Trem para Barrymore [CONCLUÍD...

By LuckVianna

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VENCEDOR DO GRANDE PRÊMIO - WATTYS 2023 🎖 "Não pode ser coincidência que nossos destinos tenham se cruzado j... More

Prólogo - "Embarque"
Capítulo 1 - "Do outro lado, o que há?" • Parte 1
Capítulo 3 - "Cartas ao limbo"
Capítulo 4 - "Borboletas de lugar nenhum"
Capítulo 5 - "Entranhas do desconhecido"
Capítulo 6 - "Criminosos a bordo"
Capítulo 7 - "O sumiço dos girassóis"
Capítulo 8 - "Nunca subestime a tempestade"
Capítulo 9 - "Fim do mundo à meia-noite"
Capítulo 10 - "Trem fantasma"
Capítulo 11 - "Anjo das duas faces"
Capítulo 12 - "Jantar dos esquecidos"
Capítulo 13 - "Brindamos ao abismo"
Capítulo 14 - "Últimas horas antes do fim da linha"
"Páginas não lidas do Diário Montgomery" • Parte 1
"Páginas não lidas do Diário Montgomery" • Parte 2
Capítulo 15 - "Não há nada do outro lado"
Epílogo - "Desembarque"

Capítulo 2 - "Do outro lado, o que há?" • Parte 2

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By LuckVianna

24 de outubro. Madrugada.

Há algo de misterioso em viagens de última hora: elas nunca saem como planejado. Para Sophie Stewart, a garota que disse mais cedo que estava indo ao condado para ficar com a família, não havia outra escolha senão o embarque naquele trem.

Ela mentiu. Não estava indo ao condado visitar a mãe. Mas que diferença faz, Passageiro Número Dois, se eu contar a você os segredos de uma pobre garota que não teve a mesma sorte que os demais? Você se surpreenderia com a quantidade de pessoas naquela roda de conversa, no quiosque, que mentiram sobre os motivos de estarem indo a Barrymore.

Eu sinto muito. O mundo não é um lugar tão confortável quanto parece.

De volta àquela noite — enquanto Claire e Bethany encaravam a carta estranha deixada no quinto vagão —, o trem parou perto das vinte e três horas. No entanto, a maioria dos passageiros só se deu conta de que havia alguma coisa errada no início da madrugada. Imaginaram que uma parada no meio da estrada, se tivesse sido planejada, não duraria mais do que duas horas. Por isso permaneceram em seus quartos até que estranhassem verdadeiramente a situação.

Começaram a sair de suas cabines, então. Sophie Stewart pulou da cama às duas horas porque havia um cheiro estranho vindo do corredor. Parecia fumaça. Uma sensação muito esquisita a acompanhou até o lado de fora, onde Sophie pôde enxergar claridade. Era fogo, e o trem estava inteiramente em chamas.

— Não... não... não! — parecia que seus lábios não conseguiam dizer outra palavra além daquela.

Sophie tentou bater nas portas, em cada uma delas. Utilizou seus punhos até que eles sangrassem, e ainda assim ninguém respondeu. Ao menos ela havia tentado.

A próxima coisa que fez foi correr até a porta principal, perto de onde pensou ter visto um vulto se esgueirando. Ao chegar lá, a Stewart se deparou com um rosto conhecido. Alguém de quem ela guardava muita mágoa. O rosto do sujeito era frio, escuro, carbonizado.

Gritos começaram a surgir das cabines — mesmo que antes parecesse não haver ninguém lá. Porém, no momento posterior, ela percebeu que as vozes eram de crianças. Não adultos, não pessoas com as quais Sophie havia embarcado naquele trem mais cedo. E por que haviam crianças presas em quartos que estavam pegando fogo?

Sophie acordou de repente. Os lençóis estavam molhados com o seu suor e o quarto escuro a assustou. Depois se deu conta de que foi apenas um sonho. Um pesadelo horrível, parecido com aqueles que ela enfrentado convivido a vida toda.

Depois de se sentar na cama e limpar o rosto, seus batimentos diminuíram. Ela ainda estava no trem para Barrymore, e isso a fazia se sentir menos assustada. Por outro lado, um zumbido estava vindo de algum lugar e não permitiria que a garota pegasse no sono outra vez.

Sendo assim, Sophie caminhou até a porta e passou pelo corredor. Tinha iluminação no vagão principal e aquele barulho foi ficando mais alto. Era uma música — a mesma que Bethany e Claire haviam ouvido mais cedo, perto dali.

— Não deveria ir até lá. Aquilo se tornou uma histeria. — uma voz masculina surgiu por trás de suas costas.

Quando se virou, Sophie Stewart identificou um garoto escorado à parede ao lado de seu dormitório. A sua primeira reação foi de total estranheza, primeiro porque não o havia visto quando passou pela porta, e depois porque ele deveria estar parado exatamente em frente à sua cabine.

— Desculpe. Falou comigo? — a garota ainda se sentia um pouco tonta.

— Sou Collin Hataway. Não se preocupe, não sou um estranho. — ele abriu seus lábios em um sorriso amigável. — Eu disse que as pessoas no vagão principal estão todas histéricas. Acho que estão preocupadas com alguma coisa...

— Você sabe o que aconteceu? — perguntou Sophie.

— Não. Não pretendo ir até lá. — Collin deu de ombros. — Mas se for curiosa o bastante para isso, tome cuidado com aquelas pessoas. São duas e meia da madrugada e, caso não tenha percebido, estamos parados no meio dos trilhos. Deveria permanecer na sua cabine, Sophie.

