergava as portas trancadas do lado sul, e o rapaz podia avistar um breu contínuo que se perdia na sala da fornalha. Ao menos aquela porta continuava aberta.

— O que está acontecendo? — perguntou Thomas, a si mesmo.

E então, com muito esforço para enxergar diante dos corredores frontais, ele viu algum tipo de claridade perto da fornalha. As chamas estavam acesas? Só podia ser. Alguém devia ter feito aquilo enquanto estiveram fora.

Thomas fez um sinal para que a garota o seguisse, e de imediato começou a se locomover até lá. Os dois aproximaram-se da sala com cautela. Tinham consigo a sensação assustadora de estarem sozinhos naquele veículo que viajava com rapidez em direção ao infinito. Mas essa angústia durou pouco.

Em um minuto, Thomas Capucci descobriu que não eram apenas dois passageiros restantes. Eram três. Havia uma garota caída em frente à fornalha, com o seu casaco escuro cobrindo o rosto e a cabeça repleta de ferimentos. Tinha queimaduras nas mãos e aparentava estar segurando alguma coisa debaixo do casaco.

Thomas arregalou os olhos. Aquilo definitivamente era algo pelo qual ele não esperava. E Chariot também não. Eles só foram reconhecer a pessoa quando a sua cabeça foi erguida e ela começou a cuspir um pouco de sangue no carpete. Estava acompanhada de uma tosse alérgica, provavelmente por conta da fumaça.

Lucille Leweis encarou o rapaz atormentado. A sua mandíbula tremia sem parar e ela não deveria conseguir dizer alguma coisa tão brevemente. Mas o seu olhar, que bastava para entender o que ela estava sentindo, dizia por si só uma única palavra: raiva.

Chariot Green se aproximou da fornalha enquanto a garota ainda tentava se levantar — e Thomas estava paralisado em sua frente. Ela observou a existência de uma superfície metálica debaixo do fogo, cobrindo um túnel entreaberto. De forma lógica, entendeu que Lucy havia utilizado aquilo para chegar ao topo outra vez antes que o trem tivesse partido.

— Onde... onde é que a Claire está? — exclamou Capucci. Ele tentou esconder uma porção do pavor que tomava o seu rosto.

Essa é a pergunta... que você quer que seja... respondida? — Lucy questionou, com a voz de alguém que havia inalado uma grande quantidade de fumaça.

Quando conseguiu ficar de pé, a garota começou a caminhar na direção do homem até que os seus rostos estivessem realmente próximos. O olhou de cima a baixo, com os dentes grudados uns ao outros e os olhos esbugalhados. Nem sequer o tocou. E ela poderia, afinal, arrancar o pescoço daquele rapaz se realmente quisesse.

— Onde está a Bethany? — Lucy segurava com firmeza o livro em suas mãos.

Thomas lhe designou um olhar vazio. E foi o suficiente para que ambas as perguntas fossem respondidas naquele momento. Lucy, então, encarou-o por mais um tempo e depois começou a se dirigir até o salão de jantar. Uma de suas pernas tinha uma queimadura realmente grave, o que a impedia de caminhar muito ligeiro.

— A ruiva soltou a minha mão quando estávamos passando pelo túnel. — disse ela, com uma voz fraca, após se sentar em uma das cadeiras do salão. — Não sei onde Claire Brassard está agora. Mas eu imagino que esteja morta.

Chariot Green aproximou-se dos dois. Estavam os três, nesse instante, ao redor da grande mesa que havia sido posta no dia em que aquele jantar sombrio ocorreu. O castiçal também estava lá — e permanecia aceso. Cada um dos três tinha consigo a única certeza que lhes restava: chegariam a algum lugar, uma hora ou outra.

— Eu chequei as cabines e a porta que dá para o vagão sul. Tudo... tudo está trancado. — afirmou Thomas. — As portas foram...

— Por que você nos deixou para trás? — ela o interrompeu.

— Não tive escolha. Estava tentando tirar Bethany daquele pesadelo e achei que ficaríamos presos se esperássemos mais um pouco. — Thomas virou-se para a janela.

— Você nos viu correndo... — ela continuou.

— Eu não tive escolha. — ele virou-se outra vez. — Vá em frente, Lucy. Se for isso que você deseja fazer, continue me falando sobre como é terrível termos que conviver neste vagão mesmo depois do que aconteceu.

— Ao menos você conseguiu salvar a Bethany? — a última pergunta de Lucy não teve uma resposta. É claro que não teria. E ela sabia disso. Por esse motivo, quando notou o semblante desanimador no rosto daquele homem, ela saiu da cadeira e caminhou até o outro lado da mesa. — Neste caso, sinta-se feliz: parece que estamos realmente no mesmo barco.

A Leweis posicionou o livro intitulado "Montgomery" à sua frente, perto do castiçal no centro da mesa. Chariot se aproximou, e Thomas também passou a encarar o objeto mesmo que a sua vontade fosse sair daquele cômodo imediatamente.

"O que é isso?", sinalizou Chariot, com curiosidade. Lucille folheou a primeira página para que os outros dois pudessem ver do que se tratava o artefato. Estava presente, no lado de dentro, a mesma fotografia da enigmática pintura.

— Eu e Claire encontramos uma espécie de memorial lá embaixo. Estava localizado logo depois da sala dos assentos... — a julgar pela reação dos outros dois, a menina deduziu que soubessem sobre o que ela estava falando. — O Anfitrião está relacionado diretamente ao Contador de Histórias, embora não estivessem trabalhando juntos e... e talvez nem mesmo soubessem dos planos um do outro até o momento em que embarcaram. Isso é o que eu acho.

