Trem para Barrymore [CONCLUÍD...

By LuckVianna

12K 885 4.5K

VENCEDOR DO GRANDE PRÊMIO - WATTYS 2023 🎖 "Não pode ser coincidência que nossos destinos tenham se cruzado j... More

Prólogo - "Embarque"
Capítulo 1 - "Do outro lado, o que há?" • Parte 1
Capítulo 2 - "Do outro lado, o que há?" • Parte 2
Capítulo 3 - "Cartas ao limbo"
Capítulo 4 - "Borboletas de lugar nenhum"
Capítulo 5 - "Entranhas do desconhecido"
Capítulo 6 - "Criminosos a bordo"
Capítulo 7 - "O sumiço dos girassóis"
Capítulo 9 - "Fim do mundo à meia-noite"
Capítulo 10 - "Trem fantasma"
Capítulo 11 - "Anjo das duas faces"
Capítulo 12 - "Jantar dos esquecidos"
Capítulo 13 - "Brindamos ao abismo"
Capítulo 14 - "Últimas horas antes do fim da linha"
"Páginas não lidas do Diário Montgomery" • Parte 1
"Páginas não lidas do Diário Montgomery" • Parte 2
Capítulo 15 - "Não há nada do outro lado"
Epílogo - "Desembarque"

Capítulo 8 - "Nunca subestime a tempestade"

347 34 278
By LuckVianna

QUATRO ANOS ATRÁS

Já havia alguns minutos que o trem estava parado no meio dos trilhos quando Claire Brassard se dirigiu à janela principal. Enxugava o rosto com muita frequência.

— Algum problema, senhorita? — um homem de gravata solta e chapéu se aproximou com educação.

— Não. Problema algum. — Claire suspirou, virando-se para ele com um sorriso. A sua pele estava avermelhada e isso parecia preocupá-la. — A temperatura elevou-se drasticamente aqui dentro do trem. Não acha? — então olhou para a janela de novo. — Deve ser essa tempestade. Vai começar a chover daqui a pouco. Veja como as nuvens estão escuras...

— É. Deve ser por conta da chuva lá fora, com certeza. — o homem argumentou.

— Me lembro da capital, na semana passada. Permanecer dentro daqueles edifícios sufocantes durante a chuva me fazia querer gritar. Não gosto do mormaço da cidade nos dias úmidos. — explicou ela.

— Fique calma. Volte para a sua cabine e tome um ar na janela. A brisa do caminho, ao contrário da parte interna dos vagões, é refrescante demais. — ele sorriu. Seus olhos carregavam olheiras e os cabelos estavam desgrenhados.

— Obrigada. Farei isso. — a garota confirmou com a cabeça e depois tocou o ombro dele de forma inofensiva. — Sou Claire, a propósito.

— Thomas Capucci. É um prazer. — ele estendeu a mão. — Será que temos o mesmo destino, Claire, ou seremos colegas de viagem temporários?

— Bem, o meu destino é... — a jovem foi interrompida pela chegada de uma terceira pessoa.

Essa, por sua vez, tinha cachos negros e uma boina sobre a cabeça. Olhou para os dois viajantes com alegria nos lábios e, guardando o livro que carregava em suas mãos, puxou assunto.

— Está uma noite adorável lá fora. Não está? — Olivia Armstrong entrelaçou os próprios dedos e observou a ventania no lado externo. Em poucos instantes, a chuva começou a cair sobre o teto do vagão. — Gosto de grandes tempestades porque me trazem inspiração artística. Espero poder aproveitar uma dessas novamente um dia, com mais tempo para apreciá-la.

A atmosfera agradável construída entre os três passageiros foi violentamente abatida por uma discussão perto deles.

— As pessoas estão ficando preocupadas. O que será que está acontecendo? — Thomas virou-se para o outro lado.

— Ora, por que não aproveitamos a brisa noturna e a imprevisibilidade desta viagem? — sugeriu Olivia. — Tenho certeza de que é apenas culpa de um imprevisto.

— É. Um imprevisto... — Claire murmurou.

ATUALMENTE

O corpo de Olivia Armstrong ainda estava na saleta estreita do corredor — ninguém a tocou, ninguém havia tirado-a de lá. Seus olhos petrificados em um poço de desesperança continuavam apreciando o teto escuro daquele cômodo.

No salão de jantar, que era cercado pelas enormes janelas com vista para a tempestade violenta do lado de fora, encaravam-se os nove viajantes que sobraram, incluindo o bilheteiro. Nove — dos quinze que haviam embarcado no primeiro dia.

Claire Brassard, com uma vermelhidão incomum em seu rosto e a água da chuva ainda presa aos cabelos, encarava o ex-policial sem dizer uma palavra. Na frente dela, Dominic e Austin faziam o mesmo. Bethany, roendo as unhas em nervosismo, não teve tempo de sair daquele vagão antes que o homem chegasse com aquela notícia intimidadora, mas ela queria ter feito isso. Depois dela, Sophie Stewart e os dois saqueadores, escorados à janela. O último era o bilheteiro, que mantinha o mesmo semblante desde que adentrou o salão.

— Algum de vocês pretende dizer alguma coisa? Porque seria melhor se começássemos a falar. — Capucci jogou no chão o próprio chapéu e caminhou até o centro do vagão.

— Ora, ora. Meus parabéns, Sherlock! Encontrou o pote de ouro no fim do arco-íris. — satirizou Charles, com as mãos sobre o ferimento no abdômen, que vez ou outra ainda ardia feito veneno. — Só não se esqueça que, se isso é uma revelação dos culpados, você também está entre eles.

— Como... como é possível? — Austin arriscou, com certa sensibilidade.

— Charles está certo: eu estava naquele trem também. — explicou Thomas, encarando-os. — Todos nós, afinal. Me dei conta disso quando Claire tocou o meu ombro, mais cedo, e a ação me pareceu exatamente idêntica a algo que já havia ocorrido. Foi nesse momento que percebi: conhecia todos vocês de algum lugar. É claro! Estávamos lá. Todos nós. Absolutamente todos nós!

— E agora estamos todos aqui... — murmurou Bethany.

— Exato. E não soa irônico, srta. Hayes? Que tenhamos realmente pensado, digo, cada um de nós, que subiríamos neste mesmo trem e ninguém nos reconheceria? — Thomas expulsou da garganta um riso descontrolado. — Bem, não me parece tão utópico assim. Afinal, cada um de nós teve a mesma ideia.

— Não me lembro do rosto de vocês. É claro. Então... pensei que ninguém saberia. — acrescentou Dominic. — Mas agora eu entendo. É por isso que ninguém disse nada quando descobri sobre as passagens datadas em quatro anos atrás. Porque todos vocês também sabiam do que se tratava.

— Bem, se esse for o veredito, não é justo que culpemos ninguém. Não ainda. Porque no momento em que admitimos que estávamos juntos naquele cenário, voltamos à estaca zero: ninguém é mais ou menos suspeito aqui. — disse Claire, decididamente. — Sendo assim, deveríamos focar no que temos em mãos. Estivemos fingindo não saber do que se tratava cada uma daquelas cartas, fotografias e ameaças. Mas sabíamos desde o início que alguém estava nos perseguindo pelo que fizemos!

— E isso me faz pensar em uma coisa... — Thomas voltou a falar. — Seria muita coincidência, até demais, que treze passageiros tenham embarcado no mesmo trem exatamente quatro anos depois de uma tragédia. E pasmem: com o mesmo destino! — ele gargalhou. — Então, eu pergunto: o que é que vocês pretendiam fazer em Barrymore? Quem... quem são vocês? Precisamos ter a certeza. Chega de mentiras! Devemos checar os passaportes de cada passageiro deste trem. Os documentos, comprovações, álibis...

O silêncio, outra vez, foi absoluto. Porque a resposta que dariam implicaria diretamente nos segredos que estavam guardando desde a primeira noite.

Um raio atingiu as proximidades do trem, fazendo com que o clarão imediatamente tomasse a atenção do grupo. Isso dissipou a possibilidade de que se mantivessem presos àquele raciocínio. O lustre balançava como se fosse desabar sobre suas cabeças.