A silhueta do garoto desapareceu no corredor alguns segundos depois de ele sair andando. Confusa, a menina arqueou as sobrancelhas enquanto continuava encarando a mesma direção do corredor. Algo naquele sujeito havia chamado a sua atenção. Mesmo assim, ela insistiu em seguir andando até o salão principal para descobrir o que estava acontecendo.

A sua cabeça ainda doía por conta do que havia acontecido no início da noite passada, quando se deparou com um fantasma no espelho daquele banheiro minúsculo. E agora havia tido outro pesadelo com a mesma figura.

Fantasma. Fantasma! Que palavra esquisita. Permaneceu no vocabulário de Sophie desde que ela era uma criança. Sempre teve problemas com assombrações e memórias que se desencadeiam na hora errada. Felizmente, nesta viagem, a menina tinha prometido a si mesma que não falaria sobre ele — o fantasma que a seguiu. Além do mais, existiam problemas muito maiores que precisavam de atenção agora.

— Não entendo. Isso tudo me parece um absurdo! — aquela era a voz de Judith Petit, a mulher de cabelos vermelhos. — O trem não pode ter parado por motivo nenhum. Além disso, onde estão o maquinista e aquele bilheteiro antipático? Precisamos de alguma informação! Oh mon Dieu!

Sophie adentrou o vagão e se deparou com outras pessoas: Charles, Margaret e Thomas Capucci. E ao lado de Judith estava uma garota que aparentava ter a mesma idade de Sophie, com um cabelo escuro e uma franja sobre a testa. Ninguém a tinha visto antes, então é provável que estivesse em sua cabine na tarde passada.

— Onde estão os outros passageiros? E... que melodia é essa? — exclamou Sophie, sem muito alarde.

— Dormindo, eu suponho. São duas e meia da madrugada. — Capucci a respondeu com um carisma exótico. O homem levou as duas mãos até os ouvidos em seguida, protegendo-os da canção incessante. — Está tocando desde que anoiteceu. Vai parar repentinamente daqui a pouco. E então... começar de novo. — ele revirou os olhos.

O som melódico era uma versão da famosa "Eleanor Rigby", dos Beatles, popularizada na metade dos anos sessenta. Embora fosse um sucesso, não havia motivo para que estivesse acompanhando um salão de jantar vazio às duas da madrugada.

— E... parou. — Thomas expôs um sorriso de alívio quando a música sumiu de repente. — A propósito, algum de vocês compareceu ao jantar, mais cedo? Não me lembro de ter sido avisado sobre nada enquanto estava na cabine. — ele olhou em volta. As mesas estavam todas detalhadamente decoradas para o início das refeições. — Mas parece que alguém se preocupou em organizar o lugar...

— Estranho. Onde estão os funcionários deste trem? — Judith voltou a falar. — Não havia ninguém aqui durante a tarde. Então, a não ser que estejam se escondendo de nós...

— Fui eu. — uma voz suave e educada compareceu ao cômodo. Era o bilheteiro. — Eu organizei o salão de jantar mais cedo. Infelizmente... ninguém compareceu.

— Meus sinceros pêsames. — Capucci suspirou, satirizando a situação. — Mas você, rapaz, deveria nos dar alguma explicação. Por que o trem parou?

— Eu sei tanto quanto vocês, para ser sincero. — o mais engraçado é que aquele sujeito não parecia estar mentindo. Era um garoto novo, na casa dos vinte, e qualquer um que o visse apostaria na ideia de que está trabalhando em uma locomotiva há menos de uma semana. — Tentei entrar em contato com o maquinista, mas a sala de controles está trancada.

— Deveríamos arrombá-la, então. — sugeriu Charles, no canto do salão.

— Não diga uma coisa dessas. — Margaret o repreendeu.

— De todas as suas ideias, essa com certeza foi a mais insensata. — Capucci o encarou com desdém. — Vamos ficar calmos. Se o nosso amigo aqui — apontou para o bilheteiro. — não pode nos oferecer ajuda, acredito que o maquinista seja a única pessoa que pode. Vamos tentar entrar em contato outra vez, e no caso de isso não funcionar...

Capucci preparava-se para concluir o raciocínio quando o grito de Judith tomou o vagão inteiro. Era um grito de surpresa, não de desespero — felizmente. Ainda assim, foi o bastante para causar pânico entre os que estavam presentes. Ela ergueu o dedo indicador na direção do final daquele corredor, de onde duas passageiras haviam surgido.

Claire adentrou o vagão ao lado de Bethany, que ainda tinha as suas mãos banhadas em um sangue escuro e viscoso. A ruiva havia passado as últimas horas em sua própria cabine, tentando tranquilizar a outra garota. Além disso, procuraram pensar em alguma maneira de mostrar aquilo ao restante dos passageiros sem que causassem pânico — visivelmente, não funcionou.

A questão é que decidiram ir até o banheiro mais próximo para limpar aquilo de uma vez. Não contavam, é claro, com aquela reunião inesperada às duas da manhã no salão de jantar. E agora tinham um problema.

— Pelo amor do meu bom e querido Deus! — a voz irritante de Judith ganhava força outra vez. — Eu não quero imaginar de onde foi que veio todo esse sangue. O que... o que vocês duas fizeram?

— Alguém se machucou? E onde estão Dominic e Austin? Não os vejo desde a tarde de ontem. Algum deles se machucou? — Sophie tomou a palavra, assustada.

— Acalmem-se! — gritou Claire. — Nada de ruim aconteceu. — ela virou os olhos até Capucci, que a encarava de maneira repreensiva. — Bethany encontrou um pouco de sangue no vagão dos fundos, embora não saibamos como isso foi parar lá. Não havia ninguém por perto. E, a propósito, Dominic e Austin estão bem.

