Trem para Barrymore [CONCLUÍD...

By LuckVianna

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VENCEDOR DO GRANDE PRÊMIO - WATTYS 2023 🎖 "NĂŁo pode ser coincidĂȘncia que nossos destinos tenham se cruzado j... More

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PrĂłlogo - "Embarque"
Capítulo 1 - "Do outro lado, o que há?" ‱ Parte 1
Capítulo 2 - "Do outro lado, o que há?" ‱ Parte 2
CapĂ­tulo 3 - "Cartas ao limbo"
CapĂ­tulo 4 - "Borboletas de lugar nenhum"
CapĂ­tulo 5 - "Entranhas do desconhecido"
CapĂ­tulo 6 - "Criminosos a bordo"
Capítulo 7 - "O sumiço dos girassóis"
CapĂ­tulo 8 - "Nunca subestime a tempestade"
CapĂ­tulo 9 - "Fim do mundo Ă  meia-noite"
CapĂ­tulo 10 - "Trem fantasma"
CapĂ­tulo 11 - "Anjo das duas faces"
CapĂ­tulo 12 - "Jantar dos esquecidos"
Capítulo 14 - "Últimas horas antes do fim da linha"
"Páginas não lidas do Diário Montgomery" ‱ Parte 1
"Páginas não lidas do Diário Montgomery" ‱ Parte 2
CapĂ­tulo 15 - "NĂŁo hĂĄ nada do outro lado"
EpĂ­logo - "Desembarque"
☆

CapĂ­tulo 13 - "Brindamos ao abismo"

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By LuckVianna

30 de outubro. Madrugada.

Existia uma pequena lâmpada que balançava sem parar. O objeto estava logo acima da cabeça de Bethany, que permanecia encolhida no canto do cubículo para o qual havia sido jogada.

Aos poucos, ela percebeu que estava em uma espécie de caixa. Não olhou para os lados e nem desentrelaçou as duas mãos. O que sentia era algo como ter perdido a irmã dez minutos atrás e agora estar presa num lugar apertado e com pouco oxigênio. Isso parece familiar, Passageiro?

Desculpe. É que não há outra forma de descrever o que Bethany Hayes sentia naquele momento. E o que aconteceu a seguir tornou tudo ainda pior — por incrível que pareça.

O compartimento começou a balançar. De repente, a lâmpada sobre a sua cabeça piscou algumas vezes, até que se apagou. Bethany sentiu um vento frio se esgueirar através de seus pés. Todo aquele sangue e a água fria impregnados à sua pele passaram a lhe causar arrepios.

Demorou um tempo até que percebesse que aquele pequeno cômodo era um elevador, e que ela estava sendo levada para baixo.

LADO DE CIMA

Aquela voz estava lá novamente. Alguém gritando, implorando que Claire fizesse alguma coisa. Que impedisse alguma coisa.

Ela não fez nada. Adentrou o carro de cor preta no meio da madrugada, colocou as duas mãos na parte de baixo de sua barriga e tentou não gritar de dor.

Mais tarde, ouviria os últimos suspiros da pessoa à sua frente e depois coletaria as suas cinzas. Nada nunca iria mudar.

Claire Brassard despertou com o grito vindo de dentro da sua cabeça. Era mais um de seus pesadelos — exatamente da mesma forma que aconteceu na primeira noite. Ela havia adormecido com o seu rosto grudado ao vidro frio da janela, embora não se lembrasse de ter caído no sono.

Quando saiu para fora do quarto, se deu conta de que estava no vagão dianteiro. A ruiva caminhou de volta até o vagão traseiro, passando pelo salão de jantar. Ao se aproximar, enxergou o vidro da porta do quiosque estraçalhado. Também pôde identificar as cadeiras do quiosque derrubadas e um par de sapatilhas deixadas no carpete.

Lucille e Thomas foram chamados instantes depois. E agora, posicionados um ao lado do outro frente à cabine das irmãs Hayes, os três últimos passageiros que permaneciam no trem se perguntavam o que poderia ter acontecido.

— Você não viu nada? — Lucy direcionou um olhar de desconfiança a Claire, que tinha sido a primeira a chegar. — Como... como não viu nada?

— Eu e Thomas estávamos procurando pelo maldito pacote. Depois de algum tempo, eu decidi passar a noite numa das cabines do vagão frontal. E, antes que eu precise perguntar, imagino que você tenha feito o mesmo. Não foi? — Claire cruzou seus braços. Lucy assentiu com a cabeça. — Interessante.

— Sendo assim, nenhum de nós três estava no vagão traseiro nas últimas horas. Apenas as duas garotas. As duas garotas que sumiram. — Thomas abaixou-se perto à porta do dormitório e começou a mexer nas maletas que estavam no chão. — É provável que tenham tentado sair do trem outra vez. Só que, levando em conta o rastro que deixaram, acho que não conseguiram.

— Então... voltamos para as nossas cabines e esperamos que as duas apareçam? — Lucille coçou a cabeça.

— Nada disso. Seguiremos por alguns vagões e tentaremos encontrá-las. Se isso não acontecer, voltaremos para cá e vamos trancar todas as portas. Porque então, nesse caso, é provável que já estejam mortas ou que sejam as Anfitriãs. — afirmou o rapaz, que começou a se afastar das duas meninas no momento seguinte. — Lucy, se importa de procurar algum tipo de munição nas coisas do Charles? Vou levar esta arma conosco. Nos encontramos aqui em quinze minutos.

Claire viu os dois saírem do vagão com um entusiasmo esquisito. Depois de passar um tempo encarando os pertences das garotas deixados no chão, fechou aquela porta e começou a caminhar de volta para a sua cabine. Ainda estavam no meio da madrugada, mas ela tinha consigo a impressão de que se tornariam três até o início da manhã.

LADO DE BAIXO

Bethany pôs os seus pés para fora do compartimento quando sentiu que ele havia tocado o chão. Com cuidado, ela moveu a perna ferida primeiro e tentou não gritar ou fazer nenhum movimento brusco. O seu choro também havia sido silenciado.

Tudo ao redor era extremamente escuro e frio. E não existia qualquer tipo de barulho por perto, a não ser um sussurro fino e quase inexistente. Sussurro? Esta era uma memória recente, porque se lembrava perfeitamente de um lugar que costumava emitir sussurros com o vento o tempo inteiro: o abismo. Beth deduziu então que estava se aproximando daquela fossa, isso se já não estivesse dentro dela.

Ela começou a caminhar, então. Arrastou o seu corpo ferido por alguns metros até que percebesse que não tinha como enxergar nenhuma parede, corredor ou direcionamento lá embaixo. o sussurro.

"Talvez esta seja a sensação de descer até o inferno", pensou consigo. Após ter andado mais um pouco, a garota começou a sentir um cheiro estranho. Suas narinas arderam quando ela ousou virar-se para aquela direção. O odor desagradável fez Bethany mudar de ideia e começar a andar para o outro lado.

Porém, assim que rotacionou o seu corpo com dificuldade, ouviu um som muito específico. Pareceu como se algum pequeno objeto de metal tivesse sido colocado sobre o chão de concreto. E quase imediatamente depois disso, um ponto de luz surgiu atrás dela.

Beth virou o seu rosto outra vez. Pouco longe de onde ela estava, havia uma pequena lamparina deixada no chão. Sua pele foi arrastada por um arrepio momentâneo e um sentimento de desordem que durou alguns segundos. A jovem permaneceu paralisada até que soubesse o que fazer.

Infelizmente, embora não lhe parecesse a melhor escolha caminhar até aquele objeto, é isso que pessoas assustadas e sozinhas no meio de um lugar completamente escuro costumam fazer: buscar a luz, instintivamente.

Bethany correu até lá e agarrou a lamparina com as duas mãos. Seus olhos brilharam assim que ela pôde enxergar alguma coisa após tanto tempo.

O que aconteceu depois disso, entretanto, foi um tenebroso choque de realidade para a garota perdida. Pode ser porque ela estava tão contente em achar a luz que se esqueceu do perigo que corria lá embaixo.

Barulhos de passos vieram de alguma passagem ali perto. Era como se alguém tivesse corrido para se esconder. Bethany apontou a lamparina para aquela direção imediatamente, e então se levantou.

— O... olá? — a sua voz trêmula causou um eco gigantesco. A área parecia estar totalmente vazia.

Beth amarrou uma parte do vestido ao redor do seu ferimento e começou a andar. Ela sentiu muito medo, mas também nenhum. Porque algo dentro dela aparentava ter sido silenciado quando Suzan ficou para trás, lá em cima.

Me lembro de alguém que um dia disse: "o inferno está vazio, e os demônios estão todos aqui". Bem, se o inferno está vazio, não haveria nada para temer lá embaixo. Por isso Beth seguiu andando.

LADO DE CIMA

Os cabelos ruivos da Brassard caíram sobre a cama quando ela se deitou. Tudo era confuso. Tudo era lento. E silencioso. E estranho. Existia uma mortífera sensação de desordem pairando sobre aquele trem no momento em questão.

A garota tinha certeza de que os outros dois se sentiam da mesma maneira. Entretanto, não era seguro que espiasse pela porta agora. Nem que fosse lá fora para falar com Thomas ou Lucy. Porque... e se eles dois estivessem planejando a próxima morte?

E se Thomas, que tinha aquelas manchetes em sua cabine, fosse o Anfitrião?

E se Lucy Leweis, que estava na frente do maquinário quando o trem se moveu e matou Sophie Stewart, fosse a Anfitriã?

E se ela mesma, Claire Brassard, fosse a Anfitriã? E se tivesse esquecido disso porque a sua mente não quer que ela se lembre? E se... se Claire tiver enlouquecido?

Ela virou a sua cabeça para a parede e fechou os olhos. Precisava tirar todas essas ideias da sua mente, ou não conseguiria suportar permanecer com os outros passageiros no restante daquela noite.

Pensou em encontrar algum antibiótico no meio de toda aquela bagunça, mas não via nada além de roupas jogadas pelo chão e os seus fones de ouvido caídos perto da escrivaninha. Fazia um bom tempo que Claire não olhava para eles. Também fazia bastante tempo que ela não dormia e, por isso, parecia que um lunático havia passado os últimos dias naquele quarto.