— Então... eles poderiam estar conectados por conta dessa fotografia. Mesmo assim, só conhecemos o Elliot. — Thomas aproximou os olhos da primeira página do manuscrito. Um tempo depois, a sua atenção foi levada especificamente para duas das quatro figuras. — Na verdade, eu tenho um palpite...

— Compartilhe-o. — pediu a garota, mesmo que não confiasse nada naquele sujeito.

— Observe essas duas pessoas. — Thomas pousou o dedo indicador em cima das silhuetas que estavam posicionadas mais à esquerda. Dessa vez, diferente de quando analisaram aquela fotografia através do quadro danificado, era possível identificar que os dois tinham suas mãos entrelaçadas. — Pode ser... um casal, talvez? Embora isso não nos confirme hipótese alguma. Tanto o Anfitrião quanto o Contador podem ser um dos dois indivíduos que formam o casal, como podem também não ser. Não sabemos quem é quem.

— Algo precisa fazer sentido! — Lucille espremeu os olhos com agonia. — Digamos que essa seja uma história sobre ódio... sobre... sobre traição... sobre vingança? É essa a conexão entre os dois assassinos? Vingança? Pode ser que seja. O Anfitrião queria eliminar o Contador de Histórias porque...

— Não, isso entraria em contradição com o que pensamos mais cedo. Você mesma disse, agora há pouco, que um dos culpados provavelmente não sabia da estadia do outro neste trem, até o momento do embarque... — Thomas colocou as duas mãos na cintura.

De repente, Chariot Green chegou mais perto. Ela tocou no manuscrito para que pudesse vê-lo melhor e encontrou uma coisa à qual não haviam dado total atenção ainda: existiam algumas páginas grudadas umas nas outras, bem debaixo da folha inicial. Com isso, a menina tentou entender as informações com o maior cuidado possível. "Dia Um" estava escrito no topo da primeira página.

— Chariot descobriu alguma coisa. — Capucci tentou decifrar as palavras que vinham depois daquele título, embora parecessem todas cobertas por manchas de deterioração.

Foi quando os três passageiros se deram conta de tudo — ou quase tudo. Se aquele livro continha as respostas das quais eles precisavam para entender a história toda, então o autor só poderia ser alguém que estava tentando expor alguma coisa, assim como o Contador de Histórias tentou. Dizer alguma coisa. E, ao considerarem que o memorial no abismo havia sido feito para o Contador de Histórias, restava apenas uma solução:

Aquilo não era só um manuscrito. Era um diário que pertencia ao Anfitrião.

Chariot, Lucy e Thomas estavam devidamente concentrados em entender as palavras rasuradas na segunda página, quando ouviram um barulho vindo do lado norte. Foi um estrondo grandioso, capaz de tirá-los imediatamente de sua linha de raciocínio.

Thomas agarrou a arma que estava no chão, e Lucy se posicionou em frente à mesa. Chariot estava ao lado deles e começou a segui-los assim que deixaram o salão de jantar e caminharam até o vagão de passageiros. O barulho foi interrompido.

— Estamos certos de que somos os únicos no trem? — Thomas sussurrou.

E então, mais uma vez: fortes batidas na porta que separava o hall de entrada e a sala da fornalha. Alguém do outro lado não aparentava estar nada contente em ter sido deixado de fora da reunião dos esquecidos.

Thomas apontou o revólver naquela direção. Por decisão própria, Lucille caminhou com dificuldade até lá e preparou-se para abrir a porta. Ela só executou a ação quando, após receber um sinal do rapaz, teve certeza de que ele estava apontando a arma diretamente para a passagem.

A porta, já fragilizada com as pancadas, finalmente se abriu quando Lucy girou a alavanca. Os três passageiros foram invadidos por um arrepio sombrio e um choque momentâneo quando aquilo aconteceu. As garotas afastaram-se da porta e Thomas abaixou a arma ligeiramente.

— Cla... Claire. — a voz do homem tropeçou em si mesma. Ele estava definitivamente surpreso.

Atrás dele, afastando-se em direção à outra saída, Lucy balançava a cabeça de um lado para o outro. "Não, não... não. Eu a vi cair", a menina murmurava repetidas vezes, num tom de voz que só ela podia ouvir. Aquilo de fato não deveria estar acontecendo.

— Não somos mais só três... — Thomas disse.

Quatro. Nós ainda somos quatro. Garanto a você. — os olhos da ruiva estavam tomados pela indignação, e seu vestido inteiro havia sido corroído pelo fogo e pela sujeira. Ela segurava nas mãos o machado que roubou do abismo.

QUATRO HORAS ANTES

A Brassard esticou as suas mãos até a grade do elevador e tentou puxá-la para baixo. Lucy também lutou para alcançar as hastes metálicas que levavam aquela plataforma, mas nada adiantou.

— Não... não pode ser. Eles subiram por vontade própria? — a ruiva encarou a outra menina com suas sobrancelhas arqueadas em um enorme choque de realidade. — Thomas não faria isso. Ele não nos deixaria aqui embaixo.

— Eles se foram, Brassard. — Lucy afirmou, antes de voltar a encarar o fogo que se apossava de todas as paredes do local. — Precisamos encontrar outra saída. Agora!

Claire olhou para os dois caminhos possíveis. A luz do fogo refletiu sobre o chão escuro, por um momento, e revelou que havia muito mais querosene espalhado pela área. Alguém havia feito aquilo para que mais ninguém escapasse. Com isso, as duas tomaram o único caminho que não estava totalmente rodeado pelas chamas.

— Não solte a minha mão até que consigamos sair deste inferno. Está me entendendo? — perguntou Claire.

— Estou com você. — Lucy assentiu com a cabeça e embrulhou o manuscrito em seu casaco.