— Esqueçam tudo isso. Esqueçam tudo! Não devemos checar os passaportes. Nada disso! — Bethany subiu em cima de uma das cadeiras do salão. — Não percebem? Nós vamos todos morrer. É isso o que vai acontecer se continuarmos aqui dentro. Precisamos deixar este trem o mais rápido possível.

— E cruzar aquela floresta durante uma tempestade? Nem pensar, Bethany. — Thomas estendeu a mão a ela, esperando que a garota saísse de lá. Mas a oferta foi recusada. — Escutem aqui, todos vocês! — ele virou-se para os demais. — Vamos sobreviver a isso se continuarmos juntos durante esta noite. Se alguém não concorda com isso, eu sinto muito. Mas é o melhor que podemos fazer! Afinal, não há como contornarmos essa situação enquanto o mundo lá fora está desabando. Esperaremos a tempestade passar e...

— Dane-se. Danem-se todos vocês! — Bethany saiu de perto do restante. — Vou arrumar as minhas coisas e darei o fora daqui na primeira oportunidade que tiver.

Ela cruzou o corredor e deixou o discurso de Thomas para trás. Sobraram oito pessoas no vagão.

27 de outubro. Noite.

Claire esticou seus pés debaixo da mesa e levou os fones até o ouvido. Quando virou a cabeça para o lado, pôde avistar o abismo interminável que os observava. Ele ainda estava lá, mastigando-os a cada pouco, torcendo para que aquela pequena máquina sobre rodas deslizasse a qualquer momento e ceifasse nove vidas de uma só vez.

— Saudades da metrópole, senhorita? — o bilheteiro sentou-se no assento oposto ao da ruiva.

Os dois encararam a janela. A chuva já caía há um bom tempo e, vagarosamente, seus ouvidos começavam a se acostumar com o barulho incessante.

— Não muito. Era turbulenta e sem graça, embora os dias de chuva valessem à pena. — comentou ela, sem tirar os olhos da paisagem assustadora. — Tem alguma coisa especial em dias de chuva. Você não acha? Exceto quando se precisa ficar preso em um prédio sufocante.

— O que é, exatamente? — rebateu.

— Bom, as pessoas geralmente se sentem irritadas na cidade grande. O clima estressante, o trabalho... — Claire suspirou, levando o olhar até o rapaz. A lâmpada em cima de suas cabeças piscava vez ou outra. — Em dias de chuva, porém, é um pouco diferente. É um acontecimento que quebra o padrão da ganância humana, não é? Porque todos aqueles vultos apressados andando pelas calçadas e edifícios de repente têm alguma coisa em comum para se preocupar: a chuva. Ninguém quer ter seus sapatos encharcados, então aguardam em conjunto debaixo dos enormes outdoors. Percebe? São coisas que não acontecem o tempo todo.

— São belas palavras sobre os tempos em que vivemos, srta. Brassard. — ele sorriu com certa estranheza. — No entanto, não acho que isso se aplique à nossa situação... As pessoas neste trem estão enlouquecendo. Teremos sorte de passar por esta noite ilesos.

— Evidentemente. — ela respondeu. — Desculpe se isso parecer uma mudança brusca no assunto. Mas... como é que você veio parar aqui? — indagou a ruiva, espremendo os olhos. — No segundo dia desta viagem, eu e Capucci recolhemos algumas informações de cada um dos passageiros. Mas não me lembro de termos ouvido alguma coisa sair da sua boca.

— Então você deve ter uma memória muito curta. — disse. — Na primeira noite, quando todos vocês sentiram-se ameaçados pela situação, fui eu quem tentou contornar os acontecimentos. Não se lembra disso, Brassard? Eu disse quem eu era: um simples funcionário novato.

— Certo... — respondeu a jovem, com certa desconfiança.

Os dois continuaram presos à atmosfera tensionada de um entreolhar suspeito. E enquanto isso, não tão longe daquele vagão, Thomas Capucci e Sophie Stewart preparavam-se para adentrar mais uma vez o estreito banheiro do corredor frontal. Eram os únicos no trem que ainda tinham estômago para encarar aquilo.

Os dois olharam para o cenário desolador como se precisassem entender o que aconteceu. Não tão somente porque aquele era mais um assassinato em pouquíssimo tempo, mas pela seguinte sequência de fatos, Passageiro Número Dois:

Naquela manhã, Olivia Armstrong havia feito a promessa de que teria uma resposta no final do dia. Um pouco antes do anoitecer, porém, o seu corpo era colocado em uma banheira e a sua honra arrancada com tamanha violência. Estava claro! Tão claro...

Só havia um significado possível:

Ela descobriu alguma coisa. — sussurrou Sophie, observando a cena do crime.

— O que disse? — Capucci a encarou sob a iluminação dos trovões lá fora.

— Ollie deve ter descoberto alguma coisa, por isso foi esquartejada nesta banheira. Não percebe? O único motivo para que ela, justamente a pessoa que tinha a próxima pista em mãos, tenha sido a vítima da vez, é o fato de ela ter confirmado a própria teoria. Alguém quis calar a boca dela! — argumentou a garota, com entusiasmo.

— Eu estou gostando dessa hipótese, Sophie, mas não faz tanto sentido. — o homem passou a mãos pelos cabelos bagunçados enquanto averiguava a cena. — Atente-se aos fatos: a pista que Ollie tinha em mãos foi deixada nesta manhã no salão de jantar, pelo Contador de Histórias. Então por que o Contador de Histórias tentaria impedir que a sua própria charada fosse desvendada, algumas horas mais tarde?

— Tenho uma hipótese. Mas prefiro guardá-la para depois. — Sophie expulsou um suspiro descontente e abaixou-se perto da banheira, encarando o cadáver mais de perto.

A jovem observou as marcas no peitoral da vítima e depois atentou-se ao pedaço de papel em sua mão — estava em branco, é claro. Era óbvio para os dois passageiros que aquilo tudo era uma pequena releitura do quadro A Morte de Marat, obra que havia definido a ascensão e o fracasso de Olivia Armstrong naquele dia. Nessa lógica, o papel que carregava não teria outra função senão complementar a representação fiel e sangrenta de uma pintura antiga.

— Armstrong, você me parecia alguém tão inteligente... — a Stewart espremeu as sobrancelhas e arrastou os olhos por cada centímetro do cadáver. — Não pode ter sido levada sem deixar um norte. Sei que deve ter alguma coisa...

"Implícita". Essa seria a próxima palavra proferida pela Stewart, caso não tivessem sido, ela e o rapaz, surpreendidos por um apagão repentino. Todas as luzes que compunham os corredores foram desligadas sem aviso prévio. O acontecimento acompanhou o barulho mórbido de outro raio sendo dissipado ali perto.

— Vamos voltar para o salão de jantar. Agora. — afirmou Capucci, um pouco antes de ultrapassar a porta.

Quando dirigiram-se ao salão, encontraram uma atmosfera que pendia entre o preto da escuridão e o violeta proporcionado pelos relâmpagos. Claire foi a primeira pessoa com quem esbarraram. Ela caminhou até eles com certo nervosismo.

— O que aconteceu? — perguntou o rapaz.

— Não acredito que alguém tenha desativado a energia do trem inteiro. Com certeza foi um apagão, desta vez. A tempestade está piorando lá fora. — explicou ela, ligeiramente. — E eu não acho que seja uma boa ideia passarmos a noite no escuro, Thomas. Um assassino à solta é terrível, mas um assassino invisível à solta é muito pior.

— Você tem razão. Vamos fazer com que ninguém fique sozinho por muito tempo. Além disso, precisamos de iluminação. — Capucci fez um sinal com a mão e convocou Austin, que estava perto da janela, até eles. — Você e Dominic podem buscar as lamparinas que estão na despensa?

— É claro. — Austin se retirou.

— Vou procurar por Lucille e Bourregard e trazê-los para cá. Volto já. — Sophie foi a próxima a se afastar.

— Acham que sobreviverão a esta noite? — uma voz repentina chamou a atenção de Claire e Capucci antes que eles saíssem do corredor.

Era o bilheteiro. O sujeito estava sentado perto da primeira mesa de refeições, com as pernas cruzadas e o olhar voltado à janela. Seu chapéu azul escuro cobria parte da face.

— Como é? — Capucci levou os braços até a cintura.