Afinal, como foi que ela chegou a este estado? Como foi que nós chegamos até aqui? É quase irônico falar sobre aquela noite, oito dias atrás, quando a Brassard entregou a sua passagem ao bilheteiro e embarcou sorridente no trem, achando que escaparia do pesadelo na metrópole. E agora, aqui está ela: desejando que tivesse mudado de ideia enquanto havia tempo.

— Eu não devia ter embarcado nesta droga de trem. Não... não naquele dia. — Claire levou as duas mãos até o rosto. Depois, encarou o pote de cinzas perto da janela e o agarrou. — Tudo aqui é uma grande mentira. Não... adianta de nada.

E talvez realmente não adiantasse. Claire jogou o pote contra a parede, provocando um enorme estrondo e tornando aquele cômodo ainda mais sujo do que antes. As cinzas escorreram pela madeira, e uma porção sumiu entre as ranhuras no chão.

— Odeio este lugar. Eu... eu odeio tudo isso! — gritou ela, pressionando o choro em sua própria garganta para que ninguém a ouvisse.

Amargura e arrependimento a corroeram no momento seguinte. O artefato estava quebrado agora e não havia mais como consertar aquilo. As cinzas se foram. A pessoa a que elas pertenciam também.

Levou um tempo para que toda a emoção negativa presa em seu peito escoasse entre as fendas no chão — assim como as cinzas fizeram. Claire se acalmou depois de alguns minutos presa em uma paralisia absoluta, frente à janela.

Ela amarrou o próprio cabelo e calçou sapatos confortáveis. Sabia que aquela noite seria mais longa do que deveria, e que depois que deixasse a sua cabine, muito provavelmente, só voltaria quando tudo acabasse.

Claire deixou os fones de ouvido ao lado da porta antes de trancá-la e adentrou o corredor em seguida. Acabou esbarrando com a Leweis no meio do caminho, que tinha uma caixa de munição em sua mão esquerda. A mão direita estava escondida atrás das costas.

As duas não se cumprimentaram, mas Claire observou atentamente quando a outra garota passou por ela e revelou um pedaço de papel sendo escondido atrás de seu corpo. Lucy entregou a ela um olhar vazio, como sempre, e seguiu na direção do próximo vagão. Thomas já estava lá quando elas chegaram.

Duas balas. É tudo o que restou. — afirmou a menina.

Ele apanhou a munição e recarregou a arma que pertencia ao Charles. Depois disso, os três passaram pela porta com o vidro quebrado e começaram a caminhar em direção ao quiosque.

LADO DE BAIXO

Os sussurros continuaram. E cada vez que Bethany ousava mudar de direção naquele lugar, percebia que tudo se tornava ainda mais frio e escuro. Foi muita sorte ter encontrado aquela lamparina no meio do nada.

"Encontrado". A Hayes não era uma pessoa pouco esperta, embora agisse por impulso na maioria de suas decisões. Naquele momento, tinha consigo a certeza de que mais alguém estava lá embaixo. A perseguindo, talvez. Fugindo dela. Ou cuidando dela.

"Por que alguém cuidaria de Bethany Hayes?", você pergunta. "De fato", eu respondo. Porque no fim das contas, Beth não era uma daquelas pessoas que acreditam em anjos da guarda ou proteções divinas. Além da irmã gêmea — a sua outra face —, tudo o que ela tinha era a si mesma. E ter a si mesma já não parecia mais tão útil agora.

— Quem está aí? — Bethany virou o objeto luminoso para trás ao ouvir aqueles passos outra vez.

A luz quase se apagou. Foi por pouco. Ela aproximou a lamparina do corpo para que o vento não a alcançasse, e então voltou a caminhar. Já estava se sentindo extremamente cansada quando percebeu alguma coisa no chão. Seus pés quase tocaram aquilo, não fosse pela sombra que o pequeno inseto provocou na parede ao lado dela.

Bethany afastou-se ligeiramente. Era uma borboleta. Estava morta, parcialmente decomposta e com as suas pequenas asas quebradas. Mas por mais insignificante que parecesse aquele pequeno animal perdido no inferno subterrâneo do trem, Bethany Hayes sabia que tinha algo de errado.

Aquela borboleta precisava ter entrado por algum lugar. E, se isso tivesse acontecido, então havia alguma saída próxima — o que não aparentava ser verdade, já que os sussurros do vento ainda eram distantes. A última opção era a mais improvável: um ser humano trouxe aquele inseto até ali.

— Como foi que... — com os olhos cerrados, a menina aproximou o rosto da borboleta.

Beth foi surpreendida antes de terminar a frase. O barulho dos passos voltou, se aproximando depressa desta vez. Ela tentou segurar a lamparina com rapidez e encarar o corredor escuro ao seu lado ao mesmo tempo. Não conseguiu fazer nenhuma das duas coisas, porém, porque foi agarrada por uma silhueta irreconhecível.

A lamparina caiu no chão, se quebrou, e o fogo apagou imediatamente.

LADO DE CIMA

Os três passageiros estavam atravessando o caminho até a escotilha naquele momento. A certa altura do trajeto, Claire percebeu que os corredores a partir dali começavam a ser preenchidos por uma umidade incomum na madeira. Com certeza alguém com os pés encharcados passou por aquele ponto.

Ela não disse nada aos outros dois, mas passou a prestar atenção na maneira como Lucy Leweis estava se comportando. A garota de sobretudo escuro continuava com a mão direita enfiada no bolso desde que saíram da área compartilhada. Para a Brassard, se aquilo não significasse que havia alguma coisa sendo escondida, então poderiam declará-la como louca.

— Venham até aqui! — o grito de Thomas assustou a ruiva, que tirou seus olhos da outra menina imediatamente.

Claire e Lucy se aproximaram do rapaz. Ele estava do lado de fora, abaixado sobre a haste que separava aqueles dois vagões. As mãos estavam na base da estrutura de metal, como se ele estivesse tentando esfregar alguma coisa.

— Tem muito sangue aqui. Alguém pode ter sido atacado. — Claire olhou ao redor: havia algumas manchas de dedos perto da porta, além de um rastro sanguinolento, que substituía a chuva, espalhado pelo chão do vagão seguinte.

— É. Eu percebi. — Thomas passou um tempo com os olhos fechados sob a chuva fraca. Depois, começou a andar até o outro lado vagarosamente.

Claire sabia no que ele estava pensando: "que este sangue não pertença à Beth". E ninguém poderia culpá-lo, no final das contas, por desejar que aquela garota continuasse viva depois de tê-la conhecido tão bem durante só uma semana.

Nesse meio tempo, Lucy ultrapassou os dois passageiros e andou em passos rápidos até o final do próximo vagão. Ela olhou através da porta deslizante, que estava entreaberta, e identificou a silhueta da escotilha. A passagem ainda estava lá, e o rastro de sangue se encerrava no mesmo lugar.

— Acho que descobrimos onde as gêmeas desaparecidas foram parar... — comentou ela, apoiada na beirada da estrutura.

Os três não puderam enxergar muita coisa lá embaixo por conta da escuridão. Porém, ao esticar a mão até uma certa profundidade, Capucci encontrou a plataforma feita de madeira que revestia aquele buraco.

— Eu vou descer. — o rapaz começou a colocar as suas pernas dentro do buraco antes de qualquer coisa. — Há espaço para mais alguém, se for isso o que desejam. Caso o contrário, sugiro que voltem para os vagões frontais e se tranquem em suas cabines.

— Vai arriscar a sua vida por duas farsantes, então? — Lucille se arrependeu do próprio comentário no momento seguinte. Talvez porque ela também tivesse arriscado a vida por um criminoso um dia.

— Estou certo de minha decisão. — Thomas insistiu.

— Nós vamos descer juntos. — o veredito de Claire incomodou os outros dois, que dispararam olhares de reprovação imediatos. — O que foi? Estivemos juntos desde que isso começou. Não devem acreditar que ficando sozinhos agora vão evitar que um lunático corte seus pescoços. Não é? A não ser que, é claro, estejam procurando privacidade para arquitetar o próximo crime.

Nada saiu da boca da Leweis. Thomas também não respondeu. E assim, quietos pelas próximas dezenas de minutos, aqueles três comprimiram seus corpos no espaço pequeno do elevador improvisado e começaram a descer.

LADO DE BAIXO

Os olhos de Bethany se abriram. Ela não teve tempo de reagir de outra forma senão o típico arrastar amedrontado, vindo de alguém que acabou de ver algo para o qual não estava preparado. O corpo da menina grudou-se à parede atrás dela. Mãos suadas. Olhos escancarados como duas janelas escuras, se acostumando com a luz de uma pequena lâmpada do outro lado da sala.

Beth estava em pânico. E, para ser honesto, um monte de coisas naquela noite provocaram uma sensação desagradável àquela garota. Mas nada como aquilo. Será que você me entende? É que, quando a sua irmã é assassinada brutalmente na sua frente, você sabe ao menos o que está acontecendo, por mais trágico que pareça. Quando um rapaz armado descobre que você era uma farsante, também dá para imaginar que isso poderia acontecer.

Só que, pela primeira vez em muitos dias, Beth encontrou com algo que ela não imaginou que fosse possível. Nunca. Afinal, quais eram as chances de o abismo escuro que fica logo debaixo do alucinante trem para Barrymore, durante sete dias e meio, ter escondido uma passageira desaparecida?

— Cha... Chariot Green. — Bethany tentou olhar nos olhos dela, mas não conseguiu manter-se por muito tempo.

Uma parte dos cabelos de Chariot havia sido arrancada. Ela tinha muita sujeira no rosto, mas usava o mesmo vestido azul, apesar de agora estar um pouco gasto e encardido. Se mexia debaixo da luz daquela minúscula lâmpada como se fosse um animal.

Por mais que a outra garota quisesse, e talvez precisasse, perguntar à Chariot o que ela fazia ali, somente uma questão passava pela sua cabeça agora: e se ela for a Anfitriã?

Bethany recuou outra vez, rastejando-se para ainda mais longe. Quanto à Green, ela não parecia assustada com a presença da convidada. Sequer esboçava algo em seu rosto que não fosse indiferença e um vazio asqueroso.

"Por que está aqui?", Beth moveu as suas mãos para tentar gesticular aquela pergunta. Para a sua surpresa, a segunda menina virou-se por um momento e chegou mais perto da luz. Depois, com seus dedos trêmulos e esguios, respondeu a sua pergunta.