— De quem é esse sangue, então? Precisamos descobrir! Minha nossa. Esta viagem tem se demonstrado tão estranha... — Margaret agarrou fortemente os braços do marido. — Oh, Charles, eu falei a você que não deveríamos ter escolhido este trem! Era para termos esperado o próximo.

— Querida... — ele suspirou.

— Estou tendo pressentimentos horríveis, Charles! Você sabe que eu sempre percebo os sinais. Você não viu? Há uma escultura de um anjo maléfico na parede de nossa cabine. Só pode ser um importante aviso em relação a tudo isto, Charles! Temos de sair daqui. — ela parou um instante para respirar. — Também percebi uma energia ruim neste vagão, e...

— Foi você quem escolheu aquela cabine, Margaret. Me pediu que ficássemos nela justamente por conta da decoração angelical na parede. Não se lembra disso? — ele perguntou, zangado.

— Oh... não, querido! Está enganado. Eu nunca faria... — ela tinha as mãos colocadas sobre o peito.

— Querida, feche essa maldita boca! — disse ele.

— Enfim... — Bethany encarava o casal com estranheza. — Não sabemos nem mesmo se o sangue pertence a um humano. Talvez... tenha sido um animal. Eu não sei. — ela olhou para as próprias mãos com aversão.

— Bem, eu não me lembro de ter avistado nenhum javali passeando por este trem, srta. Hayes. — Charles revirou os olhos.

— Nesse caso, sr. Bourregard, você deveria nos ajudar a resolver essa situação. — Capucci pôs as mãos na cintura e se aproximou dele. — Quero que vá até a cabine do maquinista, junto do bilheteiro, e verifiquem mais uma vez se há alguém lá dentro. — o outro homem preparou os lábios para recusar as ordens de Thomas, mas foi surpreendido quando ele se aproximou de seus ouvidos. — Faça isso, por favor. Eu não confio muito em nada que aquele sujeito estranho disse até agora.

Charles compreendeu o recado. Se afastou da esposa e caminhou até o final daquele vagão, preparando-se para sair em direção à frente da locomotiva.

— Quanto ao restante, eu sugiro que continuem aqui. Vou pedir que os outros viajantes se juntem a nós, caso queiram. É bom que todos permaneçam por perto até que fique claro o que está acontecendo. — Capucci voltou-se aos demais. — Exceto Bethany, certamente. Pode ir até o banheiro tirar isso de suas mãos o mais rápido que puder. Se... se desejar.

— Estávamos procurando por um banheiro. Não encontrei nenhum no vagão do qual viemos. — exclamou Claire.

— Há um banheiro ao lado da minha cabine. É o mais próximo, acredito. — Sophie se aproximou de Bethany, segurando a sua mão com calma. — Venha comigo. Vou levá-la até lá.

As duas garotas preparavam-se para sair do salão quando uma voz feminina as interrompeu. "Com licença", seguido de dois passos envoltos em botas de borracha pesadas. Aquela era Lucille Leweis, a garota de franja escura, e também a única que não havia dito nada durante o tempo em que esteve ali.

— O meu nome é Lucy, e estou tão preocupada quanto cada um de vocês. Mas... não acham que essa garota deve alguma explicação sobre o porquê de estar com suas mãos sujas? — Lucy cruzou os braços. — Eu não quero incomodá-la quanto a isso, porém, se percebeu que havia sangue no chão, por que você tocaria nesse sangue?

— Eu estava assustada. Queria ter certeza... certeza de que era realmente o que eu estava vendo. — Bethany respondeu.

— Tem certeza de que foi isso que aconteceu? — insistiu a outra, com a sobrancelha arqueada.

— Já chega. — Sophie a entregou um olhar de desaprovação quando se colocou na frente de Bethany. — Volte a se sentar onde estava e feche essa maldita boca. Isso não é um interrogatório.

Sophie Stewart não era muito boa em conter os ânimos quando algo a incomodava. Ainda criança, quando sentia muito medo dos fantasmas que costumavam persegui-la, a garota dizia à mãe que algo a estava sufocando.

Em uma de suas discussões, então, a sra. Stewart obrigou a filha a utilizar uma espécie de gargantilha ao redor do seu pescoço. O tecido pressionava a pele da menina com tanta força que, por conta disso, nunca mais pôde sentir como se alguma coisa externa a estivesse a sufocando. A gargantilha fazia esse trabalho por si só — Sophie a usa até hoje.

Ainda não é um interrogatório... — Lucy desejou expulsar aquela palavra com mais rigidez, mas somente a sussurrou.

Ninguém disse mais nada antes de as duas saírem. Capucci se sentou ao lado de Claire e os dois trocaram olhares de preocupação. Depois disso, os dois se levantaram e foram em direção ao vagão seguinte para procurar pelos demais passageiros.

— Ei! Espere. — Claire chamou a atenção do rapaz antes que cruzasse a transição entre os corredores. — Nós encontramos mais uma coisa naquele vagão. E, levando em conta que você parece ser o rapaz menos assustado aqui, achei que devesse saber disso.

A ruiva o entregou a carta esquisita. A reação de Thomas não poderia ser diferente: arqueou as sobrancelhas e releu a mensagem duas, três vezes. "Capítulo 1"? Estranho. Só poderia ser um fragmento qualquer retirado de algum livro antigo. A não ser pela coincidência do conteúdo...

Treze passageiros. — murmurou ele, observando o cartão. — Interessante, não?! Estou começando a acreditar que o que aquele sujeito falou era verdade. As coisas por aqui estão ficando bizarras. Guardarei isso comigo se me permitir, srta. Brassard. Não conte a mais ninguém por enquanto.

Os dois seguiram andando.