— Perguntei se acham que sobreviverão a esta noite. — ele os encarou. — Não quero ser pessimista, só acho que deveriam prestar atenção. Conseguem ouvir? — ele espremeu os olhos e sinalizou para que fizessem silêncio. — São rangidos.

— Do que está falando? — Claire questionou.

— Só estou tentando expôr a situação, senhores. Estamos dentro de uma locomotiva em condições medianas, equilibrada sobre a beirada de um enorme abismo. Os rangidos são por conta da ventania, que não teria tanta dificuldade para empurrar este veículo ladeira abaixo, caso as massas de ar intensifiquem-se no momento certo. — explicou. — Além disso, se olharem para esse lado — o rapaz apontou para a janela por meio da qual era visível a floresta depois dos trilhos. — perceberão que as árvores no morro não dariam conta de impedir um deslizamento a qualquer instante.

— É uma bela perspectiva. Mas isso não vai acontecer. — Capucci deixou um riso escapar e então se afastou. — É só uma tempestade. Preocupe-se em não ser esquartejado até o final da madrugada.

Nunca subestime a tempestade... — murmurou.

Claire e Thomas se afastaram do sujeito. Em seguida, o homem fez um pedido à ruiva para que ficasse por perto naquela noite. Segundo ele, alguma coisa no bilheteiro era uma "incógnita perigosa" — em outras palavras, Thomas o tinha como principal suspeito.

Caminhando até a saída do vagão, Capucci deparou-se com a figura inesperada de Bethany Hayes. A garota parecia eufórica, embora não tivesse tanta semelhança com a jovem raivosa que deixou o salão horas atrás e prometeu que sairia do trem em breve.

— Vai a algum lugar? — perguntou.

— Só estou tentando não ficar parada por muito tempo. Não gosto do barulho dos trovões. Me deixam ansiosa. — afirmou ela, com os braços cruzados.

— Nesse caso, Beth, se importa em me ajudar com uma coisa? Preciso ir até a minha cabine. — sugeriu ele.

"Beth". Desde quando você me chama assim? — a Hayes arqueou as sobrancelhas.

— Se incomoda? — ele recuou.

— Eu detesto apelidos. Mas vou dar uma chance a você dessa vez, detetive. — Bethany passou por ele e adentrou a penumbra do próximo vagão. — Anda logo. Não vou esperar por você se um raio partir este trem ao meio.

Sendo assim, nesse exato momento, Claire Brassard era a única pessoa fazendo companhia ao bilheteiro no salão de jantar.

A uma distância significativa dali, Austin e Dominic caminhavam sozinhos no escuro. Já haviam verificado a despensa próxima ao salão de jantar — não havia nada lá — e agora se aproximavam de uma prateleira empoeirada, logo depois do vagão do quiosque.

— Então... — Austin esfregava a mão pela própria nuca enquanto observava o amigo. — Você tem pensado sobre o que Bethany disse?

Dominic dobrou os joelhos e encarou o amontoado de velharias dentro do armário. Afastou-se quando a poeira o fez querer espirrar.

— Encontrei as lamparinas. — disse ele. — Ah, você está falando sobre tentarmos a sorte naquela floresta escura para procurar ajuda? Eu passo. — ele carregou duas das lamparinas até a superfície mais próxima que encontrou e começou a retirar a poeira de cima delas.

— Não é bem assim. É que... parece horrível quando você fala. — o garoto se aproximou dos objetos. — Sabe como acendê-las?

— Porque é uma ideia horrível. Eu entendo que ficar aqui não é o mais seguro a se fazer, Austin, mas não sobreviveríamos lá fora. Você sabe disso. — Dominic suspirou. — Não. Eu não sei como acendê-las.

— Precisa usar querosene. Espere um pouco. — Austin caminhou até a prateleira outra vez. Procurando um pouco, encontrou um recipiente de metal e uma pequena caixa de fósforos. O menino também avistou um pequeno objeto cilíndrico diferente dos outros equipamentos, mas não deu muita importância a ele. — Aqui, toma. Precisa encharcar o pavio com o líquido se quiser que funcione. — ele se debruçou sobre a superfície e começou a manusear uma das lamparinas. — Enfim, por que acha que eu não daria conta? Posso correr tão rápido quanto você, eu aposto.

— Obrigado. — Dominic apanhou os fósforos e sorriu. — Não é isso, Austin. Tenho certeza de que sobreviveria mais tempo que eu, a propósito...

— Não seja modesto. — respondeu o outro.

— É só que... não acho que deveríamos nos arriscar. — concluiu ele.

— Dominic... — insistiu.

— Eu não suportaria olhar para o seu cadáver e saber que o seu nome é o próximo a ser riscado daquela lista. — os olhos escuros do Cooper fitavam o outro menino com certa paralisia, como se ele não fosse mais voltar a se mexer.

Austin engoliu em seco e desviou o olhar brevemente. Os dois permaneceram submetidos a um silêncio desgastante enquanto Dominic terminava de preparar as lamparinas.

— Acho que consegui. Vamos levar isso até o... — o rapaz de cabelos castanhos foi surpreendido pelo barulho da porta do vagão anterior sendo arrastada.

— Nic. — sussurrou Austin.

Sob a penumbra da noite, os dois puderam identificar uma silhueta parada em frente à passagem que interligava os vagões. O jeito como estava paralisado deixava explícito a ideia de que o sujeito não estava ali há pouco tempo — provavelmente os observava desde que chegaram.

— Quem é você? — o Cooper agarrou a lamparina e começou a caminhar naquela direção. A silhueta se afastou da passagem em seguida.

— Espera, Nic! — Austin agarrou o outro dispositivo. — Merda. É perigoso!

Dominic Cooper não deu a mínima. Quando cruzou a passagem com a lamparina em mãos, porém, percebeu que não havia ninguém no vagão do quiosque. As janelas estavam abertas e a tempestade adentrava furiosamente o corredor.

— Quem foi que fez isso? — gritou ele, caminhando até o final do corredor. — Foi embora. Acha que estava nos observando desde que chegamos?

— É possível. Anda, me ajude com isso. — Austin caminhou até a primeira janela e bloqueou a passagem que dava espaço à chuva. Seus cabelos já estavam cobertos com a água a essa altura.

— Espera! — Dominic tocou o ombro dele. Imediatamente o loiro virou-se para o outro rapaz, que fez sinal para que ele continuasse em silêncio. — Está voltando.

Nic apontou para a próxima passagem. A penumbra era vagamente perfurada por um ponto de luz no meio da escuridão, uma lamparina — alguém estava se aproximando.

— Hey! — gritou Austin. Diferente do receio que sentiu há pouco, agora o jovem McCarty caminhava decididamente na direção da iluminação.

— O que está fazendo, Austin? Volte aqui! — Dominic correu até ele e segurou seu braço. — Acabou de me dizer que ficar aqui era perigoso e agora pretende ir atrás de uma luz misteriosa?

— É, porque pensei que estivéssemos em perigo. Mas está claro que, seja lá quem fosse, se escondeu assim que o vimos. — Austin se soltou das mãos do outro. — Não devíamos estar com medo de alguém que tem medo de nós.

Com um toque violento, Austin escancarou a porta do vagão seguinte. Encarou por um momento o próximo corredor com os olhos arregalados e o coração em disparada. A sensação desapareceu gradativamente, ao passo que os seus olhos se acostumavam com a escuridão.

— Não há ninguém, outra vez. — suspirou. Austin virou-se para Dominic em seguida. — Está vendo? Alguém está tentando chamar a nossa atenção. Quer que sigamos o seu rastro até... — a voz do McCarty foi vedada violentamente.

Um objeto pontiagudo perfurou o ombro direito de Austin. Ele não teve tempo de virar-se por completo antes de ser atingido, mas ambos os rapazes identificaram uma mão humana, coberta por uma luva negra, como responsável pelo ataque.

— Austin! — Dominic agiu rápido. Ele puxou o corpo do amigo para si e colocou o seu contra a porta, bloqueando a passagem depois que o sujeito desconhecido já havia se esgueirado para o escuro novamente.

— O que... o que... — Austin encarava o ferimento em seu ombro com certa palidez no rosto. O choque decorrente do susto e a visão de todo aquele sangue escorrendo fizeram com que o seu fôlego se esvaísse.