"Trazida" foi a palavra. Beth aproximou-se um pouco mais, mesmo com receio, e entregou a Chariot um semblante de interrogação. Dessa vez, a menina rejeitou explicá-la com palavras e preferiu demonstrar. Primeiro apontou para a saída do pequeno buraco em que estavam, de onde vinham os sussurros do abismo. Em seguida, Chariot complementou imitando o funcionamento de uma ferramenta com as mãos.

Alguém precisava de você para consertar alguma coisa. — murmurou Beth, para si mesma. Chariot balançou a cabeça ao perceber que ela havia entendido.

"Você sabe quem é?", questionou Bethany, imitando uma máscara com as mãos perto da própria face. Chariot respondeu que não. E após alguns segundos em silêncio, a garota se comunicou outra vez: "escondendo".

Não foi preciso muito raciocínio para que a Hayes soubesse, então. Chariot Green foi poupada na noite de seu sequestro no trem — executado pelo Anfitrião, e não pelo Contador de Histórias — porque alguém sabia de suas habilidades mecânicas. É possível que, independente de quem fosse, tenha descoberto isso ao espiar as anotações dos pequenos "interrogatórios" feitos por Capucci. Também pode ter perguntado a Olivia Armstrong, sem demonstrar segundas intenções, durante o café da manhã. Ou ter vasculhado as coisas da própria Chariot. Enfim, descobrir isso agora não era suficiente para que aquela loucura tomasse fim.

Pensativa, Bethany aproximou-se da saída do pequeno esconderijo por um momento. Além do vento, desta vez ela podia ouvir um rangido vindo de alguma área próxima. Era um barulho que não estava presente quando ela chegou ali embaixo. Por isso, Beth virou-se de volta à Green. "Consertar o quê?", ela deu continuidade à sua última pergunta.

Chariot apagou a lâmpada depressa. As duas ficaram totalmente no escuro por alguns segundos, o que provocou à Hayes um desespero momentâneo. Não podia ver ou tocar em nada.

Brevemente, uma lamparina foi acesa. Chariot deu alguns passos até a saída e esticou a mão para que Bethany a segurasse. Depois de hesitar um pouco, ela acabou aceitando. As duas saíram do esconderijo e adentraram o enorme inferno de escuridão outra vez.

Enquanto atravessavam um estreito caminho, Bethany se concentrou em ouvir qualquer resquício de barulho que houvesse ao seu redor. Imaginou que talvez precisasse voltar sozinha por aquele mesmo caminho, mais tarde.

O vento era ainda um acompanhante. Quanto mais perto do destino as duas chegavam, mais forte se tornavam os sussurros, fato que levou Beth a acreditar que talvez estivessem mesmo no fundo do abismo.

Também havia a presença dos rangidos. Certamente existia alguma estrutura de metal ali perto, provocando aquelas vibrações. Mas mesmo que quisesse muito saber do que aquilo se tratava, Beth foi forçada a voltar seus olhos para frente quando Chariot avisou a ela que haviam chegado.

A Green passou por baixo de um pequeno buraco na parede, que a levou até o outro lado do corredor escuro. Logo que Bethany repetiu o caminho, se deparou com aquele cheiro incômodo outra vez. Parecia que havia alguma coisa apodrecendo naquela sala.

Chariot agarrou-se a uma estrutura no topo da parede e, depois de espiar dentro de algo que parecia ser uma espécie de túnel, se afastou novamente. A luz da lamparina iluminava muito pouco. Bethany não entendia o que aquela garota estava tentando fazer.

De repente, um estrondo. Chariot caiu no chão com as duas mãos em frente à face, os olhos arregalados e o coração em disparada. Tinha visto algo de que não gostou. O seu olhar, quando voltou a encarar a Hayes, explicava muito do que estava tentando dizer: "É você que está lá. Como?"

Chariot observava Bethany como se ela fosse um fantasma. E, por mais confuso que você possa estar, tenho certeza de que Bethany Hayes ficou ainda mais. Ela só foi entender o que estava acontecendo quando deu alguns passos até aquela estrutura e pôs a cabeça para dentro do túnel.

O túnel se tratava de um canal de ligação entre a parte de cima — onde estava o trem — e o lado de baixo — o inferno, como foi descrito por Bethany Hayes. Era por conta daquele túnel que algumas coisas costumavam desaparecer repentinamente no topo dos trilhos. "Como os corpos?", você vai perguntar. Sim, Número Dois, como os corpos. Foi por aquele canal que todos os cadáveres haviam simplesmente evaporado do local onde foram deixados naquela semana.

Isso aconteceu bem debaixo dos olhos dos passageiros que estavam vivos. E, de uma forma trágica, também significa que todas as outras vítimas estavam escondidas em algum lugar daquele subsolo, e que agora poderiam ser encontradas a qualquer instante.

De volta ao momento perturbador compartilhado por aquelas duas meninas, não é preciso muito esforço para descobrir o motivo de Chariot estar tão assustada. Ela havia acabado de enxergar, dentro do túnel, o corpo da mesma garota que estava ao seu lado naquele instante.

— Su... Suzan. — Bethany murmurou com um nó na garganta, ao reconhecer a irmã gêmea dentro daquela plataforma.

Ela se afastou da estrutura rapidamente. E, embora ter visto aquilo a fizesse querer voltar a chorar para nunca mais parar, a situação ficou ainda pior. Foi preciso que ela explicasse àquela menina assustada que o cadáver no túnel não era seu, mas de sua irmã, que havia sido morta algumas horas atrás.

Após um tempo que se passou até que Chariot acreditasse em Bethany, as duas voltaram ao silêncio contínuo permeado pelos sussurros do abismo. Não durou muito. Chariot Green percebeu que alguma coisa se aproximava pelo caminho do qual vieram.

— O que está acontecendo? — Bethany tentou decifrar o que ela estava querendo dizer, mas a euforia da garota não ajudava muito.

Chariot era boa em perceber qualquer tipo de vibração, e você já sabe disso. Foi por esse motivo que, embora Bethany ainda não conseguisse identificar o som dos passos que vinham do lado de fora, a Green já sabia que alguém estava prestes a encontrá-las.

"Siga-me", Chariot fez um sinal manual para que saíssem de lá o mais rápido possível. As duas escaparam por outra passagem na parte inferior da parede e chegaram a um novo corredor estreito, de onde o barulho do vento era ainda mais forte.

Começaram a correr, e Bethany não voltou a olhar para trás. Tudo o que ela sabia é que alguma coisa aparentava estar se aproximando, mas não podia identificar se o barulho vinha do norte ou do sul. Então, em certo ponto, a garota fechou os olhos e depositou a sua chance de escapar em Chariot Green, que a puxava pela mão.

As duas só pararam de correr quando souberam que tinham despistado quem quer que fosse. "Você está bem?", perguntou Chariot. "Assustada", a outra respondeu. E então passaram-se alguns minutos agonizantes até que o silêncio fosse partido ao meio. Numa respiração profunda e controlada, Chariot finalmente disse: "Você sabe qual é a próxima pista?".

Bethany se espantou. "Do que está falando?", ela arriscou perguntar, embora já imaginasse o que estava acontecendo. "Preciso saber o que o último recado dizia", concluiu Chariot.

"Dizia que precisávamos encontrar o pacote capaz de nos levar para longe daqui", disse a outra. Ela imaginou que finalmente descobriria a resposta de que precisavam. Certamente era por isso que o espelho apontava para o lado de baixo!

Mas então, no momento seguinte, sua euforia em saber que obteria ajuda começou a diminuir. Ela afastou-se da Green ligeiramente, e a partir daquele instante, não conseguiu voltar a enxergá-la como alguém que foi sequestrado e que ficou preso naquele local contra a sua vontade. Pelo contrário, tudo o que Bethany imaginou sobre ela estava contido nas duas próximas palavras que teve coragem de dizer.

– Você... sabia? — seu coração batia verdadeiramente rápido. — Como você sabia?

A menina iniciou uma corrida desesperada antes que Chariot pudesse tentar explicar qualquer coisa. Era o instinto de uma vítima tomando o seu espaço — correr sempre parece a melhor opção. Bethany acabou perdendo-se no escuro algum tempo depois, quando a lamparina da Green ficou distante demais.

Então começou a se sentir aquecida outra vez. Seu corpo deixou de lado o frio do caminho até ali, e seus pulmões agora podiam inalar um ar que não fosse puramente congelante. Ainda não havia motivo para esta mudança repentina de temperatura, mas levou poucos minutos para que a garota se deparasse com um ambiente desconhecido, iluminado por uma porção de chamas.

Os pés dela hesitaram em adentrar aquela sala, mas não tinha outra alternativa. Havia uma fogueira na parede principal, rodeada por alguns castiçais e outros pequenos aparelhos que Beth não reconheceu de imediato. Quanto ao restante do salão, era preenchido por assentos enfileirados. E eu tenho total certeza de que você se encontra perdidamente indignado com o fato de haver assentos no fundo de um abismo. Por que eles estariam lá?

Pelo mesmo motivo que existiam assentos no trem para Barrymore: confortar os seus passageiros.

Bethany estava de costas para a lareira enquanto andava pela sala. Por isso, somente quando as chamas ergueram-se o bastante, devido ao vento, ela teve uma visão completa do que estava ao seu redor. E nesse exato e minúsculo pedaço do tempo, o peso que a jovem sentia em seus ombros dobrou de tamanho.

Ela caiu no chão sem dizer uma palavra. A garganta estava fechada, mas doía. Os olhos arregalados e as duas mãos tremendo sobre o vestido. Havia entrado em um estado completo de pânico e nervosismo ao avistar mais de uma dezena de pessoas presas nos assentos daquele salão.

Não estavam vivas. Ninguém sobreviveria a tanto tempo preso num espaço como aquele. Eram, na verdade, cadáveres. Costumo chamá-los de "pessoas" porque, apesar de alguns estarem inteiramente decompostos — sendo somente ossos em cima da cadeira —, outros faziam parte de histórias recentes. Ainda eram pálidos, tinham fios de cabelo e uma pele que apodrecia devagar. Todos com as mãos amarradas ao encosto de seus assentos, com a cabeça erguida e os olhos vidrados apontando para a frente.

— Não... — foi a primeira coisa que ela disse, após um tempo arrastando-se entre as cadeiras enfileiradas.