Aproximava-se das três horas da madrugada. Sophie trancou a porta do banheiro depois que Bethany passou. Ela a ajudou a retirar aquela mancha pegajosa de seus dedos e depois procurou por algum tecido que pudesse usar para a secagem. Não havia nenhum papel-toalha naquele cômodo, o que a obrigou a apanhar algumas folhas de jornal que estavam sob a pia.

Sophie bateu os olhos contra a manchete atrás da folha antes de usá-la. Dizia algo sobre criminosos não identificados nas ruas de Morrowborn, semanas antes de a crise ter início. A garota não deu muita atenção, no entanto.

— Obrigada por me ajudar. — Bethany agradeceu com um sorriso antes de secar suas mãos. — Eu nem sei como essa noite acabou desse jeito.

— Você disse que encontrou esse sangue sozinha. Não foi? — perguntou Sophie.

— Na verdade, Dominic e Austin estavam comigo, mas não acho que eles tenham se dado conta do que tinha lá. Eu avistei alguma coisa próxima aos meus pés, e... é como se alguém tivesse sido arrastado naquela direção. — explicou Bethany, renovando a mesma imagem tenebrosa dentro de sua mente. De repente, enquanto esfregava os dedos naquela folha de jornal, espantou-se: — Ah... que estranho.

— O que foi? — Sophie arqueou a sobrancelha.

— Minha pulseira dourada. Ela... desapareceu. — Bethany encarava o pulso direito, um pouco ansiosa.

— Acha que pode ter caído no meio de todo aquele sangue? Ou então... — a Stewart fez um esforço para relembrar os últimos acontecimentos. — Talvez alguém a tenha roubado, durante o apagão no quiosque.

— Possivelmente. Não me sinto mais tão segura perto dessas pessoas. — Bethany se afastou da pia.

A outra concordou com a cabeça. Entretanto, depois de ouvir um fragmento do relato, a atenção de Sophie foi desviada até o espelho. Lá estava. Outra vez, igualmente a todas as anteriores.

Uma mulher de muita idade, com o rosto brevemente iluminado pelo clarão do fogo. Suas rugas faciais estremeciam na medida em que ela movia os lábios para dizer alguma coisa. "Fogo". Essa era a palavra. Sempre foi.

Sophie sentia o peito estufar e seu coração preparando-se para explodir sempre que enxergava aquela mulher. Aquela maldita mulher! Uma assombração que não a deixaria em paz enquanto não tomasse a sua vida para si, enquanto não fizesse com que a garota queimasse daquele mesmo jeito.

— Sophie! — as mãos geladas de Bethany agarraram o corpo dela. — O que houve? Você... paralisou.

Stewart se livrou daquela memória quando tirou os olhos do espelho. Ele estava vazio, é claro. Porque uma imagem absurdamente assustadora como aquela só poderia ser verdade na sua própria mente. Sophie se virou para a outra menina, então.

— Me desculpe. Acho que minha cabeça continua girando, e girando e... enfim. Deve ser o estresse. — um sorriso falso foi posto em seu rosto. — Venha. Vamos voltar para perto dos outros e torcer para que esta situação se resolva e possamos seguir viagem de uma vez.

As duas saíram pela porta. Não se deram conta, porém, de que havia um terceiro passageiro naquele corredor. Era um rapaz que vestia roupas claras e usava um par de óculos redondos. O seu olhar indicava nervosismo, e o jeito como estava escorado na parede o tornava um tanto... suspeito.

— O que está fazendo? — Sophie virou-se para ele. Bethany parou de andar quando já estava um pouco à frente. — Você é o rapaz que estava parado ao lado da minha porta, no início da madrugada. Não é?

— Não sei do que está falando. — ele resmungou, virando a cabeça para o outro lado.

— Sophie, temos que ir andando... — Bethany pegou na mão dela, mas a menina se soltou no mesmo momento.

— Espere um pouco. — a Stewart afastou-se da amiga e começou a caminhar em direção ao sujeito. Ele retirou os óculos da face e começou a retroceder seus passos. — Quero que me diga o que estava fazendo neste corredor. Tentando ouvir a nossa conversa?

— Não perca o controle, srta. Stewart... — exclamou o rapaz, colocando as duas mãos no bolso da calça. — Por que eu tentaria ouvir a sua conversa? Vamos lá. Não havia nenhum segredo sendo revelado ali dentro para que eu precisasse me esconder atrás da porta e descobrir. Havia?

— Vai se ferrar. — Sophie segurou a gola dele e empurrou o seu corpo contra a parede. — Como é que sabe a porra do meu nome?

— Sophie... — Bethany encarava os dois assustada. Talvez fosse hora de chamar alguém.

Sophie Stewart desceu os seus olhos até o peito do garoto, que palpitava sem parar. Ele com certeza tinha algum motivo para saber quem era ela. E também tinha um motivo para estar por perto, ouvindo a conversa particular daquelas duas passageiras.

O seu nome era Collin Hataway, disso ela tinha certeza porque ele mesmo mencionou. Mas ainda não podia entender o que havia de tão familiar naquele rapaz. Ou de tão anormal.

— Eu ouvi o seu nome quando se apresentou no quiosque, ontem à tarde. As paredes são realmente muito finas aqui... — ele finalmente a respondeu. — É por isso que sei que você se chama Sophie Stewart. Não há nenhum outro motivo.

A garota afastou as suas mãos do pescoço dele devagar, como se ainda estivesse decidindo se aquilo era uma boa escolha. Após encará-lo por mais um tempo, retraído no canto da parede, Sophie deu as costas para o sujeito e voltou para perto de Bethany. As duas preparavam-se para ir embora quando, novamente, alguma coisa saiu dos lábios daquele garoto.

— Tome cuidado com os fantasmas, Stewart. — Collin saiu andando.