As duas correram pelo estreito caminho até a próxima área iluminada. Acabaram chegando ao local em que Bethany havia encontrado o corpo de Suzye, mais cedo. Então Claire e Lucille começaram a procurar por uma saída imediata, embora estivessem sendo perturbadas o tempo inteiro pela fumaça e pelo cheiro forte de carne apodrecendo.

— Não há outra passagem, Lucy. Tudo está bloqueado. Se tentarmos sair outra vez por onde viemos, vamos ser queimadas vivas. — afirmou Claire.

— Lá em cima! Rápido, Claire, olhe para cima! — gritou a segunda menina.

Lucy agarrou-se a uma estrutura na parede e deu de cara com o túnel que costumava trazer os cadáveres até ali embaixo. O corpo de Suzan Hayes ainda estava na parte inferior do túnel, bloqueando a passagem.

— Deus do céu... — Lucy fechou os olhos por um instante. Aquela imagem perturbaria a sua mente por semanas. — Me ajude a tirá-la daqui. Precisamos passar pela abertura, porque é a nossa única chance.

Claire se aproximou da estrutura e segurou o cadáver de Suzan pelas pernas. Com cuidado, as duas tiraram-na de lá e a deixaram no chão. Sentiram-se inteiramente corroídas pelo pior que pode existir em um ser humano. No entanto, isso é o que se faz quando não existe outra opção. Escolha entre uma pessoa morta ou duas que ainda podem escapar.

O fogo chegou a alcançar os seus pés, de repente. Sentiam as queimaduras espalhando-se a cada pouco e o calor invadindo seus corpos. Era ainda mais difícil respirar agora.

— Comece a subir primeiro. Me dê o livro, e eu estarei logo atrás de você. — insistiu Claire, após ter chegado ao topo da estrutura. Ela também entregou à outra garota o machado, para que o utilizasse como apoio enquanto subia.

Lucy não recusou a oferta. Muito rapidamente, enfiou a cabeça dentro daquele lugar apertado e começou a escalar pela parede de rochedos. É uma sorte tremenda que nenhuma das duas sofresse de claustrofobia.

A Brassard passou para o lado de dentro em seguida, e precisou da ajuda de Lucy para começar a escalar. Com o livro em uma mão, e usando a outra para se apoiar à parede, a ruiva fechou os olhos e foi em frente. Não podiam voltar. Já era sufocante demais estar dentro daquele túnel.

Um tempo depois, Claire foi quem percebeu primeiro que a entrada do túnel também estava repleta por um tipo de líquido inflamável. Ela se desesperou quando sentiu o seu vestido sendo engolido pelas chamas.

— Lu... Lucille, você precisa subir mais rápido! — gritou a garota, muito assustada. Suas mãos ardiam com as queimaduras, e ela não podia mais enxergar muita coisa em meio à fumaça.

— Estou indo. Acho que estamos perto da metade do caminho. Consigo... consigo sentir uma passagem de ar. — Lucy continuou subindo.

A garota com o casaco comprido sentiu como se seus pulmões estivessem sendo comprimidos o tempo inteiro. Ela tentou tirar a vestimenta de cima e usá-la para apagar uma parte do fogo que vinha de baixo, mas não conseguiu a tempo.

Então Claire começou a gritar. Os seus braços se debatiam, e ela sacudia a cabeça como se estivesse implorando por oxigênio. Lucy entrou em pânico e tentou agarrar-se com firmeza à parede que estava mais acima. Em seguida, virou-se para baixo e esticou a sua mão. Ela não conseguia nem mesmo enxergar o rosto da outra garota.

— Segure-se em mim, Claire! — insistiu. Sem querer, ela acabou permitindo que o machado escorregasse pelas suas mãos. — Droga!

A dor era tamanha, o sentimento de pavor as havia consumido. Claire esticou a sua mão direita e entregou o livro à Leweis. Ela hesitou da primeira vez e pediu que a ruiva usasse a outra mão para se agarrar à parede. No entanto, isso não aconteceu.

Fumaça e calor cobriram totalmente os seus corpos. Agora só existia, para os olhos de Lucille, o buraco escuro pelo qual vieram, parcialmente iluminado por uma cor alaranjada, ardente e mortal. Ela chegou a sentir a mão de Claire tocar a sua, mas as duas se separaram instantes depois.

Eu não sei dizer a você o que foi que aconteceu. Não sei se Lucille Leweis soltou a outra passageira, ou se a própria preferiu entregar-se àquele inferno. Tudo o que eu sei, e consequentemente posso contar com precisão, é que o manuscrito Montgomery passou a estar nas mãos de Lucy desde então. E Claire nunca mais foi vista.

ATUALMENTE

Claire Brassard passou pelos três passageiros sem esboçar uma reação concreta e se dirigiu ao salão. Quando chegou lá, largou o machado em cima do carpete. Eles a seguiram. Num instante, estavam os quatro ao redor da grande mesa que continha o diário do Anfitrião.

A quarta sobrevivente caminhou até a janela de vidro na direção sul e, espremendo os olhos, identificou o corpo de Bethany no quiosque. Sentiu que poderia vomitar naquele mesmo instante.

— Como... você sobreviveu? — indagou Thomas.

Claire ignorou a pergunta. Ela atravessou o corredor, de novo, e chegou até a porta do lado norte, pensando em esconder-se em alguma cabine do próximo vagão e nunca mais sair. Mas a porta já estava trancada. A garota tentou girar a alavanca de todos os jeitos possíveis, mas nada aconteceu. Ela não foi capaz de entender o que estava havendo, porque tinham acabado de passar por aquela entrada.

— Não vai adiantar. O Anfitrião está jogando conosco. Estamos confinados até o fim da viagem, de acordo com o último bilhete que ele deixou. As portas começaram a se fechar, e... fechar, e fechar... até não sobrar nada. — Thomas ergueu o bilhete que estava na mesa, permitindo que Claire o enxergasse. Em seguida, ele voltou a encará-la com pavor em seu rosto. — Responda, Claire. Como você chegou aqui?