O estágio de negação em que se encontrava Bethany Hayes não compreendia só a perda de sua irmã e a descoberta de uma sobrevivente que deveria estar morta. Havia um terceiro item sendo adicionado à lista: os corpos de Dominic Cooper e de Elliot Montgomery na primeira fileira de assentos.

Ambos tinham pescoços quebrados e algumas fraturas expostas, mas haviam sido cuidadosamente posicionados como se fossem realmente passageiros esperando pelo seu destino. Além disso, havia sorrisos empedrados nas suas bochechas, como se algum tipo de tinta tivesse sido usada para fazê-los se parecerem com bonecos. E este talvez seja o detalhe mais doentio pertencente àquela sala: ela era a obra de um segundo artista. Alguém que se preocupou em coletar todas aquelas pessoas desconhecidas após tê-las assassinado.

Por quê? Essa é uma pergunta que deve ser respondida à Bethany, primeiro. Ela era quem estava sofrendo enquanto tentava manter os olhos fechados, apesar de ser impossível. Porque o seu coração estava machucado, mas o restante do corpo ainda desejava entender o que significava tudo aquilo. E encontrar uma saída. E fugir para bem longe.

Então ela começou a se mover. Esgueirou o corpo desesperadamente entre as fileiras e tentou não tocar em nada, mas a saída que tanto procurava podia não existir. Bethany não se deparou mais com a passagem pela qual havia entrado, e agora a sua cabeça girava sem parar de doer. Ela olhou para todos os cantos da sala com muita atenção, mas tudo o que via eram mais cadáveres espalhados.

Todos os passageiros conhecidos por Beth desde o início daquela viagem maldita estavam lá embaixo. Além disso, as demais figuras, aquelas que não podiam ser identificadas em razão de seus rostos danificados, deviam estar ali há ainda mais tempo. Meses. Anos.

Bethany sentiu a própria pele voltando a esfriar quando foi agarrada por duas mãos pesadas. Ao entrar em contato com outra pessoa, alguém que ela ainda não sabia quem era, a menina deu um salto para trás e esbarrou nos próprios passos.

— Me solte! Me solte agora! — gritou, contorcendo-se.

— Beth, fique calma. Sou eu. — a voz do rapaz penetrou os ouvidos da menina assustada gradativamente, até que ela finalmente parasse de se mover.

— Thomas? Como... como... o que faz aqui? — Beth tinha os olhos marejados.

O homem parecia completamente atordoado. Seus cabelos estavam molhados devido à chuva, o sobretudo cobria só metade do seu corpo, e ele segurava o revólver em uma das mãos.

— Não importa. Eu encontrei você. — ele rodeou o corpo da garota com os braço. — Tive tanto medo. Quando vi todo aquele sangue, achei que você...

— Suzan. — ela disse, com dificuldade. — Suzan está morta.

— Eu sinto muito. — Thomas silenciou seus lábios após ter dito aquilo. Ele esperou um momento enquanto observava o salão em que estavam. — Que lugar é este, Beth?

— Algo como um... um salão de convidados, eu imagino. — ela espremeu os olhos, com repúdio. — Estão todos aqui, Thomas. Todos eles. Nic, Elliot, Judith... todos que conhecemos. Até mesmo a Nancy.

Thomas demorou um pouco para assimilar a informação, especialmente ao encarar o cadáver de sua ex-esposa. Tudo ali era esquisito, mas não se assemelhava a nada que tinham visto antes. Continuar naquele salão provocava arrepios a qualquer um.

O homem caminhou mais um pouco, até que ficasse cara a cara com os cadáveres de Dominic e Elliot. Eles pareciam tristes — e isso era um detalhe que Bethany não interpretou quando os viu mais cedo porque, para ela, aqueles dois meninos pareciam somente assustados.

Assim que a menina dispersou o seu olhar, Thomas dobrou os joelhos e apanhou alguma coisa que estava produzindo um reflexo esquisito, no meio das vestes de Elliot. Eram os dois alfinetes que ele utilizou para matar as suas próprias vítimas. Thomas os guardou no bolso do casaco, e só então voltou para perto da menina.

Em outra ocasião, se ao menos ele tivesse passado um pouco mais de tempo averiguando o cadáver, também teria notado outro detalhe oculto: um pacote envolvido num tecido escuro e preso na parte inferior do assento de Elliot, logo atrás de suas pernas. Mas Thomas perdeu aquela pista. Eu sinto muito por isso.

— Nós temos que ir, Beth. Lucille e Claire desceram junto comigo, mas nos separamos quando saímos do elevador. Eu disse que voltaríamos para aquele ponto assim que eu a encontrasse, e é isso que precisamos fazer. — ele puxou a mão dela.

— Não! Espere. — Beth recuou. — Como pode ter certeza de que uma delas não é o lunático que perseguiu a mim e a minha irmã com um machado horas atrás?

— Não, Beth... você não está entendendo. Eu estou quase certo de que isso é mais profundo do que imaginávamos. — Thomas a olhou nos olhos. — Eu acho... acho que o Anfitrião não é nenhum de nós quatro, mas alguém que não conhecemos. Alguém que estava nos visualizando de fora esse tempo todo.

— Thomas... — Beth preparava-se para contar alguma coisa a ele.

— Escute-me! Preciso que confie em mim. — ele prosseguiu. — É muito mais provável que estejamos lidando com alguém que não está entre os sobreviventes. Alguém que possa ter ativado aquela música enquanto estávamos reunidos no corredor, e... e que possa ter retirado os cadáveres, preparado aquele jantar. Tudo isso!

— Thomas! — Bethany agarrou-o pelos ombros. Seus olhos estavam realmente próximos agora. — Chariot Green está viva. Ela esteve escondida aqui embaixo todo esse tempo, desde que desapareceu na terceira noite. Acha que ela poderia estar por trás disso?

— Chariot... o quê? — suas sobrancelhas foram parar no topo do seu rosto. Ele parecia realmente impressionado.

Bethany não precisou dizer mais nada além do que já havia sido dito. Os dois tinham tudo de que precisavam em mãos: um salão secreto que guardava todas as vítimas, uma possível identidade do assassino e uma chance de descobrirem onde todo aquele devaneio acabaria. Então aproveitaram a deixa. Passaram pela passagem que Thomas havia usado para chegar ali e começaram a correr.

Agora, eu preciso que você me acompanhe até Clarie e Lucille. Com sorte, as encontraremos a tempo de resolver este mistério.

A ruiva andava na frente, apressada, e Lucy vinha um pouco atrás. Não haviam trocado uma palavra desde que Capucci se afastou para procurar por Bethany. E na opinião de Claire, isso não havia sido uma boa coisa. Porque agora ela não conseguia calar as vozes em sua cabeça.

Elas soavam mais ou menos assim:

Encontre um jeito de escapar. Busque o pacote. Beth corre perigo. Capucci parece suspeito. Lucy pode estar tentando te matar. Escape. Capucci é suspeito. Lucy vai matá-la. Salve a Bethany. O pacote! Mentirosos! Perigo!

— Ei, Brassard! Encontrei alguma coisa. — a voz de Lucille veio de algum lugar longínquo. Só então Claire percebeu que haviam se afastado consideravelmente.

Ao retornar para o ponto de encontro, deparou-se com uma parede úmida que proclamava um tipo de sussurro diferente do que haviam ouvido antes. Lucy sinalizou para que a ruiva abaixasse-se diante da estrutura, e quando o fez, Claire percebeu que o vento passava por baixo de uma fenda e chegava até os seus cabelos. Aquela parede era falsa, porque havia um espaço atrás dela.

— Temos de encontrar um jeito de entrar. — Claire ergueu-se novamente e olhou para as duas direções possíveis. O obstáculo diante delas era circundado por dois caminhos diferentes e em posições contrárias. — O que acha de darmos a volta? Se encontrar alguma coisa, grite com toda a sua força e eu voltarei correndo.

Lucy não pareceu a maior fã da ideia, mas aceitou tranquilamente. As duas se separaram, então, e Claire tomou o caminho da direita. Enquanto andava, podia ouvir o barulho de uma gota d'água pingando perto de onde estava. Era algo tão insignificante que a sua mente poderia esquecer disso em segundos, só que a sensação de estar sozinha naquele local fazia tudo parecer muito pior.

O barulho começou a aumentar. De repente, se transformou em algo diferente. Mais ríspido, frágil. Agora parecia-se com um artefato se quebrando, como o pote de cinzas que Claire havia jogado contra a parede mais cedo. Não devia ter feito aquilo, afinal.

— Lucille? — exclamou, ao virar-se rapidamente para trás.

Não havia ninguém lá. A Brassard voltou a caminhar em passos mais apressados, mas nem isso foi capaz de ajudá-la. O caminho parecia cada vez mais longo e a parede cada vez mais distante, como se ela nunca fosse conseguir dar a volta completa.

No minuto seguinte, a sensação de estar sendo perseguida retornou. Claire virou seus olhos para o mesmo lugar e avistou uma silhueta próxima da parede. A primeira reação da garota foi começar a correr, sem esperar por quem quer que fosse.

O escuro contínuo havia feito Claire se acostumar com a falta de visão. Por isso, ela não tardou a jogar o corpo contra a primeira estrutura que avistou perto do chão. Era um pequeno amontoado de rochas que poderiam ajudá-la a se esconder.

A garota grudou as costas contra o obstáculo e tentou controlar a respiração. Se alguém utilizando uma máscara e uma vestimenta grosseira estivesse procurando por ela, dificilmente a veria no meio de toda aquela escuridão. Só precisava ficar calma e pensar em algo que não fosse aquela situação.

Impossível fazer isso. Os passos continuaram se aproximando, com sons cada vez mais duradouros e pegadas mais cautelosas. Claire espremeu os olhos e abaixou a cabeça entre as pernas. Não podia morrer. Não agora.

Ela arrastou a mão direita até o canto da parede, onde encontrou um pedregulho. Então, segurou-o com força entre os seus dedos e preparou-se para atacar aquela figura assim que desse o próximo passo.

Claire! — uma voz foi guiada pelo eco do enorme corredor. Era Lucy, aparentando estar realmente longe dessa vez.

Claire identificou o momento em que a figura retrocedeu seus passos e, depois de alguns segundos de silêncio, saiu correndo daquele lugar. A garota pôde finalmente respirar outra vez. Seu coração começou a desacelerar em um sentimento de alívio, e a sua mão abriu-se involuntariamente até que soltasse a pedra.