A garota paralisou naquele momento. Todos os nervos em seu corpo pareciam estar latejando continuamente, e um arrepio repentino a fez presenciar aquela mesma sensação — como se algo a estivesse sufocando. Sophie respirou fundo e aceitou a mão de Bethany dessa vez, que a ajudou a sair de lá no mesmo instante.

Quando retornaram ao salão de jantar, as duas encontraram exatamente quatorze pessoas. Charles e o bilheteiro já haviam voltado, totalizando, assim, todos os indivíduos do trem — com exceção do maquinista, é claro.

— Não encontramos ninguém perto da sala de controles e nem ouvimos algum barulho lá dentro. A porta está realmente trancada, eu mesmo conferi. — Charles alternava o olhar entre Capucci e o restante dos passageiros, que carregavam um semblante confuso e amedrontado ao mesmo tempo. — Se o nosso querido maquinista estiver mesmo lá dentro, então significa que não quer que ninguém o incomode. Fora isso, nossas opções são esperar que ele acorde do seu sono da beleza ou... derrubar aquela maldita porta!

— Obrigado. Eu assumo daqui. — Thomas deu um tapinha no ombro do outro e se aproximou do centro do vagão. — Bem, como todos sabem, estamos parados no meio dos trilhos há mais ou menos quatro horas. Tentamos contato com o maquinista mas não obtivemos resultado. Por enquanto, achamos que fosse mais seguro que todos vocês soubessem da situação e...

— Fala sério. Você vai realmente omitir a parte da história em que uma passageira encontrou sangue no corredor? — Lucy protestou.

— Sangue? — a pergunta surgiu em uníssono, vinda dos passageiros que não estavam naquela sala mais cedo.

— Não há motivo para que nos preocupemos, por enquanto. — Claire se juntou a Capucci. — Havia um pouco de sangue no carpete do outro vagão. Isso é tudo. Não sabemos de onde ele veio e nem se pertence realmente a alguém que está no trem.

— Bem, acho que... por segurança, deveríamos nos preocupar em saber exatamente quem está neste veículo. Me desculpem pela interrupção. Me chamo Olivia, a propósito. — exclamou a garota que vestia uma boina. Ela estava sozinha, com as pernas encolhidas sobre o banco mais distante do salão.

Claire imediatamente percebeu que aquela era a menina simpática que a havia cumprimentado na tarde anterior.

— Já sabemos, senhorita. — Charles resmungou. — Somos treze passageiros e estamos todos aqui. O que mais há para saber?

— Acho que ela quis dizer que deveríamos saber os nomes uns dos outros. — Capucci complementou. — E está certa. Ei, você! — o rapaz voltou-se para o bilheteiro mais uma vez. — Tem algum jeito de listar os nomes de todos os passageiros deste trem?

— É claro. Be... bem, eu... não tenho nenhuma listagem oficial comigo no momento, com exceção dos passaportes que foram devolvidos aos senhores assim que verificados. — explicou o rapaz. — No entanto, eu anotei em um pedaço de papel as informações de que precisava, mais cedo. Então... — ele retirou do bolso esquerdo uma folha rabiscada.

— E por que diabos você teria feito isso? — Lucy indagou. Ela gostava de fazer perguntas, como já é perceptível.

— Sou o novato. Essa é a minha primeira verdadeira viagem sem supervisão ou auxílio de outro funcionário. Eu só estava preocupado em me esquecer de alguma coisa. — o seu rosto assumiu uma feição assustada, como se estivesse sob julgamento.

— Não se preocupe. Tenho certeza de que a lista vai ser de tamanha ajuda. — Capucci o entregou um sorriso.

Como pedido, o bilheteiro agarrou o papel com as duas mãos — trêmulas e suadas — e começou a citar os nomes que ali haviam sido escritos. Ele pronunciou cada letra com cuidado e, antes de passar para o próximo, esperou que o passageiro citado se manifestasse.

— Claire Brassard
— Thomas Capucci
— Bethany Hayes
— Dominic Cooper
— Austin McCarty
— Sophie Stewart
— Judith Petit
— Charles Bourregard
— Margaret Bourregard
— Lucille Leweys
— Olivia Armstrong
— Collin Hataway
— Chariot Green
— Elliot Montgomery

Todos os passageiros haviam confirmado a própria presença ao final da lista, com exceção do último. O bilheteiro esperou, repetiu a pronúncia e esperou por mais algum tempo. Aparentemente, não havia nenhum Elliot Montgomery naquele trem.

— Tem de haver alguma coisa errada. — disse Judith, inquieta.

— É claro que tem. Há quatorze pessoas na lista de passageiros! — Charles contestou.

— Não! Eu... eu tenho certeza. Anotei todos os nomes com cuidado. Bem, eu... eu não consigo me lembrar de seu rosto. Isso é verdade. — exclamou o rapaz, dando dois passos para trás enquanto coçava a nuca. — Mas posso afirmar com convicção que não anotaria um nome sem motivo algum.

— Maravilha. Temos um passageiro fantasma. — Sophie pronunciou. De imediato, sentiu repúdio depois de ter utilizado aquela palavra. — Um... um hóspede maldito. Eu sei lá. De qualquer forma, não há razão para que ele tenha desembarcado em algum momento. Talvez quando o trem parou...

— Ótima hipótese. — Capucci tomou a palavra. — Mas o bilheteiro saberia. Não é? Digo, se algum passageiro tivesse desembarcado em algum momento, mesmo que tenha sido quando a locomotiva parou de repente, você teria visto, não? — o dedo indicador do rapaz perseguiu o jovem mais uma vez.

— Com certeza. E posso garantir que não adormeci em nenhum momento desta viagem. Eu juro! — respondeu ele.

— Então podemos presumir o pior. — Bethany foi quem falou, dessa vez. — Aquele sangue só pode pertencer a esse tal de Elliot Montgomery ou ao maquinista.