— Depois de algum tempo perdido no meio das chamas, com o seu corpo inteiro ardendo, Thomas, você para de sentir algumas coisas. Eu cobri o meu rosto com os braços e... implorei que fosse morta de uma vez. — Claire pigarreou. Ao puxar a alça do vestido, ela expôs uma parte da sua pele que havia sido completamente ferida pelas queimaduras. — E então, tudo ficou escuro. Não sei como tive forças o suficiente para escalar a parede outra vez.

— Isso... isso é impossível! — disparou Lucy, com raiva.

O que é impossível, Leweis? O fato de eu estar aqui, entre os quatro últimos passageiros, mesmo depois de você ter soltado a minha mão enquanto tentávamos escapar? — exclamou a ruiva, enfurecida.

— Está mentindo. Você sabe que eu não fiz isso. — Lucy colocou os punhos sobre a mesa.

— Você fez, sim. E nós duas poderíamos ter conseguido sair daquele inferno se não tivesse me deixado cair. Mas você estava... — Claire voltou os seus olhos para o diário, no centro da mesa. — estava muito preocupada em sair de lá com uma justificativa em suas mãos. Não é? Com uma descoberta que imediatamente a imunizasse de todas as suspeitas. Isso não vai funcionar. Todos os seus companheiros deixaram muito claro que não a conheciam antes da época em que estiveram no Circo D'Art.

— Que merda você está tentando dizer, Brassard? — os olhos da Leweis saltaram para fora. Ela pareceu ainda mais agressiva.

— Quero dizer que... e se você for a pessoa que está por trás de toda essa história? Não finja surpresa! Eu estive do seu lado desde que colocamos os pés naquele buraco. Eu fui perseguida por alguém enquanto você estava perambulando sozinha! Fui eu quem a ajudou a encontrar aquele memorial, o livro e as fotografias. Eu insisti para que não soltasse a minha mão e ainda permiti que subisse primeiro. Digo, será que você teria realmente sobrevivido depois que fomos deixadas para trás? Então, da próxima vez, não me trate como se eu não fosse nada. — Claire afastou-se com os seus braços cruzados.

Fo... fotografias? — Thomas acabou pensando em voz alta.

— Eu não tenho culpa por droga nenhuma que tenha acontecido a você, Brassard. — Lucy continuou. — Fiz de tudo para que não fôssemos mortas depois que aquele elevador subiu. Não percebe que eu não sou a vilã aqui? — ela virou-se para Thomas. No mesmo momento, Claire Brassard e Chariot Green fizeram o mesmo.

— Que fotografias são essas? — o homem encarou as três garotas com uma certa confusão dentro de si.

— A Leweis não contou a você enquanto participavam da gloriosa reunião dos esquecidos sem a minha presença? — Claire questionou, com um olhar repleto de frieza sarcástica. — Eu estava certa quando disse a você que existiam memórias falsas no meio desta história, Thomas. Alguém sabia quem éramos, como vivíamos e o que fazíamos antes de entrarmos neste trem.

— O... o quê? — Thomas se esforçava para lembrar de qualquer coisa que tivesse acontecido antes da viagem. No entanto, a maior parte era um breu assustador. E para ele continuava sendo loucura a hipótese sugerida pela Brassard. — Não pode ser. Como...

— Não entendeu ainda? — Lucy tomou a fala. — Nós não embarcamos por conta própria. Esta viagem infernal já estava planejada antes mesmo que soubéssemos.

— Deus do céu. Eu estava realizando uma investigação antes disso... — os olhos de Capucci ergueram-se de repente. Aquela frase provocou um choque de desentendimento repentino às outras passageiras.

— Você... o quê? — Claire arriscou.

— As manchetes! Agora me lembro. As manchetes não foram colocadas no meu quarto. Elas... elas eram minhas. — Thomas cerrou os seus punhos. Ele também estava em choque. — Eu estive investigando o desaparecimento das locomotivas na metrópole, e isso foi antes de... antes de...

Faltava uma única palavra que completaria o que ele tinha a dizer. "Isso explica muita coisa", Thomas divagou dentro de sua cabeça. E realmente estava certo. Isso explicava, por exemplo, o porquê de todos terem ficado calados na noite da tempestade, quando foi sugerido que cada um contasse a sua própria história e respondesse a uma simples pergunta: por que estavam indo para Barrymore pela segunda vez?

Agora tudo havia sido levado ao óbvio, por fim: ninguém sabia o que estava indo fazer em Barrymore porque não estavam indo para Barrymore. A única vez que aquela viagem aconteceu, e que embarcaram por conta própria, foi quatro anos atrás. Na mesma data em que o incidente ocorreu no meio da estrada. Um garoto foi jogado no abismo, e treze passageiros fecharam as suas bocas propositalmente para que pudessem viver suas vidas sem o peso de serem cúmplices de uma tragédia terrível.

— Ah, meu Deus. — Thomas ergueu a cabeça e quase gaguejou ao dizer a próxima frase em voz alta: — Nós fomos sequestrados.

O anúncio lhe causou um breve mal estar. Claire e Lucy haviam descoberto sobre o fato de a viagem ser uma memória falsa, mais cedo, durante a madrugada. Mas não tinham parado para pensar dessa maneira. E quando Thomas finalmente falou aquela palavra, a lembrança de que precisavam foi desbloqueada:

Treze vidas haviam sido raptadas da enorme capital na semana passada, antes do dia vinte e três de outubro — quando a viagem teve início — e ninguém, absolutamente ninguém, estava procurando por essas pessoas.