Ela se afastou da parede e voltou depressa até o lugar em que havia visto Lucille pela última vez.

— Por que você demorou tanto? — Lucy jogou a luz da lanterna contra o rosto dela. — Antes que responda, eu encontrei uma passagem. Há uma sala atrás da parede que vimos, como eu imaginei. E pode ser que exista luz lá dentro... bem, estou quase certa disso.

— Isso é ótimo. Esqueça a demora, eu só... me perdi no caminho. — Claire suspirou.

As duas adentraram o lugar através da passagem que a Leweis encontrou. Assim que chegaram ao outro lado da parede, a pele de seus corpos foi submetida a um calor inexplicável. Era diferente do ambiente externo, era confortável. E seguro. Quase se parecia com um refúgio.

Não havia luz lá dentro, no entanto. Lucy precisou usar a lanterna para ver o que estava espalhado pelas paredes. E este é um ponto da história do abismo que eu deixaria de fora dos meus futuros relatos. Infelizmente, você já está aqui. Não há muito que eu possa fazer para impedi-lo de descobrir o que há lá dentro. Então vá em frente, Passageiro. E segure-se em mim se precisar, porque nós vamos descer bem fundo no subconsciente doentio de alguém que se considerava um Anfitrião.

A primeira parede para a qual Lucy Leweis apontou a sua lanterna estava repleta de fotografias. Eram quinze, para ser exato. E, a essa altura, você pode imaginar quem eram os rostos que preenchiam aquelas imagens: os quatorze passageiros do trem para Barrymore, além do maquinista.

Claire sentiu o seu estômago embrulhar. Ela fechou os olhos e virou-se para o outro lado da sala. O silêncio que as duas mantinham enquanto olhavam uma para a outra, frequentemente, era perturbador.

Ao se aproximar de uma pequena mesa no canto daquele espaço escuro, a ruiva deparou-se com um machado repleto de sangue e a odiosa máscara angelical. Havia uma porção de moscas rodeando aquela região da sala.

— Acho que entendi onde estamos, Lucy. — Claire afastava-se vagarosamente da mesa enquanto falava. — É aqui que o Anfitrião tem passado o tempo, quando não está no trem. Receio que estejamos no lugar mais perigoso deste enorme labirinto. O último lugar em que deveríamos estar. Precisamos ir embora agora!

— Não antes de descobrirmos o que esse desgraçado tem a ver com todos nós. — Lucy jogou a lanterna contra a menina. — As nossas fotografias estão na parede, Brassard. E não foram tiradas nesta viagem. Só podem ser da primeira vez em que pisamos no trem.

— Quatro anos atrás. — murmurou Claire, com a cabeça baixa. — Então... alguém tem nos vigiado desde aquele dia. Durante quatro anos, alguém esteve esperando que voltássemos para cá.

Claire saiu de perto de Lucy e aproximou-se da terceira parede, a única para a qual não haviam dado atenção. Tomando a lanterna da outra menina, a Brassard iluminou o rochedo e foi surpreendida por uma pintura. Ao analisá-la com cuidado, teve certeza de que aquele era o mesmo quadro colocado na parede do salão de jantar no quinto dia de viagem. O mesmo que Olivia Armstrong tentou decifrar. O mesmo que Clamence Allykov jogou pelo abismo horas depois — e agora, com certeza, fazia algum sentido o fato de ele ter ido parar ali embaixo.

— São as três pessoas desconhecidas junto de Elliot Montgomery, outra vez. — comentou ela. — Digo, isso se ele for um dos integrantes da pintura. E chega a ser quase óbvio, neste caso, que talvez...

— Que talvez uma das outras silhuetas pertença ao Anfitrião. — Lucille concluiu. — Meu Deus. Elliot Montgomery e o Anfitrião podem estar conectados de alguma maneira. Estiveram esse tempo todo! Devemos procurar por conexões, laços... detalhes que indiquem qualquer coisa.

Enquanto Lucy realizava a sua pequena investigação, a ruiva voltou a olhar para as paredes ao seu redor. O nome "Elliot" estava cravado na maior parte dos rochedos. Foi escrito com a ajuda de algum objeto pontiagudo, com toda a certeza. E, no canto inferior da parede, perto do buraco pelo qual elas haviam entrado, havia uma porção de roupas velhas emaranhadas. Claire as reconheceu: pertenciam ao Elliot, ele as havia vestido enquanto estava no trem.

— Claire, acho que não estamos só no covil do Anfitrião. Estamos... — um arrepio percorreu o seu corpo. — dentro de um memorial. Um memorial para Elliot Montgomery.

Os olhos da ruiva permaneciam estáticos sobre aquela pintura. Ela ignorou uma parcela do que a outra menina havia dito. A sua cabeça doía muito, como se permanecer naquele lugar a estivesse adoecendo. Precisava ir embora, mas também precisava expulsar de dentro de si aquela sensação ruim que sentia desde que tudo teve início.

— Você quer saber o que havia naquele pote de cinzas? — Claire ergueu a cabeça e pôde encarar Lucille debaixo da penumbra daquele lugar. — Elas pertenciam à minha filha.

— Você... teve uma filha? Ela era a pessoa que você viu morrer na capital? — perguntou Lucy. Claire balançou a cabeça em confirmação. — E por que você mentiria dizendo ao Thomas que ela só estava... doente?

— Porque comecei a achar que eu estivesse doente. Tudo parecia tão confuso no início da viagem... — duas bolsas d'água apareceram debaixo de seus olhos. — Eu estive grávida durante oito meses, quando estava sozinha na capital. Foi um parto prematuro, e não tenho muitas lembranças sobre a noite em que ela nasceu. É como um borrão, exceto pela clássica cena que preenche a minha mente há anos: um carro escuro estacionou naquela rua estreita, porque o motorista me ouviu gritar enquanto descia as escadas. Eu me arrastei para dentro e fui levada em direção ao hospital.

— E o que... o que aconteceu com ela, exatamente? — Lucille questionou.

— Algumas semanas mais cedo, havia uma doença mortífera se alastrando pela metrópole. Foi um pouco antes da crise, e eu estava bem no meio de todo aquele... apodrecimento. Pessoas que não tinham acesso aos hospitais estavam morrendo nas ruas. Foi horrível. Se quer saber, eu tive muita sorte de encontrar alguém que me ofereceu aquela carona. — Claire levou as duas mãos até o seu rosto, incomodada em se lembrar da fatídica noite. — Crianças que nasciam naquela época adquiriam a doença muito mais rápido que os adultos, e por isso... você pode imaginar o que aconteceu.

— A sua filha não resistiu? — disse.

— Permaneceu sob supervisão por cinco dias. E então... todos os seus órgãos pararam de funcionar. A opção mais barata, devido ao enorme contingente de vítimas na metrópole, era a cremação. — contou a ruiva.

— Eu sinto muito. — Lucy tentou transparecer algo que não fosse totalmente ofensivo, como de costume.

— Eu não consegui salvá-la. Fiz de tudo para que não desligassem as máquinas, para que não a deixassem ter o mesmo destino que aqueles andarilhos adoecidos nos becos da capital teriam. Mesmo assim, ela morreu bem na minha frente. — ela soluçou em meio ao choro. — E... você quer saber de algo ainda pior? — os olhos amendoados da ruiva voltaram-se à menina.

"Quando embarquei no trem, só podia pensar no que havia acontecido com a minha pequena criança, semanas atrás. Só que... de repente, essa lembrança começou a se tornar mais antiga. Você entende, por acaso? Como se estivesse se afastando, ficando cada vez mais longe. No final da primeira noite, eu já não sabia mais se minha filha havia realmente morrido naquela semana ou... anos atrás. Por isso menti ao Thomas", relatou a garota.

Lucy estava calada. Voltou a falar depois de um tempo analisando aquela situação em sua cabeça.

— Eu agradeço pela sinceridade. — um suspiro seguiu a sua fala. — Ainda quer saber... o porquê de eu ter sussurrado aquelas palavras na mesa de jantar? "O sangue de Charles não pode apodrecer". Eu já sabia o que estava escrito no bilhete deixado pelo Anfitrião porque, alguns momentos antes de todos vocês encontrarem o corpo da Sophie, eu... eu voltei ao lado de dentro e me deparei com um bilhete deixado para ela. Sophie também recebeu uma mensagem do Anfitrião, e acredito que ela tenha tentado me avisar sobre isso um pouco antes de morrer. Só que eu não dei ouvidos. — seus olhos se fecharam antes que as lágrimas rolassem. — Fui até a cabine de Charles mais uma vez naquela madrugada, e dei de cara com um segundo bilhete.

— Por que não o acordou? — questionou Claire.

— Eu não... não sei. Estava com raiva. Com tanta raiva de todos vocês, que cogitei deixar que achassem aqueles bilhetes no início da manhã e pensassem qualquer coisa. Isso também se aplica ao Charles, embora agora eu me arrependa. Talvez pudesse tê-lo ajudado a não ser morto naquela tarde, se o avisasse mais cedo... — tudo ficou silencioso. — Eu queria que sofressem. Que ficassem assustados, zangados... que sentissem algo ruim. Como eu senti enquanto a Stewart morria em meus braços.

Claire tentou tocar as mãos dela, por mais assustada que estivesse. As duas se afastaram logo depois, e a ruiva caminhou de um lado para o outro. Tentou pensar em alguma coisa, em tantas coisas. No entanto, durante um pequeno momento, o reflexo da lanterna permitiu que a Brassard enxergasse algum objeto reluzente sendo mostrado no bolso do casaco de Lucy.

Ela encarou o rosto da garota, então. A Leweis estava outra vez olhando para aquelas fotografias na parede. Mas não as olhava como alguém que não entendia o que estava acontecendo, e sim como alguém que temia a confirmação de algo que ela já tinha em mente.

— O que você está escondendo? — Claire disparou.

— Como é? — Lucy virou-se imediatamente.

— Você trouxe algo no bolso do casaco. Percebi quando passou por mim no corredor principal. E agora... está agindo estranho em relação às fotografias. Você sabe de alguma coisa, não sabe? — Claire começou a retroceder os seus passos até que chegasse perto da mesa com o machado e a máscara.