Ele perdeu as forças momentaneamente, mas Dominic o segurou antes que caísse no chão e o ajudou a apoiar-se sobre o balcão do quiosque. De repente, os dois identificaram um barulho na porta: alguém estava tentando ultrapassá-la.

— Temos... temos que sair... — murmurava o loiro, tomado pela adrenalina.

— Acalme-se. Você não vai conseguir ir a lugar nenhum com essa coisa no ombro. — Nic encarou o objeto preso à pele de Austin. Era uma espécie de espeto metálico. — Austin, nós... precisamos tirar isso de você.

— Então... — ele engoliu em seco. — Então faça! Não me importo se isso vai doer. Tire de uma vez! — gritou.

Dominic, sem ter outra escolha, limpou o suor que banhava o próprio rosto e depois se dedicou ao ferimento: não seria fácil proceder sem ajuda, e ele absolutamente não sabia o que estava fazendo. Embora também soubesse que Austin continuaria sentindo dor até que aquele objeto fosse retirado de sua pele.

Um.
Dois...

Austin mordeu as bordas do seu casaco, inibindo o grito de agonia. Dominic largou o metal sobre a bancada, depois retirou do próprio corpo o sobretudo que vestia. Com os dedos trêmulos, esticou a manga da camisa e arrancou um pedaço do tecido. Amarrou-o em torno do ferimento do garoto e pediu que ele o pressionasse.

— Vai ficar sem casacos se continuar usando-os para ajudar pessoas feridas. — um riso abafado percorreu os lábios de Austin. — O que... o que fazemos agora? — ele desviava o olhar o tempo todo, desacreditando da sua condição.

— Espera. — Dominic encarou a porta novamente. A maçaneta seria quebrada dentro de uma dezena de segundos, quisessem eles ou não. — A bancada. Rápido!

O Cooper ajudou Austin a passar pelo quiosque e se certificou de que ele estava protegido atrás da estrutura. Depois disso, jogou o próprio corpo para o outro lado e sentou-se do lado dele. Só então se deu conta de que deveria ter apanhado o objeto pontiagudo. Agora era tarde demais.

— Faça silêncio. — Nic levou a mão até os lábios do outro, impedindo que os seus suspiros de dor causassem a morte da dupla.

A porta foi aberta.

Os meninos permaneceram quietos atrás da bancada. Dali podiam ouvir os passos vagarosos sobre o carpete úmido. O sujeito parecia estar farejando a agonia que aqueles meninos exalavam. Além disso, a essa altura já devia ter percebido as gotas de sangue no chão.

Austin respirava de forma ofegante. Com a mão esquerda, pressionava o próprio ombro. Dominic estava tão perto do outro menino que podia identificar o seu batimento cardíaco acelerado. Podia também perceber que Austin não estava tremendo somente por conta do frio ou pelo ferimento em seu braço, mas por conta do medo. O medo legítimo, incontrolável.

Passaram-se exatamente mais vinte e três segundos. Cooper havia iniciado a contagem mentalmente quando percebeu que, caso ele não conseguisse controlar a si mesmo, acabaria fazendo com que os dois fossem mortos. A ansiedade por estarem presos naquele lugar o deixava com tanto medo quanto o rapaz ferido.

O silêncio súbito — com exceção da tempestade violenta lá fora, é claro —, de repente deu espaço ao barulho de um ato violento: soava como um objeto de vidro se quebrando. Imediatamente depois disso, os passos.

Está indo embora... — Dominic sussurrou para Austin, assustado.

O Cooper levantou-se e observou o cenário: não havia ninguém. Quando passou pela bancada outra vez, se deu conta de que o barulho que escutaram pertencia às duas lamparinas sendo quebradas. Os cacos de vidro estavam no chão, e uma fina e frágil fumaça indicava que o fogo havia se apagado com a chuva que ainda entrava pela janela. O espeto metálico também foi levado.

— Porcaria. Sabotaram a nossa única forma de iluminação, Dominic! — Austin retirou os cabelos molhados dos olhos.

— Não está realmente preocupado com isso, está? — Dominic chegou mais perto dele. — Pelo menos você está vivo. Vem, vamos voltar até o salão de jantar e talvez procurar por algumas ataduras. Tem certeza de que está bem agora?

— Tenho. Obrigado. — Austin suspirou aliviado. Sem deixar de pressionar o ferimento, ele se aproximou de Dominic e estendeu a mão. — Não quero que se afaste outra vez.

Os dois precisaram de um tempo até que criassem coragem para voltar a caminhar pelos corredores escuros.

Longe dali, Bethany e Thomas adentravam a cabine do rapaz à procura de alguma coisa — o homem não se deu ao trabalho de contar à garota o motivo.

— Preciso perguntar, Beth: ainda está pensando em deixar este trem no meio da noite? — disparou ele.

— O quê? Do que você está falando? — em um primeiro momento, foi como se as palavras da passageira nunca tivessem existido. Bethany tinha essa particularidade: frequentemente ela se demonstrava alheia à realidade.

— Me refiro ao que você disse mais cedo. Saiu do vagão jurando que iria embora na primeira oportunidade. — Thomas continuou.

— Ah, é claro... — ela suspirou. — Não lido bem com esse tipo de situação, Thomas. Às vezes passo dos limites. Acho que falei mais do que deveria só porque estava com medo...

— Está aqui. — Thomas a interrompeu porque havia encontrado o que precisava. Ele caminhou até a escrivaninha ao lado da cama e agarrou uma lamparina. — Sabia que havia deixado-a no meu dormitório.

— Ah... okay. Viemos até aqui só porque queria buscar uma lamparina? — Bethany cruzou os braços, incomodada.

— Não exatamente. Também precisava checar uma outra coisa. — o rapaz entregou o objeto à Hayes e se dirigiu até o armário do outro lado. Ao puxar a maçaneta da primeira gaveta, porém, Thomas teve uma surpresa. Um breve arrepio percorreu o seu corpo. — Não... não está aqui.

— O que não está aí? — Bethany aproximou-se.

— O revólver! — gritou ele, ao empurrar a gaveta com força. — A porra do revólver não está aqui. Eu o escondi no meu dormitório depois de tê-lo tomado do Bourregard porque não queria correr o risco de deixar alguém utilizá-lo.

— Fique calmo. Alguém sabia que você o escondeu aqui? — questionou ela.

— Não. Ninguém sabia! Mas é possível que, se quisessem encontrá-lo, teriam procurado no meu quarto. Fui a última pessoa a ser vista com a arma em mãos. Droga, Beth... — Capucci passou a mão sobre os cabelos. — Estamos completamente no escuro e alguém no trem, neste exato momento, tem um revólver em mãos.

— Não podemos enlouquecer. Sabe disso. — disse ela, pousando a mão sobre o ombro do rapaz.

Vagarosamente, Thomas recuperou um ritmo cardíaco controlado. Sentou-se sobre a própria cama com os punhos apoiando o queixo e balançou a cabeça em negação. Os trovões do lado de fora não o deixavam pensar direito.

— Certo. Eu vou dar um minuto a você. — a garota se distanciou da porta da cabine e foi até o corredor.

Quando percebeu a ausência completa da Hayes, Thomas ajoelhou-se em cima do carpete do dormitório e aproximou as mãos do enorme pacote de cor preta debaixo de sua cama — havia trocado de lugar depois que Claire esteve em sua cabine. Os olhos esbugalhados entregavam a desordem mental que acompanhava o passageiro naquele instante.

Controlando a própria respiração, Thomas agarrou o tecido escuro e o trouxe até ele. O susto o abraçou no mesmo momento: a saca estava vazia. Seus lábios descolaram-se em um semblante de desespero, porque o cadáver de Nancy Doyle não estava mais lá.

Capucci esgueirou-se para longe da cama com as mãos atrás do corpo. Esfregou os olhos diversas vezes, mas não adiantou — não estava sonhando. E, ironicamente, o que mais o atordoava não era o fato de que perdeu a única lembrança de sua amada. Era a ideia de que agora alguém sabia sobre o quão doentio ele era por dentro.

— Thomas! Eu... eu acho que vai querer ver isso. — a voz de Bethany, que estava parada na porta novamente, tirou o rapaz de seus pensamentos obscuros.

— Eu estou indo. — ele engoliu em seco.