Chariot Green começou a tremer de repente. Ela tentava decifrar o que os lábios daqueles três passageiros histéricos estavam discutindo. Foi difícil, com tanta informação sendo jogada sobre a mesa a cada instante. Mesmo assim, depois que Capucci disse aquela frase, as memórias da garota também começaram a voltar.

Ela se lembrava, agora, de ter sido vítima de um golpe na nuca quando voltava para a sua casa tarde da noite, na semana passada. Depois do apagão, nada mais havia feito sentido. Até agora. Só que, por alguma razão desconhecida, a srta. Green estava certa de que o seu destino era o condado de Barrymore assim que acordou naquele trem. E por que foi que ela pensou uma coisa dessas?

O seu coração perturbado, que batia de forma muito acelerada, gostaria de descobrir toda a verdade por trás da história do trem. E também gostaria de ir para casa. Entretanto, tudo o que ela tinha agora era aquele pequeno vagão e outras três pessoas que poderiam facilmente serem as responsáveis pelo que aconteceu.

— Quem poderia ter feito isso conosco? — indagou Thomas, ainda paralisado no mesmo lugar.

— Eu realmente gostaria de saber, detetive. — Lucy zombou dele. — Pode ter sido o nosso querido Contador de Histórias. O Anfitrião, talvez. E por que não um de nós? Claire Brassard, Chariot Green, eu mesma ou... ou você, Thomas.

— Não. O assassino não pode ser um de nós! É o que estou tentando dizer desde a morte de Sophie Stewart. O Anfitrião não está neste vagão. — insistiu ele, com as sobrancelhas baixas.

— Bem, a última pessoa que acreditou nessa hipótese, digo, que acreditou em você, está do outro lado daquela porta agora. — Claire apontou para o quiosque. — Isso realmente continua fazendo sentido no fim das contas?

— Não. Eu não fiz aquilo. Eu nunca faria algo como aquilo. Vocês estão tentando descobrir a resposta para as perguntas erradas! — ele balançou a cabeça, em negação. Estava voltando ao seu estado de absoluta incompreensão, no qual se encontrava quando aquele corpo caiu na sua frente. — Alguém... alguém envenenou o copo de Bethany antes que chegássemos ao quiosque. Alguém que já estava no trem.

— É claro. E por que não a mesma pessoa que tirou a vida de Suzan? — disse Lucy, com seus braços erguidos. — E que perseguiu a Brassard lá embaixo! Hah, por que não? A mesma pessoa, também, que deixou todos esses bilhetes. E o mesmo desgraçado que colocou fogo no abismo! Que começou aquele incêndio. O incêndio que quase nos matou e...

De forma repentina, o castiçal que ficava no centro da mesa foi agarrado por um deles. Chariot afastou-se, com o artefato em suas mãos, e ameaçou apontá-lo para cada um dos outros três. Eles permaneceram paralisados. Confusos. Três pares de olhos virados para a menina que havia enlouquecido de repente.

Muito devagar, a Green carregou uma das mãos até o próprio peito e ergueu o dedo indicador, apontando para si. Thomas, Claire e Lucille poderiam ser os seres humanos mais ignorantes e inadequados àquela altura da história, mas o sinal feito por Chariot Green tornava claro o que ela estava tentando dizer: foi ela.

— Você... começou o maldito incêndio. — proclamou Lucy Leweis, rodeando a mesa aos poucos.

— Ela é... a Anfitriã? — a voz de Claire surgiu acompanhada de um suspiro pavoroso e descompassado.

Chariot não deu uma resposta às garotas ou ao homem. Não porque não a entenderiam, mas porque nem mesmo ela sabia o que dizer. Aqueles quatro, afinal, haviam se perdido em meio às suas próprias narrativas havia muito tempo. Alguns aguentaram um pouco mais, mas para outros isso ocorreu imediatamente após o embarque.

Se você não acredita, aproxime-se um pouco. Caminhe comigo até o inabitável salão de jantar do trem para Barrymore e veja com os seus próprios olhos, Passageiro Número Dois. Você enxerga alguma coisa além do pecado, da dor e da incerteza? Incerteza! Essa é a palavra. O que temos aqui é algo tão incerto que pode fazer cada centímetro do seu corpo tremer.

Eu mesmo não me sinto mais seguro sobre nada. Me sinto incerto... como aqueles quatro. E suponho que você esteja se sentindo assim também. O motivo é simples: nenhum de nós tem a capacidade de olhar para o lado e saber se a próxima pessoa vai atacá-lo ou não.

Olhe para Lucille Leweis. Veja a sua pele suja e o seu casaco comprido, capaz de esconder qualquer coisa que ela desejasse. Analise o seu olhar assustado e, ao mesmo tempo, tão fajuto como o de alguém que matou os dois pais adotivos e a garota que conseguiu amá-la numa madrugada fria. Além de tudo isso, ela ainda foi capaz de soltar a mão de alguém que estava tentando salvá-la durante um incêndio.

Encare Thomas Capucci. Chegue mais perto para ver as suas olheiras, o seu cabelo bagunçado e a gravata solta que revela a vermelhidão em seu pescoço. Descubra o porquê de ele estar respirando com tanta pressa e agindo com tanta estranheza. Talvez seja porque deixou propositalmente duas colegas de viagem para trás esperando que morressem, porque assassinou a própria esposa a sangue frio ou porque envenenou a bebida da última garota que estava do seu lado.

Agora dê atenção a Claire Brassard. Por que as suas feridas parecem ter deixado de afetá-la desde que chegou aqui? Veja o seu vestido maltratado e os arranhões no rosto de alguém que teve muito trabalho para conseguir estar entre os quatro últimos passageiros vivos do trem. Observe a maneira como ela consegue ser a única pessoa sentada perto da enorme mesa de jantar, com seus olhos arregalados. Seja porque deixou que o seu bebê morresse na capital, porque acabou de encontrar o corpo da primeira amiga que fez naquela viagem, ou porque fingiu ter se soltado das mãos de Lucy Leweis quando ela tentou ajudá-la.