Lucy olhou para ela com as suas olheiras fundas e sobrancelhas baixas. Não disse mais nada. E de repente, muito lentamente, aproximou uma das mãos do seu bolso e retirou de dentro dele um panfleto. Era a mesma propaganda que Charles Bourregard havia encontrado em sua gaveta na outra tarde.

— Não há nada aqui que não assuste a mim tanto quanto a você, Brassard. — Lucille parecia atormentada. Ela caminhou para perto da ruiva e esticou a sua mão que continha o panfleto. — Veja com seus próprios olhos. Foi esse bilhete que encontramos na mochila de Bethany, e que utilizamos como referência para atirar aquele sinalizador e pedir ajuda à trupe do Circo D'Art.

— Não entendo. O que há de especial nele? — Claire espremeu os seus olhos para decifrar as palavras no bilhete.

— A data, Claire. Preste atenção na data! — uma porção de lágrimas começou a preencher os olhos da outra. — A data é de quatro anos atrás. Eu... eu não percebi isso da primeira vez que o peguei. E acho que Charles deve ter descoberto enquanto estava trancado no próprio dormitório, um pouco antes de... morrer.

— Isso significa que ninguém está procurando por nós. Não é? — Claire ergueu o rosto contra a luz da lanterna. — A apresentação ocorreu quatro anos atrás. Ninguém... ninguém estava em Barrymore naquela hora. Ninguém viu o sinalizador. — Claire caiu de joelhos. Ela leu e releu o panfleto mais um milhão de vezes. Nada fazia sentido. — Como? Como é possível que tenhamos nos enganado? Vocês dois saberiam! Saberiam quando viram o bilhete pela primeira vez.

— Não, Claire! Nós não tínhamos como saber. É isso que tem me feito enlouquecer nos últimos dias. — Lucy voltou-se para a parede com as fotografias. — Charles me disse, na outra tarde, que as manchetes sobre as locomotivas haviam feito com que ele começasse a pensar em uma coisa muito esquisita... e, já que você sabia sobre as manchetes, suponho que você e ele também tenham tido essa conversa.

— Sim. Sim! — a ruiva a interrompeu. — O Bourregard estava atormentado com alguma coisa naquela tarde. Ele comentou sobre quem éramos antes do embarque, e sobre... as nossas vidas durante aqueles quatro anos. Também disse que poderíamos ter... esquecido. — Claire parou de falar.

Por cerca de dez segundos, a sua boca permaneceu inerte e os olhos ficaram fixos no chão. Claire não se moveu. Lucy parecia ter sentido a mesma coisa, surpreendentemente. E então, as duas passaram a encarar uma à outra como se finalmente soubessem.

Epifania. Para o caso de você não conhecer essa palavra, refere-se ao momento exato em que uma pessoa se dá conta de absolutamente todos os acontecimentos que a rodeiam e o que cada um deles significa. É como um "despertar" não premeditado.

Se estivéssemos falando de um conto fantástico, este provavelmente seria o momento em que Alice descobre que o País das Maravilhas só existe dentro da sua cabeça. De maneira trágica, Passageiro Número Dois, nós não estamos em um conto fantástico. E aquele caso de epifania refere-se, na verdade, ao momento em que Claire Brassard e Lucille Leweis descobrem que elas — e também os outros onze passageiros — não haviam embarcado em um trem com destino a Barrymore na última semana. Foram enganados por suas mentes.

Claire voltou a ouvir os passos do lado de fora. Ela não precisou evidenciá-los à outra garota, porém. Lucy imediatamente entendeu que tinham que dar o fora daquele lugar o mais rápido possível.

A ruiva tentou voltar pela passagem que vieram, mas era de lá que o barulho estava vindo. Então passou a procurar por outra saída em meio aos rochedos escuros. Com muita dificuldade, ela acabou encontrando um espaço perto do chão. Havia uma corrente de ar passando por aquela fenda, o que a fez acreditar que poderiam escapar por ali.

— Eu vou levar isso conosco, por garantia. — Claire agarrou o machado e depois correu em direção à passagem no chão. — Vamos agora, Lucy! Não há mais tempo. Temos que ir!

— Só mais dez segundos, Claire. Dez segundos! — Lucy correu até o outro canto da sala.

Debaixo da mesa onde a máscara angelical se encontrava, Lucy Leweis avistou a presença de um livro. Era um artefato antigo e repleto de poeira, com páginas envelhecidas e algumas deterioradas. Na capa, escrito manualmente com alguma tinta escura, estava o nome "Montgomery".

Lucy agarrou o livro em seus braços e correu até a passagem, onde Claire esperava por ela com suas mãos esticadas. As duas desapareceram no breu dos rochedos quando a lanterna da Leweis foi desligada por ela mesma, para que ninguém as enxergasse.

De volta a Beth e Capucci.

Os dois haviam tomado um caminho diferente dessa vez, depois que deixaram a sala dos assentos. Por insistência da garota, optaram por seguir o som dos rangidos que perturbaram seus ouvidos a noite inteira. Finalmente saberiam de onde vinha aquilo, um detalhe misterioso que ficou preso em suas cabeças há muito tempo.

Beth segurou a mão de Capucci com força — não seria uma boa ideia perdê-lo naquele momento. Passaram por uma fenda em meio ao rochedo, então, e foram surpreendidos assim que chegaram ao destino final.

— É aqui. O som que ouvimos no trem, na tarde passada, veio daqui! — comentou Beth.

À frente deles, estava uma enorme estrutura que se estendia de uma extremidade da cratera à outra. O metal era enferrujado, o que demonstrava que estava ali há muito tempo. Por outro lado, visto a sua grandiosidade, foi feito exatamente para que cumprisse uma só função: "sugar" todas as coisas que eram jogadas no abismo. Isso incluía os corpos, os pertences, as histórias de todos que passaram por ali.

Thomas olhou para os seus pés. Um túnel passava pelo chão no qual estavam pisando. Ele deduziu, um tempo depois, devido à direção que o compartimento seguia, que aquilo acabaria em algum lugar próximo à sala dos assentos.

— Então é isso que acontece com todas as coisas que caíram aqui. — Beth caminhou entre o espaço que não era ocupado pela grande estrutura metálica. — Tudo é levado para o grande salão, onde o Anfitrião, ou quem quer seja, tem trabalhado há muito tempo. E tudo foi utilizado para orquestrar uma... uma...

— Uma história. Não é? — Thomas olhou para a garota, que balançou a cabeça. — É isso o que parece. A julgar pela estrutura, é possível que a construção deste "direcionador" improvisado esteja relacionada com aquelas locomotivas que desapareceram nos últimos anos. Podem ter utilizado a carcaça metálica, mas... isso levaria tempo. Muito tempo.

Beth se afastou do rapaz e caminhou mais um pouco. Debaixo de alguns destroços, ela encontrou um enorme farol de trem. O objeto estava apontado para o topo do abismo, e sua extremidade ligada a uma rede elétrica. Entretanto, aparentava ter sido deixado escondido sob o restante dos destroços.

A garota ativou o que parecia ser uma espécie de alavanca improvisada. Com isso, o objeto passou a emitir uma luz forte em direção ao céu. Thomas se aproximou no mesmo momento.

— Agora sabemos o que foi que vimos na noite da tempestade. Alguém deve ter ativado isto para que o enxergássemos, Beth. — afirmou ele.

— E estávamos todos no trem naquele instante. Levando em conta que é quase impossível que alguém tenha se afastado do grupo e descido até aqui embaixo, devemos acreditar que só uma pessoa poderia ter feito isso... — Bethany encarou o companheiro.

— Chariot. — disse ele.

Repentinamente, os dois ouviram com clareza quando alguém aproximou-se pelo outro lado da estrutura. Tentou se esconder atrás dos destroços, mas Bethany a enxergou no momento seguinte.

Thomas entregou a arma à garota, que começou a se aproximar devagar. De imediato, a menina que se escondia deu as caras. Era de fato Chariot Green. Ela ergueu as duas mãos e tentou dizer a eles que não era uma ameaça.

— Pergunte o que ela estava segurando. — ordenou Capucci, prestando atenção em um artefato que estava ao lado dos pés de Chariot.

"O que você trouxe?", Beth sinalizou com as mãos. E a outra menina, visivelmente assustada, agarrou o pacote que estava no chão e o colocou na frente dos dois. "Ajudar", respondeu ela. Thomas aproximou-se, desembrulhou o artefato imediatamente e foi surpreendido com a existência de um conjunto de explosivos.

— Santo Deus. — disse ele, se afastando. — Esse era o pacote ao qual o Anfitrião se referiu. Provavelmente uma das únicas coisas com capacidade de abrir passagem por aquele rochedo, na estrada, e nos tirar daqui. Bethany, eu acho que Chariot pode estar realmente querendo nos ajudar.

"A luz", Chariot apontou para o farol que estava atrás deles no momento seguinte. "Fui eu, naquela noite", disse ela. E agora estava respondida a única dúvida restante: o sinal que veio do abismo pertencia realmente a alguém que estava ali embaixo.

— Foi a Chariot, Thomas. — explicou Beth, na intenção de "traduzir" uma linguagem que ele não entenderia. — Chariot foi a responsável pelo ponto de luz que enxergamos na tempestade. Eu só não entendo o porquê.

"Precisava de ajuda", complementou Chariot. Ela ficou calada por mais alguns segundos, com os olhos voltados para o chão. Seus pés estavam completamente sujos e ela tremia, como se estivesse com frio. "Não tive outra opção quando fui trazida. Forçada a ajustar a máquina dos mortos por muito tempo. Encontrei o farol e tentei emitir um sinal. Isso é tudo."

"Máquina dos mortos", foi esse o termo que aquela perturbada vítima encontrou para descrever o que era aquela construção doentia. Provavelmente dizia isso porque ela viu uma grande quantidade de corpos caindo em cima daquele enorme escoador. Dito isso, Bethany e Thomas foram capazes de deduzir que o túnel secundário, aquele em que Suzan havia sido encontrada, foi criado mais tarde, quando o Anfitrião precisou de uma maneira mais rápida para subir até o trem.

"Como você não descobriu quem ele é?", perguntou Beth, referindo-se à identidade do Anfitrião. "Ele tem usado uma máscara nos últimos dias", afirmou a menina. O que era verdade. "Sinto muito. Fui eu quem fez a música tocar, e fui eu quem trouxe o cadáver de Charles Bourregard aqui para baixo. Não tive escolha. Foram poucas as vezes em que fui até lá em cima, como ordenado pelo Anfitrião".