Os dois caminharam apressados até o corredor. Na janela do lado direito do trem — com vista para o abismo —, Bethany pediu que Capucci colocasse seus olhos bem perto do vidro.

— Não vejo nada. O que foi? — ele espremia as pálpebras.

— Espere... espere... — sussurrou a garota. — Veja, bem ali! — Bethany apontou com o dedo indicador.

Na paisagem, em meio à escuridão azulada que preenchia todo o cenário, existia um pequeno ponto de luz. Foi difícil identificá-lo sob a chuva prateada, mas estava lá. Quase inexistente, como se não quisesse ser encontrado.

— Não... não pode ser. — Thomas deu dois passos para trás. — Como é possível? Está vindo do fundo do abismo.

— Não entendo... — Bethany balançou a cabeça.

Intrigados com o detalhe peculiar, os dois passageiros chegaram a esquecer de dar atenção à parte interna do próprio trem. Foi só quando um relâmpago passou próximo da locomotiva que, durante poucos segundos, os dois puderam enxergar o reflexo do corredor.

Afastaram-se ligeiramente do vidro e olharam para trás. Na parede oposta, exatamente na porta da cabine de número cinco — a de Elliot Montgomery — uma terrível mensagem havia sido deixada. Letras produzidas com um sangue escuro e viscoso preenchiam a madeira.

— Tho... Thomas! — Bethany levou a mão até os lábios, impedindo a si mesma de gritar. — Minha nossa. Minha nossa! Todos vão querer saber disso.

A garota saiu correndo daquele vagão. A pequena chama da lamparina foi levada consigo, deixando para trás o rapaz desamparado. Assim, com os punhos cerrados e o nó da gravata o deixando sem ar, Thomas Capucci aproximou-se do recado na porta.

"Capítulo 8:
Vingança."

— Parece que o bilheteiro estava certo sobre a tempestade... — disse a si mesmo, com um suspiro desgastante. — E esta ainda vai ser uma longa noite.

O homem retirou-se do vagão em seguida e se encaminhou novamente para o salão de jantar. Feito isso, a primeira coisa que avistou foi a pequena — e única — lamparina deixada no centro do corredor. Perto da luz alaranjada, Bethany gesticulava entre suspiros de nervosismo enquanto contava a notícia a Claire.

A ruiva caminhou até Thomas, instantes depois.

— Bethany relatou o que encontraram. — ela abraçava o próprio corpo, protegendo-se da corrente de frio que ultrapassava o vagão.

— Qual parte? — Thomas levou as mãos até a cintura.

— O recado na porta da cabine. — Claire olhou em volta. E nesse momento, uma pequena gota de alívio invadiu o corpo de Capucci. Significava que não teriam de falar sobre o sumiço do revólver por enquanto. — "Vingança". Acha que é sobre... sobre a história que está sendo contada desde o início?

— Possivelmente. E há mais um detalhe: o sangue estava fresco, escorrendo sobre o chão. Quem quer que tenha feito isso, não foi há tanto tempo. Ao menos não antes de Olivia ser assassinada. — explicou ele.

— Você está bem? Parece preocupado. — Claire declarou.

— O que você acha, Claire? Estamos convivendo com um bando de mentirosos! — o homem aproximou-se dela com agressividade. No entanto, ao perceber a raiva fervendo sobre a própria pele, voltou à sua posição inicial e tentou controlar a respiração. — Me desculpe. Está sendo uma noite terrível.

— Para todos nós, Thomas. Venha, vamos nos juntar aos outros. — concluiu ela.

Os dois dirigiram-se até o restante do grupo. Ao redor da pequena luminosidade, outros cinco passageiros — Lucy, Charles, Sophie, Bethany e o bilheteiro — acomodavam-se. Não tinham o que fazer até que aquela madrugada maldita chegasse ao fim.

Por uma sequência de instantes, o barulho da chuva violenta era a única coisa que se ouvia. Foi assim até que alguém quebrasse o silêncio.

— Devíamos falar sobre os dois garotos que desapareceram há mais de quarenta minutos? — proclamou Bethany, encarando a chama da lamparina.

— Deixe-me adivinhar: estão mortos. — Charles sussurrou a última palavra sem tirar os olhos do ponto de luz, como o restante do grupo. — Assassinados pela mesma pessoa que deixou o recado na parede. Alguém que quer vingança porque uma criança idiota caiu daquele abismo.

— Você é nojento. — disse Sophie, repudiando-o. — Mas pelo menos alguém está falando sobre aquela criança. Quero dizer... — a moça pigarreou, com desconforto. — É um tanto óbvio: nós embarcamos neste trem uma vez e alguém foi morto. Nos tornamos cúmplices. Quatro anos depois, na mesma data, embarcamos no mesmo trem, com o mesmo destino, e somos caçados um por um.

— É isso. — Claire ergueu os olhos, observando o círculo de pessoas com uma ideia em mente. — É nessa parte que deveríamos começar.

— Começar o quê? — disse Lucille.

— A responder à pergunta que Thomas fez mais cedo. — exclamou. — Por que estávamos viajando para o condado de Barrymore, todos nós, neste mesmo dia? Por que estamos aqui? — questionou a ruiva, recebendo entreolhares de desaprovação.

— Achei que tivéssemos dito isso no primeiro dia, quando nos apresentamos, senhorita. — Charles se manifestou.

— Não. Estou falando sobre a verdade. Quem somos nós? Não me entenda mal, Bourregard, e isso não me tira da lista de suspeitos, mas a maioria de nós mentiu sobre tudo até a tarde de hoje. O que garante que não mentimos sobre o nosso destino também? — Brassard esperou que alguém tomasse a palavra.

— Bem, se querem tanto que isso se torne uma reunião sobre o nosso passado, eu começo. — Bethany chamou a atenção do restante do grupo ao puxar a lamparina para perto de si. Ela levou o cabelo para trás da orelha e, abraçando os próprios joelhos, respirou fundo. — Para falar a verdade, achei que alguém se lembraria...

— Lembraria de quê? — suplicou Claire.

— Do meu sobrenome. Foi notícia em uma enorme quantidade de tabloides naquela época, algum tempo atrás: o Caso Hayes. Os dois irmãos que foram mantidos em cativeiro pelos próprios pais, não tão longe daqui. — explicou ela, evitando olhar nos olhos do restante.

— Eu me lembro disso. Uma garota e um garoto que viviam no interior de Maryland... — Lucille relatou. — Os noticiários na metrópole só falavam disso por mais de três semanas inteiras.

"Da mesma maneira que os noticiários falavam dos roubos cometidos por Lucy Leweis e seus dois comparsas", você deve estar pensando, Passageiro Número Dois. E está certo.

Um estalo repentino pareceu ter percorrido os cinco outros passageiros. Recordavam-se vagamente de alguns jornais explorando a história de George e Suzan Hayes, as duas crianças que tiveram de escapar de seus próprios pais, em uma espécie de cativeiro no interior do condado de Maryland.

— Não entendo. Lembro-me do caso, mas, se estou correto, apenas o... — Charles preparava-se para concluir a frase quando Bethany o interrompeu.

— Sim. Somente o garoto sobreviveu. Suzan Hayes foi morta durante a fuga, não conseguiu encontrar a saída a tempo. Os pais foram levados para a prisão quando o relato do pequeno George finalmente chegou às autoridades. — Bethany voltou os olhos para o grupo. Com a retomada do fôlego em um ato de respiração profunda, ela continuou a explicação: — Eu sou George Hayes. Costumava ser, um dia.

— O quê? — surgiu em uníssono, como se estivessem, no mínimo, surpresos.

— Bem, pelo menos... foi quem eu pensei que fosse até descobrir a minha real identidade. — a Hayes construiu um pequeno sorriso espontâneo sob a angústia daquela situação. — Eu fui embora. Fugi para o mais longe possível e, com o tempo, deixei que as cicatrizes parassem de falar por si próprias. Eu... enterrei, de uma vez por todas, quem eu fui um dia. Quem aquele garoto, sozinho e assustado à beira da estrada e com o sangue de sua família, foi um dia. Isso é tudo. E esse é o motivo pelo qual não concordei com a ideia de checarem nossos passaportes no início da noite. — Bethany deu de ombros e enxugou ligeiramente a lágrima que manchava a sua bochecha.