E então, vire-se para a Chariot Green. Ela está no chão, esgoelando-se num choro silencioso e com o castiçal em suas mãos, como pode ver. Você sabe que ela espalhou o querosene por todos os cantos daquele cativeiro enquanto esteve presa lá embaixo, só para que acabasse com o lugar no momento em que tivesse a chance de fugir. Talvez você tenha descoberto: ela pode ter se aproveitado da ajuda de Thomas e Bethany para escapar, e ateou fogo àquele legítimo inferno enquanto eles dois conversavam sozinhos debaixo da chuva do abismo. Talvez seja isso. Talvez Chariot tenha pensado em tudo desde o seu pseudo-sequestro, que foi, por sua vez, um plano arquitetado para lhe dar tempo e tirá-la do quadro de suspeitos.

Por último, pense na subestimada hipótese sugerida pelo ex-policial desde o início. Observe com muita atenção. E se Chariot Green, Thomas Capucci, Claire Brassard e Lucille Leweis realmente não tiverem nada a ver com os assassinatos? E se os seus álibis forem verdadeiros? Eu pergunto: você confia nos quatro últimos passageiros do trem para Barrymore? Porque, neste caso, o Anfitrião pode ser alguém que nunca tenha sido descoberto. Alguém que esteve escondido atrás daqueles falsos suspeitos durante todo esse tempo. Alguém que, como o seu nome sugere, é de fato um anfitrião. Isso torna aqueles quatro meros "convidados". Mentes ingênuas e bagunçadas, que foram vítimas de um convite com passagem só de ida para o seu tão aguardado destino: uma viagem que os permite viver, gritar, enlouquecer e morrer.

Eu vou deixá-lo neste vagão até o final da viagem, se for de seu interesse, para que continue pensando nisso. Mas não temos muito tempo, Número Dois. Afinal, estas são as últimas horas antes do fim da linha.

Apresse-se.

— Eu... eu não sei o que dizer. — Claire voltou para perto da mesa e apoiou o queixo sobre os dois punhos.

Ela passou um tempo em silêncio, enquanto ouvia Lucy Leweis se desesperar em um choro repentino e Thomas andar de um lado para o outro com o revólver. Também podia sentir a presença de Chariot, que continuava parada com suas duas mãos na frente do rosto. De repente, toda a atenção da Brassard foi levada ao manuscrito quando ela percebeu alguma coisa debaixo da última página.

— Nenhum de vocês viu isso antes? — ela questionou, ao retirar do livro um papel dobrado.

Assim que o estendeu sobre a mesa, a jovem deparou-se com um mapa que representava aquela região. Mais do que isso, e diferente do mapa que o bilheteiro lhes deu no terceiro dia de viagem, este continha novas informações. Alguns desenhos indicavam exatamente a rota que o trem estava fazendo agora, o que levou os quatro passageiros a acreditar que ele havia sido especialmente montado pelo Anfitrião.

— Vejam. Nós estamos em algum lugar desta região. — Thomas apontou. — Não dá para saber com exatidão, porque eu precisaria calcular a velocidade em que estamos andando agora. E isso é... é um pouco relativo. Por outro lado, sabemos o que nos espera durante o restante do caminho até Barrymore. — o rapaz levou seus olhos mais para a direita, onde localizou alguns traços feitos a mão que representavam uma espécie de obstáculo. — Acho que isso deveria ser... um túnel.

— E o que isso significa? — Claire rodeou a mesa e aproximou-se do homem. — Que ficaremos totalmente debaixo do escuro daqui a algum tempo? Porque, se eu entendi certo, as portas estão todas trancadas. Os geradores de energia ficam do lado de fora deste vagão, e não conseguiremos ativá-los.

— Teoricamente, você está certa. — Thomas suspirou, voltando a encarar o desenho. — A passagem pelo túnel vai fazer a luz do dia desaparecer por completo. E, a julgar pela proporção do desenho, posso deduzir que a extensão do túnel seja... consideravelmente grande. Santo Deus. — ele assustou-se.

— Merda. E quanto tempo nós temos até que isso aconteça? Não gosto da ideia de ficar no escuro enquanto não soubermos quem está fazendo isso. — Lucy colocou-se entre os dois passageiros.

— Eu não sei. Já disse que isso depende da velocidade do trem! — Capucci esfregou a nuca com uma das mãos. — Talvez... talvez alguns minutos.

— Alguns minutos? — Lucy arregalou os olhos. — Não posso acreditar que isso esteja acontecendo. Não... não pode ser. Não pode ser!

A Leweis agarrou o machado que havia sido deixado no chão e correu até a porta da saída norte. Imediatamente, ela começou a desferir golpes com a arma na intenção de partir a alavanca que os prendia naquele vagão. A última vez que Lucille Leweis esbravejou tanto ódio e negação, da forma que estava fazendo agora, foi quando encontrou o cadáver de Charles Bourregard na mesa de jantar.

— Nos deixe sair! Nos deixe sair agora, cacete! — ela gritava.

— Não podemos perder a cabeça. Não... não outra vez. Faltam apenas algumas horas para que o trem chegue ao condado. Se aguentarmos até o anoitecer, estaremos finalmente em Barrymore. — comentou Capucci, sem tirar a atenção dos desenhos no mapa. Aparentemente, havia uma porção de outros detalhes traçados sobre aquele pedaço de papel, embora ele não tenha prestado atenção em nada que estivesse desenhado depois do túnel. Aquela era a sua maior preocupação no momento.