— Não diga isso. Pelo amor de Deus! Não podemos imaginar o pior. — Margaret a repreendeu. — Não é, Charles? Querido, diga a eles que isso tudo é uma loucura! É histeria. Ninguém se machucou, eu aposto. Coisas assim não acontecem frequentemente nessa região. Temos que pensar positivo.

— Na verdade, querida, alguém precisa fazer alguma coisa. Já chega! — Charles ergueu o tom de voz. — Eu esperei, Capucci, como pediu. Mas já perdemos tempo demais.

O homem arrastou as bordas da blusa até os cotovelos. Saiu andando na direção da sala do maquinista e não olhou mais para trás. Em seguida, Thomas não encontrou outra opção senão ir atrás dele. Dominic e Austin, que estavam no fundo do vagão, trocaram um olhar de confirmação e puseram-se a caminhar naquela direção também.

— Isso não vai acabar bem... — sussurrou Claire, sentada ao lado de Sophie e Bethany.

Os rapazes atravessaram todo o caminho até a parte frontal da locomotiva, passando pela câmara da fornalha, e Bourregard finalmente colocou de uma vez as duas mãos sobre a porta amadeirada que dividia a sala de controles e o restante do trem.

— Escute aqui, seu velho esquisito! — gritou. — Eu vou contar até três. Três! Esse é o tempo que você tem para abrir esta maldita porta antes que eu a derrube.

— Charles... — Capucci tentou dizer.

— Um... — o homem esperou um tempo antes de prosseguir. Suas veias saltadas indicavam a adrenalina em trânsito. — dois... três.

Com um empurrão, a maçaneta foi quebrada e a passagem se abriu. Os outros três rapazes permaneceram congelados, encarando o caminho. Charles foi o primeiro a adentrar o cômodo, permitindo que os demais o seguissem.

— É impressão minha ou está congelando aqui dentro? — exclamou ele, abraçando o próprio corpo.

A sala era maior do que aparentava. Havia um painel enorme à frente deles — que provavelmente pertencia aos controles da locomotiva —, além de uma cadeira confortável, estofada, grandiosa e vazia. Não encontraram ninguém naquele cômodo.

— Bingo. — Capucci sorriu. — É claro que o nosso maquinista não respondeu nas duas primeiras vezes. Porque não havia um maquinista aqui.

Charles não hesitou em colocar suas mãos sobre todos os aparelhos para tentar encontrar algo útil. A primeira coisa com que se deparou foi um rádio de comunicação embutido ao painel, que emitia um chiado estranho. Em seguida, percebeu que o aparelho estava quebrado.

— Este... este barulho. De onde vem este barulho? — perguntou Austin, depois de se aproximar dos outros.

— Do rádio, acredito. Não está funcionando. — respondeu Charles.

— Não, não é o rádio. É outro barulho... — continuou Austin.

O garoto estava certo: realmente existia um som esquisito circulando pelo cômodo. Quase como um sussurro, um assovio. Dominic Cooper, por sua vez, começou a investigar o que poderia ser.

O rapaz de cabelo escuro atentou-se à presença de uma corrente de ar gelado passando por seus corpos — foi por isso que Charles sentiu tanto frio. Em seguida, Dominic virou os olhos para o lado esquerdo da sala e enxergou um buraco no vidro da janela. Apesar de ser um estrago considerável, não o haviam percebido antes porque a iluminação era pouca no local.

— É daqui que está vindo o ar frio. — ele se aproximou do buraco e passou os dedos pela ruptura. — O barulho também. Deve haver uma passagem de ar muito forte do lado de fora, em alguma área próxima. Não sei dizer.

— Interessante. — Austin se juntou a ele e suas mãos se aproximaram, não intencionalmente, no vidro da janela.

— É estranho, na verdade. — Capucci os interrompeu ao colocar seu corpo entre os dois meninos. — Um vidro resistente como esse não se quebraria tão facilmente. Não pode ter sido um acidente.

— E se tiver sido? Sei lá, talvez algo tenha batido no vidro e o maquinista deixou o trem para inspecionar. — sugeriu Austin.

— Por mais de três horas? — Dominic o olhou, com um balançar de cabeça.

— Uma pergunta, senhores. — a voz de Charles chegou até eles. — Acham que um maquinista que saiu para inspecionar um problema na locomotiva deixaria, por acaso, um bilhete ameaçador debaixo do painel de controles? — o homem agarrou um pedaço de papel que estava no chão.

Dominic, Austin e Thomas se juntaram a ele. Nesse momento, portanto, quatro pares de olhos cansados de uma noite mal dormida encaravam uma folha velha com escrita prejudicada. Charles demorou a entender o que havia no recado, uma vez que não foi escrito com tinta de caneta comum — era datilografado, além de estar repleto de um líquido viscoso: sangue.

"Capítulo 2: Não coloque os pés do lado de fora do trem. O frio chegará mais rápido, e o seu destino trágico chegará também."

Os quatro se afastaram ligeiramente, assim que Charles largou o bilhete sobre o painel. Dominic e Austin estavam paralisados, calados, como se abominassem a ideia de aquilo ser verdade. Charles sentiu tamanho repúdio, desviando o olhar sempre que podia. Quanto ao Thomas, coçou a cabeça e começou a caminhar de um lado para o outro.

— Só pode ser a porcaria de uma brincadeira de mal gosto. Quem é o idiota que está fazendo isso? — Capucci empurrou o papel para o chão, zangado. Se lembrou, de imediato, do bilhete que Claire havia entregado a ele mais cedo. "Capítulo 1" e agora "Capítulo 2". — Merda...

— O que foi? — Austin o olhou com curiosidade.