— Então... o seu nome era George Hayes... — Capucci estava paralisado. Depois tomou coragem para encarar a passageira. — mesmo que essa não seja mais a pessoa que você é.

— Exato, detetive. Sinto muito por decepcioná-lo: não sou uma assassina. Sou uma covarde por não ter tentado salvar a minha irmã naquele dia. Mas... não assassina. — com dificuldade, a garota expôs o sorriso mais uma vez e encarou a chuva prateada do lado de fora. — Um segundo julgamento será feito no condado de Barrymore, porque novos relatos surgiram depois de tantos anos. Bem, é claro que eu disse isso a todos vocês na primeira tarde, mas menti sobre não estar envolvida no caso. É que algumas vezes, vocês todos bem sabem, é melhor omitir algo terrível sobre si. Não necessariamente porque não quer que descubram, mas porque este é um mundo perigoso.

Como bonecos, quietos e imóveis, os sete permaneciam observando um ao outro enquanto os galhos das árvores tocavam violentamente a janela do vagão. O barulho se tornou insuportável após um tempo.

Sophie Stewart, por sua vez, percebeu alguma coisa de interessante no que Bethany tinha acabado de dizer: "É melhor omitir algo terrível [...] Não porque não quer que descubram, mas porque este é um mundo perigoso".

Um mundo perigoso. De fato. O que chamava a sua atenção era que talvez Bethany Hayes não fosse a única a ter escondido alguma coisa naquela noite. Lembrou-se, nesse momento, do corpo da jovem moça no banheiro do corredor.

— Olivia... — o seu sussurro de repente tornou-se um grito: — Olivia!

A garota saiu andando em rapidez do vagão. Thomas Capucci a seguiu, e em quinze segundos os dois estavam de volta à fatídica cena de crime.

— Por que veio até aqui? — perguntou o homem, adentrando a saleta com o casaco sobre o nariz, na intenção de evitar o odor forte.

— Bethany disse algo que faz sentido. Olhe para mim, Thomas! — Sophie chamou a sua atenção. — Olivia Armstrong estava tentando descobrir alguma coisa em relação à história que está sendo contada, e estamos certos de que ela conseguiu. Correto?

— Correto. — disse.

— Então ela foi interrompida. Alguém a esquartejou até a morte porque não queria que revelasse a verdade. No entanto, Olivia sabia que morreria desde que adentrou este banheiro. — Sophie caminhou até a porta e passou o dedo indicador sobre a superfície. — Veja! Alguém arrombou a porta. Ela teve pouco tempo até que fosse atacada, mas... teria deixado um recado.

— Mas não seria algo aparente... — continuou ele.

— Exato! Porque ela queria dizer alguma coisa, mas não poderia deixar claro o suficiente para que o responsável pela sua morte descobrisse. É claro que não estaria em um bilhete na sua própria mão. — Sophie arrancou o pedaço de papel vazio grudado aos dedos da vítima. — Ela... esconderia melhor que isso.

Sophie ergueu as mangas de sua vestimenta e levou as mãos até o cadáver de Olivia. Com cuidado, considerou cada parte do que estava exposto na banheira — o sangue em grande quantidade, os seus órgãos parcialmente jogados para fora, a pele cinzenta da garota...

Levou um tempo para que se desse conta de que, se Armstrong quisesse esconder alguma coisa, faria isso com maestria. A atenção de Sophie foi levada até os braços do cadáver. Ela puxou com cuidado o tecido que cobria os pulsos de Olivia.

Para a sua surpresa, havia um pequeno recado deixado sob a tinta de um pincel.

No pulso direito, uma data: 27/10. A data que a garota havia descoberto naquele enigma.

— Thomas, você... você saberia me dizer que dia é hoje? — a Stewart coçou o pescoço. Sua gargantilha estava pressionando-a outra vez.

— Vinte e sete de outubro, Sophie. Hoje é vinte e sete de outubro. — o rapaz engoliu em seco.

Ambos permaneceram paralisados ao decifrar o que estava escrito no segundo braço. A tinta havia sido corrompida, impossibilitando a leitura de um fragmento da pequena frase. Mas era suficiente. O pouco que tinham era suficiente.

"Cla [...] sabe de tudo."

Voltaram imediatamente para o salão de jantar. A primeira coisa que perceberam era que Claire Brassard se dirigia, naquele momento, para a porta de saída do vagão — havia alegado aos demais que procuraria por Dominic e Austin.

— Brassard, não saia deste vagão. — a voz de Sophie percorreu o corredor inteiro até que atingisse a nuca da moça de cabelos ruivos. — Todos nós temos assuntos para serem esclarecidos.

— O que disse? — Claire virou a cabeça devagar. Quando pôde ter visão do vagão por inteiro, percebeu que os demais passageiros olhavam para ela também. Era difícil enxergá-los sob o efeito daquela pequena lamparina no centro do corredor, mas ainda podia reconhecer seus semblantes de desgosto. — O que está acontecendo?

— Não temos tanto tempo, Claire. — Capucci deu um passo à frente. — Olivia Armstrong, de alguma forma, deixou uma mensagem antes de ser morta, algo que ela queria que fosse encontrado. Assim, ainda que seja difícil enxergar alguma coisa em meio de tanto sangue sobre o seu corpo, identificamos o seguinte: as letras "C", "L" e "A" seguidas de "sabe de tudo". Então, eu preciso perguntar... quem é a única pessoa cujo nome começa com essas letras?

— Eu não... não entendo. O que acham que estão fazendo? — Claire olhou em volta. Por instinto, Bethany, Charles e o bilheteiro haviam agora se distanciado da moça. Como um efeito manada. — Não... não é possível. Não podem ter certeza de que o que aquela garota escreveu é a verdade. Sequer encontraram a mensagem em completo estado!

— Já chega de fingir, porra. Eu estou cansada de mentirosos! Nós passamos dos limites da perversidade humana quando colocamos nossos pés neste trem imaginando que não fôssemos receber a culpa pela nossa própria história. — Sophie cerrou os punhos enquanto se aproximava da iluminação da lamparina. — Portanto, Claire, eu juro que se não falar a verdade...

— Vai fazer o quê? — Lucille Leweis adentrou o campo de visão das duas mulheres. Ela se posicionou ao lado de Claire. — Acusá-la sem ter provas concretas como fez comigo. É isso que você gosta de fazer com as pessoas, não é? Colocá-las em uma posição da qual não possam sair sem passar por você.

— Não se esqueça de que eu estava certa quando a acusei, Leweis. — Sophie expeliu um riso repentino. — Mas, no momento, estou mais preocupada em pegar uma assassina.

— A... assassina? — Claire exclamou com a voz embargada. — Thomas, diga a ela que eu passei a última semana inteira ao seu lado. Diga que eu não sou a droga de uma assassina!

Thomas estava quieto.

— Parece que eu e a srta. Leweis, de repente, não somos os únicos criminosos por aqui... — Charles se aproximou das garotas com dificuldade. — Você matou aquelas pessoas, Brassard? E, por curiosidade... também foi você que jogou aquela criança do abismo? — o seu tom de voz, como já era cotidiano, continha acidez.

— Já... já chega. Já chega! Eu estava com o Austin do lado de fora quando nós dois vimos o culpado se esgueirando para trás do trem. Não posso ser uma suspeita! — a garota olhou ao seu redor imediatamente: Austin McCarty não estava no vagão para confirmar o relato. Ela precisava de outra justificativa. — Me escutem. Eu sou uma das vítimas. Alguém esteve na minha cabine outro dia e revirou todas as minhas coisas! Alguém... alguém vandalizou um artefato de muita importância para mim.

— Como poderemos saber se está dizendo a verdade? — Sophie retrucou. — Descreva o artefato.

— O... o quê? — a ruiva parecia confusa.

— Descreva a porcaria do artefato, Claire! Se não tem nada a esconder, deve poder nos dizer exatamente o que era e por que significava tanto para você. — insistiu ela.

— Era um pote de cinzas. Pertence a alguém que morreu antes de esta viagem começar. Eu... eu vi essa pessoa morrer. E Thomas pode dizer a todos vocês que isso é verdade, porque contei a ele no segundo dia neste trem! — afirmou Claire, voltando a olhar para o amigo. — Diga a eles, Thomas...