Só precisavam aguentar até Barrymore, como ele disse. Mas as demais passageiras não pareciam pensar daquela maneira. Especialmente a Green, que encarava as outras duas como se estivesse sendo julgada por um crime que ela não cometeu — ou cometeu? Chariot posicionou o castiçal na mesa outra vez, perto de onde Thomas estava sentado.

Seguinte a isso, ela se afastou dos outros com os seus braços atrás das costas. Pensou muito antes de tomar aquela decisão. A garota chegou a virar a sua cabeça em direção à janela principal do vagão, na qual pôde observar, presa ao topo do vidro, uma pequena borboleta. Há algum tempo Chariot Green não via um inseto como aquele por perto.

Ela fechou os olhos e mordeu a mandíbula. Estava pronta, definitivamente preparada para acabar com toda a dor que vinha lhe corroendo desde que aquela viagem começou. E é irônico pensar que, em algum momento enquanto estava presa no inferno subterrâneo do abismo, Chariot realmente achou que pudesse escapar. Que pudesse ir para casa, que pudesse descansar. A ordem natural das borboletas não poderia ajudá-la dessa vez, e nem ela mesma.

No final de tudo, Chariot percebeu que escapar do abismo não a livrou do sentimento de morte que a perseguia. E disso ela nunca se livraria. Mesmo que estivesse no topo dos trilhos agora, e mesmo que aquele trem estivesse andando em alta velocidade para longe do abismo, a liberdade sempre seria utópica.

Então agarrou um pequeno frasco de querosene que havia trazido consigo, debaixo do vestido, e o derramou sobre si.

Naquele momento, Claire Brassard estava se aproximando da janela com o Diário Montgomery em mãos, pois percebeu que o reflexo da luz do dia a permitia enxergar as palavras escritas. Ela encarou Thomas com receio extremo em seus olhos, e ele a devolveu a face de alguém que não sabia o que fazer. E um pouco distante deles dois, Lucy continuava gritando: "Nos deixe sair!"

Ainda tenho memórias assombrosas em relação a esse momento da viagem, porque posso sentir um arrepio quando penso em todas aquelas coisas acontecendo ao mesmo tempo.

Thomas terminava de decifrar o restante do mapa com os dedos trêmulos;

Chariot aproximava-se do castiçal para atear fogo ao seu próprio corpo;

Claire tentava realizar a leitura antes que o túnel trouxesse a escuridão absoluta;

Lucille estava prestes a desbloquear a passagem.

Não há mais o que fazer... — Thomas sussurrou para si mesmo. As suas mãos afastaram-se do mapa quando ele avistou a sombra do túnel do lado de fora.

Tudo ficou completamente escuro. Como consequência, também surgiu o silêncio. Nenhum dos quatro ousou dizer uma palavra enquanto não podiam ver um ao outro na escuridão.

Poderiam ter se aproximado para impedir que alguém ficasse sozinho, mas essa não era uma hipótese a ser discutida. Você bem sabe: eram mentirosos, eram criminosos, e estavam dispostos a qualquer coisa para que chegassem ao condado com vida.

Thomas Capucci começou a tatear a mesa de jantar na intenção de encontrar a arma, e fez isso com o coração quase saindo pela boca. Ele estava se esforçando muito para que não ouvissem a sua respiração. Entretanto, quando chegou ao outro lado da mesa, houve uma surpresa.

Droga. — sussurrou com o maior cuidado. Alguém havia roubado o revólver.

A claridade quase insignificante do castiçal, na beirada da mesa, gerou um reflexo sobre o corpo de Chariot, que permanecia encharcada com o querosene. Ela era a única que ainda estava se movimentando, devido ao medo estressante. Até mesmo Lucy havia cessado suas batidas contra a porta.

O peito de Capucci passou a bater mais forte e mais rápido quando ele ouviu o barulho do machado sendo arrastado no chão. Em seguida, os quatro pares de olhos perdidos no escuro puderam identificar o momento em que o castiçal foi erguido e levado para longe da mesa. Algum deles fez aquilo.

É agora, Passageiro Número Dois. Esta é a hora exata em que você precisa deixar o salão de jantar se não quiser chegar ao fim desta trágica viagem com destino a Barrymore. Caso insista em permanecer aqui, eu lhe desejo boa sorte, porque não poderemos mais escapar da insanidade que isso se tornou.

Foi muito rápido. Tão rápido que até mesmo Thomas, o passageiro que estava mais próximo da mesa, não teve como pensar em alguma coisa para evitar o que aconteceria a seguir. Durante alguns segundos, o barulho dos trilhos chocando-se contra as rodas do trem era tudo o que ouviam.

Os passos molhados de Chariot pararam de repente. Ela foi surpreendida, porque dentre as inúmeras formas como a reunião dos esquecidos poderia ter acabado, quem quer que tenha agarrado aquele castiçal escolheu a mais perigosa. Ele ou ela sabia exatamente o que estava fazendo.

As velas do castiçal foram jogadas contra Chariot Green no meio do breu. O seu corpo molhado entrou em contato com as chamas e, em menos de três segundos, a garota tornou-se uma enorme silhueta de fogo.

Ainda era muito difícil enxergar alguma coisa no vagão, mas Claire Brassard identificou com clareza o rosto assustado de Thomas. Durou somente um segundo, e então ele sumiu entre as sombras outra vez.

Chariot contorcia-se à frente deles, e ninguém a ajudou. Pode ser porque estavam assustados demais, ou porque sentiam que não podiam fazer nada. Talvez porque queriam que aquilo acontecesse, afinal, os três sabiam que não havia sido um acidente, e eu e você também sabemos disso. Não é?