Chariot começou a chorar silenciosamente, com a cabeça entre as pernas. O seu corpo inteiro tremia. Bethany aproximou-se dela e a rodeou com seus braços antes que dissesse qualquer outra coisa. Para alguém que entendia os perigos de um mundo no qual você não escolheu viver, aquela era uma justificativa muito aceitável. Chariot Green não era uma má pessoa, só não teve a mesma sorte que os outros quatro.

— Está começando a chover. — comentou Thomas, que ainda estava parado no mesmo lugar.

Beth ajudou Chariot a se sentar perto da passagem, sob o rochedo escuro, onde estaria protegida da chuva. Em seguida, ela designou um olhar à menina que dizia com clareza que eles entendiam tudo o que ela havia contado. Então Beth se aproximou do rapaz outra vez.

As suas cabeças estavam finalmente debaixo da chuva. E da claridade, por mais limitada que fosse. O vento não era mais um problema devido ao simples fato de que agora podiam respirar. Beth e Thomas souberam, por um curto e verdadeiro momento do tempo, que o abismo não era tão assustador quanto parecia.

Eles não tinham como reverter a história trágica que sucumbia sob ele. Uma história de dor, de lamento e de sussurros assustadores que ficariam presos lá embaixo para sempre. Presos à enorme estrutura que engoliu todas aquelas pessoas ao longo dos anos.

Mas por trás disso tudo, talvez existisse beleza em um lugar que foi esquecido. Esquecido. Es-que-ci-do. Eu sinto muito. Essa palavra tem me atormentado um pouco nos últimos dias, e eu espero que o mesmo não aconteça a você quando esta viagem acabar, Número Dois.

— Não parece absolutamente improvável para você que ainda estejamos vivos? — Thomas passou as duas mãos sobre o seu cabelo molhado e espremeu os olhos, livrando-se da água gelada da chuva.

— Precisa existir um motivo, Thomas. — Bethany sussurrou para ele enquanto esticava o seu braço direito. Seus dedos tocaram uma pequena folha do orvalho que crescia perto da parede escura.

Um bando de corvos voou para longe das paredes escuras do abismo. Beth não se assustou. Ela permaneceu observando as plantas que cresciam perto do chão. Era esquisito pensar que algo tão puro pudesse crescer ali embaixo.

— Nunca achei que quisesse tanto chegar a Barrymore. — os olhos de Beth lacrimejaram. — Mas... eu quero.

— Nós vamos. Eu prometo fazer de tudo para que estejamos naquele trem daqui a algumas horas, Beth. — Thomas aproximou a sua cabeça do ombro dela. — Talvez... uma última dança no quiosque. O que me diz?

— Acompanhados de duas doses da bebida mais forte que estiver disponível? — pediu ela, encarando-o.

— Sim. Duas doses da bebida mais forte. — o rapaz confirmou.

Os dois foram obrigados a virar-se outra vez para a parede de rochas que estava em suas costas. Chariot estava perto da passagem, esperando por eles. Então Beth e Thomas olharam para o abismo por uma última vez, agarraram o pacote de explosivos e depois se afastaram.

Levaram cerca de quinze minutos para atravessar os mesmos buracos estreitos e encontrar o caminho principal. Tiveram sorte por Chariot Green estar ao lado deles — ela conhecia aquilo como a palma da própria mão.

Thomas notou algo de estranho quando alcançaram a porta do elevador. A pequena lâmpada ainda piscava freneticamente, como de costume. Uma grade cobria parcialmente a plataforma, e tudo estava em silêncio. Não havia nada fora dos conformes, exceto talvez por um pequeno bilhete grudado à porta da cabine.

— O que está escrito? — Beth se aproximou do rapaz para que pudesse ler.

"O Anfitrião comunica que a sua viagem está prestes a tomar continuidade. Decida quem irá acompanhá-lo antes que o tempo de embarque se encerre."

Os três se sentiram confusos. Embora soubessem do que se tratava tudo aquilo, não havia certeza em relação ao que o Anfitrião estava tentando dizer. Como seria possível decidir quem irá acompanhá-lo?

— Ele... ele está falando sobre nós cinco. Acho que não existem assentos o suficiente para todos os passageiros que restaram no trem, se... se é que me entendem. — Thomas engoliu em seco. Depois, voltou-se às duas meninas e esperou que uma reação surgisse. Mas elas continuavam sem entender. — Beth, você pode checar se há alguma alavanca ou botão do lado de fora do elevador?

— Não há botões aqui. — afirmou a garota, após observar a estrutura por inteiro. — Isso significa que não poderíamos controlar quando o elevador sobe e quando ele volta aqui para baixo. Não é? Assim que fecharmos a grade por completo, subiremos e... não há como saber quando ele vai voltar.

— Exato. Consequentemente, se decidirmos não subir agora, podemos ficar presos aqui embaixo. — Thomas apoiou o braço contra a parede e respirou fundo, de olhos fechados. Estava pensando em uma solução. — Entrem.

— O... o quê? — Beth perguntou. — E quanto a Lucy e Claire?

— Você entendeu o recado do Anfitrião, Beth. Subimos agora ou perdemos a nossa passagem só de ida para longe daqui. — o rapaz colocou o próprio corpo no lado de dentro.

— Não, Thomas. Nós podemos esperar um pouco. O que você está tentando fazer? — ela segurou o seu braço.

Dez minutos. — ele assegurou. — Só dez minutos. Se ninguém aparecer, nós subimos. Quer saber o que eu estou tentando fazer? Salvar as nossas vidas, Beth.

A garota se sentou do lado dele, e Chariot fez o mesmo em seguida. E então esperaram, calados e vigilantes. O silêncio do abismo naquele momento era realmente perturbador.

E agora devemos voltar às duas garotas que carregavam o livro Montgomery em suas mãos.

Depois de arrastarem seus corpos pela passagem estreita no chão, Claire e Lucille foram parar na mesma sala em que Beth e Thomas haviam se encontrado, quase uma hora mais cedo. E elas sentiram o mesmo espanto que tomou os outros dois. Estavam em frente a uma assustadora quantidade de pessoas mortas.

— Lucy, minha... nossa. — Claire deu um passo para trás. Não acreditou da primeira vez.

— Isso é... — Lucy engoliu em seco.

— Acho que estamos exatamente no meio da construção do nosso Anfitrião. — disse a ruiva.

As duas se separaram. Lucy começou a ultrapassar as fileiras ligeiramente, deparando-se com todos os rostos pálidos das vítimas. Claire, por sua vez, não chegou a se mover. Os olhares horríveis daqueles seres causavam arrepios à garota. Ela não conseguia entender por que ainda estavam ali.

Um pouco depois, Claire se aproximou da lareira involuntariamente, mas afastou-se assim que sentiu o fogo chegar perto de sua pele. Ela sentiu-se esquisita. Estar rodeada de todos aqueles olhos vazios fazia parecer que eles, os vivos, eram parte de algum tipo de encenação. Uma atração para as enormes fileiras de assentos reservados aos mortos.

E talvez seja disso que parte o princípio doentio relacionado à morte. Número Dois, acha que eu e você estaríamos perto da lareira, no centro da sala, quando nos tornássemos uma daquelas vítimas? Não. Provavelmente conseguiríamos um assento no canto da parede — e isso já seria muita sorte. É que os vivos costumam esquecer muito rápido das coisas. E aquilo que é esquecido dificilmente ganha um lugar perto da lareira. É sempre nos assentos mais escuros.

Ser esquecido é algo tenebroso. Assustador, quando se trata de uma coisa que você não esperava. E naquele momento, Claire Brassard entendia parte do que significava aquele livro, o memorial, os assentos e todas as outras coisas encontradas. Alguém havia sido esquecido ali embaixo.

— Este lugar está me dando arrepios, Lucy. Já podemos ir embora? — Claire perguntou, rotacionando o olhar por todas aquelas pessoas estáticas.

— Espere mais um pouco. — Lucille voltou a encarar os cadáveres. Parecia que estava procurando por alguma coisa.

Logo depois, Claire ouviu um barulho estranho vindo de um dos cantos da sala. Ela viu, debaixo da fraca iluminação que se chocava contra o chão, uma linha contínua de algum líquido derramado. O rastro seguia até uma das saídas do salão, de onde o barulho estava vindo. Aquilo era querosene, Claire percebeu imediatamente.

— Lucy... — ela caminhou para perto da outra, que parecia paralisada no centro do salão. — Lucy, temos que sair agora. Venha comigo!

Embora tenha feito esforço, a ruiva não conseguiu a atenção da outra menina. Lucy ainda estava parada. De repente, fogo. O rastro de querosene levou as chamas até a lareira, onde se encontraram numa pequena explosão. As labaredas subiram muito rápido, iluminando o topo do salão e começando a tocar os assentos. Tudo seria consumido em instantes.

— Nós temos que sair! — Claire gritou.

Lucille estava rodeada pelo pavor, embora tudo para o que pudesse olhar fosse o corpo de um dos rapazes no fundo do salão. Charles Bourregard e o seu olhar vazio nunca pareceram algo tão assustador quanto naquela madrugada. Era como se Lucy pudesse vê-lo pela primeira vez. Vê-lo verdadeiramente, diferente de quando ela ignorou a sua presença no topo daquela mesa de jantar, amarrado por uma corda que prendia o seu pescoço.

"Nós temos que ir agora!", a voz de Claire ao fundo não lhe fazia mudar de ideia. E saber disso me faz sentir uma tremenda dor em meus ossos inteiros. Dói imaginar que alguém que estava viva pudesse preferir ficar presa em um salão incendiado apenas para que tivesse minutos a mais. Um momento, que fosse.

Dessa forma, não pareceu mais assustador a presença de um cadáver naquele assento. Para Lucy, não era nada assustador passar o resto de sua vida medíocre sentada ao lado do seu último amigo. O contraponto disso tudo é que ainda existia um resquício de súplica vivendo dentro dela.