— Na verdade, você mencionou que havia alguém muito doente na capital, Claire, mas não me disse que alguém havia morrido. — Capucci estava começando a se distanciar dela outra vez. — Por que você mentiu, Claire?

Durante a confusão generalizada no centro do vagão, Bethany Hayes foi a única a perceber que a entrada oposta havia sido aberta. De repente, cinco dedos com um pouco de sangue grudaram-se na borda da passagem.

— Pessoal... — disse ela. Ninguém deu ouvidos. Os gritos da discussão eram consideravelmente mais atrativos.

A mão pertencia a Dominic. Com dificuldade, o garoto ajudou Austin a adentrar o vagão e os dois fecharam a porta pela qual passaram. Bethany correu até eles.

— Santo Deus! — ela abraçou Dominic. — Achei que... que...

— Foi por pouco. — disse Austin, movendo-se cautelosamente até a cadeira mais próxima. — O que... está acontecendo?

— Enlouqueceram. Eu temia que esta noite causasse isso a alguém. Mas... foi pior do que imaginei. Todos estão perdendo a cabeça. — Bethany observava a situação ao lado dos garotos.

As acusações não tinham fim. Para corroborar com o argumento que condenava Claire Brassard, foi inclusive trazido à tona o fato de ela ter descoberto sobre o romance de Charles Bourregard e Judith Petit, alguns dias atrás, e não ter contado ao restante do grupo. Todo e qualquer deslize da passageira foi usado contra ela.

— Parem. Parem! Parem! — as vozes ao redor de seus ouvidos tomaram proporções intoleráveis. Claire não podia mais sentir a própria respiração, de repente. Estava enlouquecendo como todos os outros. — Eu não sou... culpada... de nada!

O incêndio emocional naquele vagão foi contido, de repente, com uma única exclamação vinda do final do corredor. Alguém resolveu falar.

— Eu sou. — a sua silhueta foi percorrida unicamente pela iluminação de um trovão vindo lá de fora. — Eu... eu sou culpado. O meu nome é Clamence Allykov. Era a mim que Olivia Armstrong se referia naquela mensagem. — o bilheteiro retirou o chapéu que cobria seus cabelos. Com receio, aproximou-se dos passageiros com as duas mãos atrás das costas.

Ele não teve tempo de dizer mais alguma coisa, porém. Sophie Stewart fechou a própria mão esquerda e deu um golpe certeiro no rosto do rapaz uniformizado. Seu corpo teve uma queda tão violenta até o carpete do vagão que passou a estar inconsciente no mesmo momento.

O rapaz despertou cerca de trinta minutos depois. Vagarosamente, enquanto retomava a consciência, identificou o barulho da chuva lá fora — ainda estavam naquela noite infernal. Ouviu vozes ao redor dele, uma era da Stewart e outra de Lucille. As duas continuavam discutindo. Em seus punhos, Clamence percebeu a presença de uma corda.

— Sabemos que está acordado. É melhor começar a falar! — Sophie franziu o cenho. Ela chegou tão perto do rosto do jovem que ele podia sentir a sua respiração.

— Eu... eu não... não tenho todas as respostas de que precisa, senhorita. Sou apenas uma peça. — o bilheteiro hesitava em olhar diretamente para a interrogadora.

— Uma peça? O que diabos quer dizer com isso? — insistiu Sophie.

— Que fui usado. Usado! Por quem quer que fosse a pessoa que precisava que isso tudo acontecesse... — explicou ele, entre suspiros. O sangue ainda escorria de seu nariz.

— Então você não sabe quem é? Que conveniente. — Charles opinou, de braços cruzados.

— Estou dizendo a verdade! Eu não... não sei do que isso tudo se trata. Ao menos, não sabia até que todos vocês embarcassem. O meu trabalho era facilitar o processo. — admitiu.

— O que você quer dizer — Thomas tomou o lugar de Sophie e ficou cara a cara com o interrogado. — com "o meu trabalho era facilitar o processo"?

— Eu sinto muito. Sinto muito por ter mentido... por ter feito o mesmo que todos vocês. Mas eu sou a droga de um ser humano! E seres humanos fazem isso o tempo todo. — Clamence os observava com desgosto. — Eu era um garoto pobre da metrópole, nada mais que isso. Aceitei a oferta porque precisava do dinheiro, e então... de repente, percebi que não se tratava de uma simples viagem de trem. Um sujeito anônimo precisava de alguém para fazer parte do trabalho sujo, e eu... eu achei que não seria tão ruim. Sabe o que pessoas pobres da capital fazem quando encontram uma oportunidade dessas, Thomas? Aceitam. Aceitam imediatamente!

— Como você veio parar aqui? — Claire indagou. Ela ainda estava retraída no canto do vagão, porque a possibilidade de que a atacassem novamente continuava presente.

— Recebi uma carta. Instruções para desviar a rota do trem até este exato local, um caminho desativado o qual nenhuma outra locomotiva utiliza mais. Eu deveria fazer isso quando o maquinista já tivesse sido... sido... — Clamence engoliu em seco.

Assassinado. Por isso ele foi o primeiro. Meu Deus. — Claire levou as duas mãos até o peito. — E o que mais você sabe sobre isso tudo?

— Nada. Absolutamente nada! O meu trabalho era trazer o trem até aqui e garantir que vocês pensassem, ao menos durante o primeiro dia, que se tratava de um imprevisto comum. E então... as coisas saíram de controle. Eu deveria ter recebido um sinal no segundo dia. Uma resposta! Algo que me dissesse como isso tudo acabaria, quando estaria livre e como receberia o dinheiro.

— Mas você não recebeu nenhum sinal... — Thomas concluiu.

— É. Como adivinhou? — Allykov bufou. — Quando recebi a primeira oferta, eu a respondi com uma carta contendo todas as informações possíveis sobre mim e sobre o que eu estava disposto a fazer. A carta não foi enviada, no entanto. Perdeu-se na estação de correios e acabou voltando para mim. Por esse motivo, eu... eu a guardei comigo. Imaginei que não tivesse conseguido o "emprego" por não ter enviado aquela resposta, mas, seja lá quem for o responsável, aceitou mesmo assim. Porque aqui estou eu.

— Espera. Como Olivia Armstrong soube disso? — Thomas disparou.

— A carta. Eu a guardei comigo, como disse. Mas a perdi em algum momento durante a primeira noite, enquanto todos vocês corriam de um lado para o outro tentando saber o que estava acontecendo. A minha hipótese é que, seja lá quem deixou aquele quadro como pista, havia roubado a carta dos meus pertences no dia anterior. Dessa forma, Olivia descobriu o conteúdo da carta quando desvendou o enigma. — explicou Clamence. Suas roupas estavam encharcadas de suor.

— E onde essa carta está agora? — Sophie perguntou.

— Bem... bem aqui. — ele mexeu a cabeça para a esquerda, indicando o bolso do seu uniforme. — Olivia estava com ela quando foi atacada. Eu... entrei naquele banheiro um pouco depois de ela ter sido assassinada. Me preparei para chamar alguém, mas quando percebi o envelope em suas mãos... me dei conta de que era melhor pegá-lo e me mandar dali antes que fosse tarde. Substitui o envelope por um pedaço de papel qualquer, com nada escrito. Também joguei aquele quadro pelo abismo assim que tive a chance, porque... porque estava em pânico! Infelizmente, ela foi esperta. Guardou a mensagem consigo de alguma outra forma. — o bilheteiro balançava a cabeça de um lado para o outro, transtornado.

Claire apanhou o envelope do bolso do rapaz. Desdobrou o papel e, em poucos instantes, fez uma rápida leitura da carta. As informações batiam com o relato: havia uma confirmação dos horários, rotas e locomotivas existentes, além de algumas perguntas feitas por Allykov em relação à maneira como deveria se portar durante a situação. Obviamente, elas nunca foram respondidas.

— Ele está falando a verdade. — Claire largou o papel no chão.

— Viram? Não sou o assassino! Tirem essa corda de meus braços, por gentileza. Corro tanto perigo quanto cada um de vocês! — afirmou ele, enquanto se contorcia em meio às amarras.

— Isso não anula o fato de que estamos aqui por sua causa. — Sophie aproximou o dedo indicador da face do rapaz. — Você nos trouxe até aqui. E, levando em conta o fato de que não é mais útil agora, eu tenho a droga da resposta para o seu destino, Clamence: deveríamos expulsá-lo do trem!