De forma receosa, o rapaz mostrou o primeiro bilhete aos outros três. Não queria que aquilo fosse visto tão cedo, mas levando em conta que o segundo bilhete já havia sido encontrado, não teve outra alternativa. Capucci contou a eles sobre a situação.

— Certo, isso é esquisito. Mas, como você mesmo disse, deve se tratar de uma brincadeira de mal gosto. Não? — sugeriu Dominic, com um sorriso sem graça.

— É claro. No entanto, se não for... eu apostaria em três possibilidades. — Thomas pigarreou.

— Eu não gostaria de perguntar, mas acho que precisamos saber. Quais são? — Dominic o encarou com atenção.

— Número um: o sangue no vagão traseiro é de Elliot Montgomery, e as duas situações não têm ligação. O maquinista saiu do trem para consertar um problema repentino no vidro da sala de controle, está lá fora até agora e deixou um bilhete muito esquisito para que ficássemos em segurança. — explicou ele.

— E por que ele escreveria em um papel com sangue? — Austin protestou com a voz grave.

— Esse é o problema com essa teoria. Número dois: o sangue que Bethany encontrou ainda pertence a Elliot Montgomery, que foi expulso do trem ou... ou jogado pela janela pelo nosso querido maquinista, apesar de o buraco no vidro não ser grande o suficiente para que um corpo passasse por ele. Acho que pode ter se tratado de uma briga. — Capucci chacoalhou a cabeça e engoliu em seco. — E número três: o sangue não é de Elliot, e sim, do maquinista. Alguém o atacou na sala de controles, o empurrou contra a janela, fazendo o vidro se quebrar, e depois escreveu esse bilhete como uma ameaça para todos nós. Pode ter sido o desgraçado do Elliot, ou qualquer outra pessoa.

— Particularmente, eu gostei das especulações, Sherlock. — Charles sorriu e pousou a mão no ombro de Thomas. — E agora, como contaremos isso ao restante? Não queremos causar pânico, correto?

— Contar o quê? — a fala surgiu atrás da nuca de Austin, que se afastou rapidamente do corredor.

— Santo Deus, Sophie! — Dominic a encarou com os olhos arregalados. — Há quanto tempo está parada nesse corredor?

— Pouco tempo. Só ouvi algo em relação a um bilhete e... — ela começou a falar.

— É claro, senhorita. Encontramos um bilhete escrito com sangue em cima do maquinário e outro deixado junto da marca estranha no chão do vagão dos fundos. Além disso, não há maquinista neste trem e começamos a imaginar que aquele sangue todo, encontrado pela srta. Hayes, pertença a ele. — Charles colocou as mãos na cintura e depois seguiu pelo corredor.

— Bem, achei que... não queríamos causar pânico. — murmurou Austin, cabisbaixo.

— Correto, criança. Acontece que eu mudei de ideia. — respondeu o Bourregard. — Este trem já está deitado nos braços do pânico. Não há mais o que fazer! Vamos avisar os demais passageiros antes que isso tudo se transforme em um grande bolo de lã. Estão comigo, ou não? — ele esperou que alguém naquela cabine se manifestasse, mas nenhum deles o fez. — Ótimo. Eu mesmo faço isso.

— Charles! — o grito de Thomas Capucci saiu tarde demais. Não houve efeito algum.

Em poucos minutos, o viajante já havia retornado ao vagão principal e começado a falar com perseverança sobre as descobertas que haviam sido feitas. Não demorou para que cada um daqueles passageiros começasse a especular sobre os acontecimentos e fazer perguntas desesperadamente precipitadas.

— Loucura! Isso tudo só pode ser uma grande loucura! — Margaret saiu andando com pouco equilíbrio. Pensou em correr para os braços de Charles, como fazia sempre, mas recusou a ideia ao se lembrar de que era ele quem estava propagando aquelas notícias, parado no centro do vagão.

Enquanto isso, Claire Brassard caminhou até lá e o puxou pelo braço. Fez com que parasse de gritar e disseminar o desconforto em um local onde todos já estavam visivelmente desconfortáveis.

— É melhor se controlar, Charles. — Claire avisou, ao sentar-se com ele em uma das mesas preparadas para o jantar.

— Ouviu o que a ruiva disse — Sophie se juntou aos dois. — e eu espero que obedeça. Caso contrário, a próxima poça de sangue a aparecer vai pertencer à droga do seu corpo.

Charles engoliu em seco, retraído no canto daquele banco. Claire continuou ao lado dele para garantir que não fizesse nada pior, enquanto Sophie havia se afastado. Ela caminhou até o centro do vagão novamente e encontrou-se em meio de uma multidão confusa e com medo.

As pessoas se moviam de um lado ao outro, apressadas. Alguns falavam mais alto que outros, tentando entender o que diabos teria acontecido à vítima. Outros passageiros, por sua vez, procuravam tentar sair daquele salão para retornar às suas cabines e trancar a porta o mais rápido que pudessem. O resultado foi um oceano de gritaria e corpos chocando-se uns contra os outros.

Sophie se sentiu presa, por um instante. Seus olhos não podiam mais avistar as duas saídas nas extremidades do corredor — embora fosse simples encontrá-las. A garota se perdeu dentro de uma angústia avassaladora misturada à dor de cabeça.

Os gritos se transformaram em sirenes exuberantes. Os corpos que a esmagavam pareceram com grades, e o calor em trânsito só poderia ser uma única coisa: fogo.

Do outro lado da multidão, os cabelos daquela senhora podiam ser avistados por Sophie. Estava lá! E agora tudo fazia sentido outra vez: o calor do fogo, a imagem assombrosa... ela só poderia estar tendo outra crise em relação à sua alucinação.