E foi o que permitiu que aceitasse a ajuda de Claire Brassard quando a ruiva tentou tirá-la de lá. As duas passaram pela porta e correram em direção ao caminho escuro que deveria levá-las de volta ao elevador. O fogo estava se alastrando muito rápido. Elas perceberam, então, que o incêndio não estava contido apenas àquele salão. A fumaça começou a persegui-las com rapidez, e tudo se transformou em um enorme caminho de iluminação avermelhada e cinzenta.

— Estou vendo alguma coisa! Deve ser a lâmpada do elevador. — Claire forçou o olhar para identificar que havia três pessoas do lado de dentro. — Eles... eles estão nos esperando! — gritou.

Batimentos cardíacos lentos. Olhos cansados. O sentimento contraditório de que estavam correndo muito rápido e ao mesmo tempo muito devagar. Algo devidamente estranho estava acontecendo. Foi parecido quando Lucy bebeu uma garrafa quase inteira de Ayahuasca, mas desta vez se tratava da fumaça tentando entrar em seus pulmões.

Claire viu a porta do elevador com a sua pequena lâmpada a balançar. Thomas, Bethany e Chariot estavam lá dentro, e a plataforma parecia estar se movendo. Por que eles estavam subindo?

— E... espere! — gritou a ruiva, com pouca força em seus lábios.

"Estão indo embora", afirmou a Leweis, que corria ao seu lado. Mas Claire Brassard ignorou aquele aviso. Ela simplesmente não conseguiria acreditar em uma hipótese tão absurda. É claro que Capucci não permitiria que uma coisa assim acontecesse. Ele era a pessoa mais próxima que Claire poderia chamar de melhor amigo.

As duas estavam quase chegando — quinze metros de distância, eu diria — quando as grades ao redor do pequeno elevador foram fechadas por completo. Lucy e Claire observaram com clareza o momento em que Thomas virou o seu rosto para a parede e ignorou aquela situação por completo. Mesmo assim, elas continuaram correndo.

Do lado oposto daquela perspectiva, Bethany grudou as mãos na grade. Thomas, porém, não tentou empurrar a porta do compartimento, quebrar as correntes e nem interromper a subida. Ele não fez nada. E enquanto se afastavam do subsolo, os três puderam ouvir as vozes daquelas garotas pedindo que voltassem.

"Vamos encontrá-las. Elas vão ficar bem", Capucci sussurrou no ouvido da Hayes, que estava em completo estado de choque. "Nós não podíamos mais esperar", prosseguiu.

30 de outubro. Manhã.

Chariot estava parada em frente à janela do salão de jantar. Encarava o lado de fora como se Lucy Leweis e Claire Brassard tivessem alguma chance de agarrar-se inesperadamente à beirada daquele abismo e serem salvas.

Mas elas não vieram. Chariot também esperou atrás da última porta do quiosque por um tempo, e ninguém apareceu. Era angustiante pensar que aquelas duas garotas continuavam presas lá embaixo e ninguém faria nada para resgatá-las — do mesmo jeito que ela passou os últimos seis dias.

Ao menos estava indo para casa agora. Chariot Green seguiria por aquele caminho junto com os outros dois sobreviventes e eles encontrariam abrigo no condado.

Os explosivos já haviam sido organizados do lado de fora por Thomas Capucci. Ele os colocou perto do rochedo, a uma distância suficiente para que não causassem nenhum dano aos trilhos ou ao veículo. Tudo o que precisava ser feito agora era acionar a alavanca na cabine do maquinista, enguiçar os motores e esperar que a viagem começasse.

— Chariot, nós temos que ir. — Capucci interrompeu os pensamentos esperançosos da pequena garota ao tocar em seu ombro. Ele tentou utilizar a linguagem de sinais para acompanhar a fala. — Não podemos esperar mais. Preciso que me ajude com o maquinário, vamos colocar essa coisa para se movimentar. Estamos partindo.

"Estamos partindo". Foi nesse momento, eu diria, que Claire e Lucy foram esquecidas para todo o sempre. Deixaram de fazer parte do trem para Barrymore, e tudo por conta de uma decisão precipitada. Exagerada. Humana. Você pode chamar como quiser. Tudo o que importa é que Bethany, Thomas e Chariot tinham um destino agora. E ninguém poderia tirar isso deles.

O homem caminhou até o quiosque, onde as cadeiras continuavam jogadas no chão. Um enorme peso havia sido tirado de seus ombros. Aproximou-se de um disco de vinil que ficava próximo ao balcão das bebidas, depois agarrou o primeiro disco de melodia que encontrou debaixo da plataforma — uma canção diferente da que estavam acostumados a ouvir no salão de jantar — e a pôs para tocar.

Mais tarde, foi até o balcão e se deparou com as duas taças prometidas pela garota lá embaixo. Estava realmente acontecendo. Ele segurou os dois recipientes por um momento e, com um sorriso engraçado, os trocou de lugar. "Só para o caso de que algum deles esteja envenenado", Thomas pensou, com o seu humor sofisticado.

— Imaginei que o encontraria aqui. — Bethany passou pela porta sem que ele percebesse.

— Aceitaria me acompanhar em uma última dança, srta. Hayes? — Capucci estendeu a sua mão.

Os dois se encararam por alguns momentos. O quão ardiloso precisaria ser o destino para que dois passageiros como eles chegassem até ali? Me faço esta mesma pergunta todos os dias, além de mais um milhão de outras coisas.

Me pergunto o que Thomas pensou enquanto olhava para aquela garota com o vestido ensanguentado e os cabelos caindo sobre seus olhos. Talvez ele tenha pensado em amor. Ou dor, ou calmaria. Eu nunca poderia saber. Nem você, e provavelmente nenhum deles dois sabia o que estava sentindo naquela hora.

Mas sentiam algo. E, se sentiam, por que não deveriam agarrar esse sentimento? Agarrar para nunca, nunca, nunca mais soltar. Nem mesmo se aquele trem parasse agora mesmo, e as suas cabeças fossem cortadas. Não solte nunca mais, Passageiro Número Dois.

Não solte nunca mais, Thomas. Por favor, não solte Bethany nunca mais.

Thomas agarrou o corpo dela. Depois sentiu que estavam sendo levemente balançados de um lado para o outro, quando a explosão aconteceu. No momento seguinte, um solavanco indicando que o trem estava finalmente em movimento. A melodia continuou tocando.

Pode ser que exista algo de interessante no amor, afinal. Mas apenas o fato de que aqueles dois passageiros existiram ao mesmo tempo, no mesmo cômodo e sentiam o mesmo um pelo outro... isso basta. Estavam em movimento, estavam vivos, estavam juntos. Iriam para Barrymore.

Nada importou naquelas frações de segundo. Ainda ardia em seus peitos o fato de que Suzan havia sido morta e que Lucy e Claire nunca voltaram para o trem a tempo. Mas, no fim de tudo, o que isso significava? Que deveriam morrer também, os dois? Ou que deveriam agarrar aquela chance e nunca mais soltá-la?

O trem precisa seguir. O trem sempre precisa seguir, Passageiro Número Dois, caso não tenha compreendido ainda. Foi por esse motivo que Thomas e Bethany agarraram seus copos e beberam até o último gole.

— Um brinde a quem restou. — disse o rapaz.

— A quem restou. — a garota repetiu.

Por mais tristes que estivessem, e quebrados, e amaldiçoados que fossem, se sentiram felizes. E dançaram. Viveram por alguns minutos a mais bela coreografia de suas vidas, com direito ao calor de suas mãos estendidas e o toque de seus lábios, que tremiam.

Capucci sentiu como se nada pudesse tirá-lo do caminho para uma vida boa e digna quando beijou Bethany. Por um só momento, ele não sentiu mais como se estivesse equilibrando-se sobre uma pista giratória ao lado de Nancy Doyle. Simplesmente soube que não existia pista alguma. E também não existia Nancy, ou a dança.

Tudo o que existia era Thomas Capucci e Bethany Hayes, as duas pessoas mais sortudas do mundo. Um homem em paz e uma garota que era quem sempre quis ser. E não precisava ser nada além disso.

Até que a velocidade começou a diminuir.

Thomas não soube se era o trem — o veículo parecia estar cada vez mais rápido, na verdade —, ou a música. Talvez fosse ele mesmo que estava se sentindo lento. Devagar. Pesado. E por que não o seu coração? Talvez estivesse parando.

— Thomas... — Bethany exclamou entre suspiros.

Ele ergueu os olhos e finalmente percebeu. Não era o seu coração que estava parando, era o de Bethany. As olheiras fundas no rosto da menina também expuseram a palidez e o suor congelante, escorregando pela bochecha. Ela estava apavorada, mesmo que não tivesse motivo para estar. Por que ela parecia tão assustada quando não havia nada para temer?

Bethany, por que você está assustada? Eu realmente gostaria que me respondesse. De uma forma infeliz, ela não disse uma palavra. Thomas talvez não tenha tido coragem de perguntar, e eu o perdoo. Porque ficaria assustado da mesma forma.

Quando Bethany tentou falar, acabou expulsando uma espuma de cor branca para fora de seus lábios. O seu corpo inteiro tremia incessantemente, e Thomas não soube o que fazer.

A dança seguiu.

Bethany começou a despencar como se não houvesse mais vida dentro dela, embora o seu olhar amedrontado mostrasse o contrário. E Thomas não dizia nada — a sua boca estava presa por um esparadrapo imaginário que ele mesmo criou. O rapaz segurou os braços da moça até que os dedos dela não tivessem mais como estar grudados aos seus.

Thomas deixou que o próprio corpo caísse junto ao de Bethany. E ficaram os dois, em cima do carpete vermelho vinho e debaixo daquela música, grudados um ao outro. Amarrados. Quase como se o tempo não pudesse mais separá-los.

As lágrimas do homem não conseguiram sair a tempo. Assim, pelo menos, Capucci teve a chance de encará-la nos olhos até o instante em que seu coração parou de bater. Isso aconteceu um pouco depois que a pele fervente da menina se acalmou, e que a tremedeira foi embora.

Ela estava paralisada agora. Corroída por uma dança que não a levaria a lugar nenhum. Ou por um amor que não teve como salvá-la, quem sabe. E Thomas dançava sozinho. O que interessava era que agora não estava em uma pista giratória, mas em um trem que se movia muito rápido.

"O Anfitrião deseja saber: quando finalmente souberem quem é você, vai deixar de sentir como se tivesse a vida de outra pessoa?"

O corpo de Bethany continuava esfriando no colo dele.

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