O mais angustiante, apesar de tudo, era o fato de que a garganta da jovem não expulsava sequer uma palavra. Ela não conseguia. Tanto tempo vivendo em silêncio não deveria significar que ela teria de morrer daquela forma. Seu corpo inteiro falava, mas não havia som algum.

E então, ultrapassando de uma vez os limites da loucura consagrada naquelas frações de segundo, um golpe foi executado. O machado atravessou o corpo de Chariot Green bem na frente dos três últimos passageiros.

Quer saber o que há de ainda mais assustador? Ela gritou.

Pela primeira vez em muitos anos, Chariot Green expulsou alguma coisa de seus lábios e foi um legítimo e duradouro grito de dor. Todos se espantaram. Acredito que seja bizarro pensar nisso como um choque tão, tão grande, capaz de partir ao meio o trauma que havia feito a srta. Green perder a própria voz, naquele acidente de trabalho. E é mais bizarro ainda pensar que essa seria a primeira, mas também a última vez que ela diria alguma coisa.

A ponta do machado fez jorrar o sangue quente da sobrevivente para fora do seu corpo. Ela caiu no chão com a lâmina ainda presa às suas costas, e as labaredas em permanente ânimo.

Chariot estava morta. E agora restavam três.

Claire Brassard, que estava exatamente à frente daquele cadáver quando ele caiu, cobriu a boca com as duas mãos para que não gritasse. Posteriormente, a garota se esgueirou até perto do cadáver que estava no chão, na intenção de pegar o machado. É lamentável que alguém já tivesse tido essa ideia antes de Claire, porque o machado não estava lá.

Agora volte os seus olhos para o outro lado do vagão: encolhida perto da parede norte estava Lucy Leweis, segurando a lâmina que havia acabado de furtar. Ela sabia que um dos outros dois, Thomas ou Claire, deveria estar com o revólver em posse. Sua teoria se concretizou assim que ela ouviu o gatilho sendo destravado.

Uma sensação aterrorizante começou a corroê-la outra vez. Precisava sair de lá. Precisava deixar aquele lugar! Lucille olhou para a frente e, no meio da claridade — que a essa altura era quase nula —, a saída norte foi iluminada. Parece que as machadadas foram o suficiente, porque a passagem estava entreaberta.

Lucille começou a rastejar até lá acompanhada de uma preocupação sem fim. Poderia ter sido atacada a qualquer instante, mas não foi. E então, assim que alcançou a porta, olhou para trás e observou a silhueta de Thomas perto daquele cadáver. Ele estava com a cabeça no meio dos próprios joelhos, tremendo.

A menina não conseguia enxergar as suas mãos, o que significava que havia cinquenta por cento de chance de que a arma estivesse com ele. De que ele fosse o Anfitrião. De que ele fosse traí-la imediatamente depois de ser ajudado.

Ela resolveu correr o risco.

Precisamos sair daqui. — murmurou Lucille, ao se aproximar.

Thomas pensou que estivesse alucinando, porque ninguém naquele salão o salvaria depois do que ele fez, mas decidiu deixar esse pensamento em segundo plano. Os dois só pararam de correr quando chegaram no próximo vagão, um corredor que era igualmente escuro ao anterior, mas sem a presença de um corpo queimando no chão.

Thomas respirava ofegante. Lucy também.

— Claire... Claire ainda está lá? — o homem perguntou enquanto tentava ver alguma coisa através da pequena janela na porta. Ele não obteve uma resposta.

Lucille estava virada para o outro lado do corredor, agarrada por uma tremedeira inquietante. Ela não conseguia olhá-lo nos olhos, mesmo que quisesse responder àquela pergunta.

Capucci virou-se para a passageira num movimento vagaroso. Um arrepio esquisito percorreu o seu corpo. Ele viu que Lucille estava segurando o machado com muita firmeza, e utilizava as duas mãos devidamente posicionadas em cada extremidade da arma.

Com medo — mas não o suficiente para que retornasse ao salão de jantar —, o rapaz virou novamente os olhos para a minúscula janela. Não podia ver nada além do escuro do outro lado e as chamas apagando-se lentamente no corpo de Chariot. A única certeza que Capucci tinha era a de que Claire continuava lá dentro.

— Lucy, acho que eu estava errado. — admitiu o rapaz, sem tirar a atenção da janela. — O Anfitrião não era alguém nos visualizando de fora. Na verdade, pode ser que...

Cada osso em seu corpo foi tomado por uma sensação de congelamento. Thomas não podia se mover. Ele não conseguia fazer mais nada, para ser sincero, a não ser prestar atenção na maneira com que Lucy Leweis empunhava aquele machado, chegando cada vez mais perto. Ela ergueu a arma e preparou-se para atacá-lo.

— Fico feliz por ter admitido que estava errado, Thomas. — disse a menina. — No fim das contas, o Anfitrião era realmente um de nós.

Passageiro Número Dois, o tempo que eu dei a você acaba de chegar ao fim, assim como o dos últimos três sobreviventes do trem para Barrymore. Thomas finalmente pôde deixar de tentar resolver aquele mistério, tal qual eu e você. Ele não precisava mais descobrir quem era o Anfitrião, porque o Anfitrião estava bem ao lado dele.

Muito ligeiro, a dor imensurável se espalhou pela sua pele. Ele sentiu uma enorme quantidade de sangue se alastrando através do seu peito. Thomas não olhou para baixo, mas soube o que havia acontecido. E jamais imaginou que ser morto por uma machadada pudesse doer tanto assim.

O corpo do ex-policial caiu no chão. A sua respiração ficou lenta demais, e seus olhos estalados tornaram-se mais cansados do que deveriam — era a snsação das memórias desaparecendo, como num súbito apagão.

"O Anfitrião deseja saber: conseguirá salvar a si mesmo, se não tiver salvo mais ninguém?"

A resposta era não.

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