A Stewart sentiu uma moleza repentina. As pernas perderam a força e ela teria caído sobre o carpete do corredor, se não fosse por duas mãos que a agarraram com rapidez.

— Você precisa se sentar. Não desmaie agora, por favor. — que surpresa desagradável. Sophie se lembrava daquela voz com não tanto carinho. Era Lucille, a garota com quem Sophie quase iniciou uma discussão mais cedo naquela madrugada.

Lucille ajudou Sophie a chegar até a mesa mais próxima. Em seguida, agarrou um jarro d'água que estava perto dos utensílios e jogou o líquido em uma xícara, também pertencente à decoração. Sophie bebeu a água com esforço.

Quase cinco horas da manhã. As janelas foram levemente iluminadas pela luz do dia, pouco a pouco. Era um azul-ciano, beirando um céu esverdeado — anormal para aquele horário do dia.

Claire se juntou a Thomas, na entrada do vagão, e os dois discutiram brevemente sobre o que fazer. Foi quando Sophie, embora ainda sentisse sua cabeça balançando o tempo inteiro, apoiou-se ao braço de Lucy e se juntou aos outros dois.

— O... o lado de fora. — exclamou ela. Os outros não entenderam da primeira vez. — Não está mais escuro. Se formos até o lado de fora agora, saberemos onde estamos. — ela encarou as janelas mais uma vez.

"Pensar fora da caixa". Talvez fizesse sentido que, quando atordoada pelos fantasmas impacientes que a perseguiam, Sophie Stewart tivesse sempre consigo a voz de sua mãe: fuja! Fuja de todos eles. Ela sempre soube que, quando os fantasmas estivessem muito perto de si — e quando a gargantilha deixasse de funcionar —, a sua única opção seria fugir.

E o trem, naquele curto momento entre o amanhecer completo e a penumbra da madrugada, era uma caixa. Uma pequena caixa que prendia quatorze pessoas absolutamente perdidas.

— É uma ótima ideia. — Capucci concordou com ela.

Preparavam-se para explicar o plano para o restante do grupo quando Dominic e Austin invadiram o corredor com respirações descontroladas. Austin, embora ofegante, foi o primeiro a falar.

— Precisam vir conosco agora. Agora! — disse, assustado.

Levou um minuto para que todos aqueles passageiros inquietos pusessem-se a caminhar até a porta de saída. Ignoraram o aviso naquele bilhete suspeito, é claro. Mas ninguém os culparia — dizem que a curiosidade é capaz de matar.

Quando chegou à cabine, na extremidade da locomotiva, Capucci se assustou com a imagem de alguma coisa sólida cobrindo o vidro — algo que não puderam enxergar mais cedo por conta da noite escura. Além disso, havia sangue. Ainda mais sangue! Era como se alguém tivesse despejado toneladas de sangue sobre aquela viagem amaldiçoada, durante a madrugada.

Eles não puderam acreditar. Desolados, forçaram a maçaneta da pequena porta da sala do maquinista e desceram as escadas do trem. Dessa forma, se encontraram com os demais passageiros — que haviam desembarcado pela saída de trás.

Capucci correu até a frente da locomotiva com pressa. Dominic e Austin estavam com ele. O que viram lá, por si só, era capaz de contradizer as duas primeiras teorias que o próprio Thomas havia proposto naquela noite: o maquinista não havia saído do trem para consertar algum problema e aquele sangue também não pertencia a Elliot Montgomery. Ademais, a situação confirmava parte da terceira hipótese: o maquinista era a vítima.

No centro da parte frontal do veículo, em cima do enorme farol que deveria iluminar a rota, seu corpo havia sido pendurado. As mãos amarradas nas duas hastes que circundavam a carcaça escura do trem, e a sua cabeça presa ao metal.

A face do homem havia sido totalmente desfigurada — ele não tinha mais nariz, boca ou um olhar. Nada além de sangue e ossos à vista. Quanto ao restante do seu corpo, as amarras resistentes seguravam a roupa inteiramente suja daquele mesmo sangue. Por fim, duas enormes perfurações em seu peito. Tudo aquilo era uma monstruosidade por si só.

— Não... não acredito. — Austin sentiu o estômago embrulhar e seus joelhos tremerem.

Enquanto Dominic ajudou o amigo a sair de perto da cena, Thomas Capucci observava a obra demoníaca como se alguma coisa tivesse de fazer sentido.

A notícia se espalhou sem que alguém precisasse propagá-la — Charles nem estava por perto, dessa vez. A presença do cadáver levou aquele cenário a um nível inimaginável de desconforto.

Sophie teve que se afastar. Claire a seguiu até as escadas da porta da frente, mas ambas foram acometidas por uma sensação horrível assim que seus cabelos foram empurrados pelo vento forte. Lembraram-se, então, de que ninguém havia respondido à pergunta de Sophie: não sabiam que lugar era aquele.

Foi por esse motivo que, ao mudarem rapidamente de ideia, as duas garotas decidiram escalar a estreita escada grudada à parte externa do vagão. Chegaram ao topo do trem, onde o vento era ainda mais forte e o barulho de um sussurro era ainda mais presente — como o que Austin presenciou mais cedo, na sala do maquinista.

Dominic e os outros se juntaram a elas depois de um tempo. Por fim, Sophie Stewart se colocou ao lado de Claire. As duas estenderam seus pescoços e encararam o horizonte.

Aterrorizados. Essa é a palavra certa.

Ao amanhecer, pouco depois das cinco horas da manhã, os treze passageiros do trem para Barrymore se deram conta de que não estavam somente sozinhos em um trem vazio e num local desconhecido. O trem estava parado na beirada de um abismo de mais de oitocentos metros de profundidade, e ninguém sabia dizer por quê.

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