— E lá vamos nós de novo. — Lucy revirou os olhos.

Um turbilhão de opiniões começou a borbulhar dentro daquele vagão outra vez. Enquanto isso, Bethany reuniu-se com Dominic e Austin dois vagões à frente — no hall. Passaram pelo grupo sem que fossem percebidos.

Perto da porta estreita utilizada como saída lateral, a garota terminava de organizar uma pequena mochila com seus pertences. Depois de rasgar parte do vestido para que pudesse correr com mais facilidade, ela virou-se aos rapazes e mostrou o que escondia sob a própria vestimenta: o revólver que pertencia a Thomas Capucci.

Bethany foi quem roubou a arma daquela gaveta, no início da noite. Isso porque sabia, ou no mínimo esperava, que precisaria usá-la se as coisas se tornassem tão difíceis a ponto de a fuga ser a sua única opção.

— Vou abrir essa porta e sairemos correndo em direção à floresta. Não se dispersem ou tomem outro caminho, porque não há nada em nenhuma das outras três direções. A floresta é a nossa única chance. Agora, preciso saber se estão comigo ou não. — segurando a arma com as duas mãos, Bethany virou-se para os garotos.

— Positivo. Vamos sair daqui imediatamente. — afirmou Austin, com os punhos cerrados.

— É inacreditável, Austin, que você ainda ache que escapar no meio de uma tempestade seja uma boa ideia. Vocês perderam a cabeça? — Dominic afastou-se dos dois de maneira vagarosa. Respirava ofegante como se seus pulmões fossem explodir.

— Eu sinto muito que isso seja decepcionante para você, Nic. Mas eu quase perdi a vida duas horas atrás justamente porque eu estava neste trem. E agradeço que estivesse comigo para me salvar. — Austin moveu o braço ferido com dificuldade enquanto falava. — Se você acha que continuar aqui é a melhor opção, saiba que eu não vou impedi-lo. Mas já tomei uma decisão.

O silêncio do outro rapaz foi suficiente para que Austin soubesse a resposta: Dominic não o deixaria ir sozinho porque estava apaixonado. E pessoas apaixonadas fazem besteira às vezes. Eu sou a prova disso, Passageiro Número Dois. E é tudo o que você precisa saber agora — porque um dia talvez também seja uma dessas pessoas.

Uma quarta silhueta se aproximou do grupo enquanto discutiam. Bethany não hesitou em apontar a arma para o sujeito e, ao reconhecê-lo, teve mais certeza ainda de que havia feito a coisa certa.

— Não dê mais nenhum passo à frente, seu desgraçado. — a Hayes preparou-se para apertar o gatilho. — E como foi que escapou daquele vagão-manicômio?

— Acalmem-se! Por favor, eu... eu... — o sujeito era Clamence. Com as mãos tremendo e a face tomada por suor e vermelhidão, ele espremeu os olhos e balançou a cabeça em negação. — Eu não sou um monstro! Me soltei das amarras enquanto discutiam sozinhos. Estou certo de que não mereço o perdão de nenhum de vocês. Também sei que nada disso teria acontecido se eu não tivesse sido enganado pela minha própria ganância. Entretanto, preciso que me deixem ir com vocês.

— Quer mesmo que eu diga a você qual é a resposta? — Bethany arqueou a sobrancelha e mudou a posição da arma. Agora apontava diretamente para a cabeça do rapaz.

— Eu conheço um caminho. — aquelas quatro palavras eram a única coisa capaz de tirá-lo daquela situação. — Estamos consideravelmente longe de qualquer condado, mas ainda assim... é possível que cheguemos a algum lugar se seguirmos na direção certa. Tenho certeza de que nenhum de vocês fará ideia de para que lado correr quando estiverem naquela floresta, e eu posso me localizar melhor do que qualquer um. Posso ser o bilheteiro fajuto que mentiu sobre muitas coisas, mas ainda sou a coisa mais próxima de um bilheteiro. Conheço todas as rotas da região e sei onde chegaremos se atravessarmos a floresta. — Clamence dobrou os joelhos nesse momento e entrelaçou os dedos. — Por favor, me deixem ir. Aquelas pessoas no salão de jantar vão me matar! Estão acusando umas às outras por motivo nenhum.

O entreolhar esquisito entre os outros três entregava que não tinham o menor preparo para tomar aquela decisão. No entanto, voltar atrás não traria vantagem alguma. Não tiveram outra escolha senão aceitar a proposta.

Quando a garota abriu a porta, acompanhada dos outros três passageiros, ela se deparou com o céu azul-escuro e os trovões agressivos que nele brilhavam, além da ventania que era capaz de derrubar aquele trem em um só ataque.

Bethany tentou correr na direção da floresta, embora tenha percebido movimentação em meio aos arbustos — algo que não parecia ser somente o vento. Talvez houvesse alguém lá.

Tentou ignorar a sensação de vigilância e continuar no caminho que ela mesma propôs. Mas era impossível. Havia alguma coisa amaldiçoada naquele trem que implorava para que os fugitivos fossem puxados de volta para ele.

Bethany perdeu a cabeça.

— Apareça, desgraçado! — com os cabelos encharcados sobre o rosto, ela ergueu as duas mãos e apontou a arma para o vazio na tempestade.

— Bethany! Que droga está fazendo? — Dominic tentou se aproximar dela. — Eu disse. Disse que isso era uma ideia horrível! Austin, vamos voltar para dentro. — ele agarrou o braço do outro rapaz, que esquivou imediatamente.

Bethany disparou três vezes contra o céu, iniciando uma euforia descontrolada àqueles que a acompanhavam. Seguido disso, um raio atingiu a floresta próxima a eles no mesmo momento. Como se a tempestade quisesse entregar uma resposta.

Dominic, o último da improvisada fileira de quatro pessoas — e também o mais próximo da locomotiva —, teve uma sensação estranha ao identificar um barulho vindo de algum lugar próximo ao trem. Soava como uma espécie de corrente sendo arrastada. Em seguida, o barulho se tornou mais alto. Era uma alavanca.

— Dominic... — Austin o encarou com os olhos saltados. Agora sabia que havia algo errado.

Nenhum deles teve tempo de se mexer antes que acontecesse. Não poderiam ter previsto aquilo. Mas uma coisa sempre ficou muito clara: alguém não queria que aqueles passageiros escapassem. Assim, quando Bethany deu o quarto disparo contra o vazio da floresta, percebeu uma haste metálica passando ligeiramente pelo canto de seu olho esquerdo. Por pouco não a atingiu.

A menina não soube dizer o que aconteceu. Os quatro estavam tão confusos quanto eu, quanto você. Porque ninguém poderia imaginar que havia um arpão conectado àquele trem. Uma armadilha. Uma armadilha que havia pego alguém.

Clamence Allykov moveu vagarosamente o rosto na direção dos outros três passageiros — paralisados sob a chuva prateada. O arpão atravessou o seu rosto. Escorrendo pela sua boca, o sangue púrpuro começou a ser derramado sobre o corpo inteiro do rapaz. Ele tentava murmurar alguma coisa enquanto era tomado por alguns espasmos repentinos.

Naquele momento, a presença de um relâmpago iluminou o cenário mortífero orquestrado pelo assassino de Clamence Allykov. A vítima, em estado de choque, desabava sobre si própria com a ajuda da haste metálica — que agora estava sendo puxada de volta para o lugar de onde veio.

Continue Reading

You'll Also Like

170K 15.1K 22
Coletânea de contos curtinhos de terror e mistério com finais inesperados
7.7K 337 7
Tendo como principais referências obras de Gerald Gardner, Gary Cantrell e o sumosacerdote da bruxaria no Brasil Claudiney Prieto, "Wicca: a Religião...
Declínio By Dmitri Bucareste

Mystery / Thriller

265K 22.6K 171
"Eu queria devorar esse moleque. Me sentia plenamente capaz de passar a noite inteira traçando ele, até meu pau esfolar. Meu peito tava agoniado. Em...
15.1K 1K 24
"Os Opostos se Atraem" Será mesmo? Dois jovens completamente opostos que se envolvem com uma aposta e isso pode trazer diversas dúvidas em relação a...