Raul abriu os olhos quando sentiu a claridade do sol chocar com seu rosto. Por um instante, ele pensou que estava na rua, mas, quando enxergou o teto branco do quarto, percebeu que tudo do dia anterior não havia sido um sonho. Então se sentou sobre a cama com um misto de estranheza e alívio.
E agora? - perguntou a si mesmo. Pegaria Kevin e voltaria para a rua? A chuva já havia ido embora, o sol brilhava no alto do céu. Lorena não teria mais motivos para dá-los abrigo.
De repente, quando o jovem rapaz ainda estava imerso em seus pensamentos, ouviu algumas batidas na porta do quarto. Então, um pouco confuso, murmurou:
— Pode entrar.
A porta demorou um pouco para se abrir, mas, quando se abriu, revelou Lorena que estava com seu típico traje social com o qual ia trabalhar todos os dias. Ao vê-la, Raul vacilou no olhar, direcionando seus olhos para as próprias mãos.
— Te acordei? — a loira perguntou sem entrar no quarto.
— Não, eu... Eu já tinha acordado.
— Ah, ainda bem. Eu só queria te perguntar se aquela dor que você estava sentindo ontem melhorou.
Raul olhou de relance para Lorena e respondeu:
— Melhorou. Só dói mesmo quando eu uso o banheiro.
— Você tem certeza que não quer ir ao médico?
— Tenho. Além do mais, eu preciso ir, porque...
O jovem rapaz se levantou, mas sequer pôde dar um passo, pois Lorena o deteve com um riso abafado.
— Ir para onde? — ela perguntou.
— Ir embora...
— Ir embora? Mas... Por quê?
Raul olhou ao seu redor, sem entender, então respondeu:
— Eu não posso e nem quero te dar mais trabalho.
Lorena riu.
— Por que você sempre quer evitar que eu te ajude?
Raul não teve resposta para aquela pergunta, então a loira sorriu mais uma vez e disse:
— Vem tomar café.
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Sentado à mesa e balançando as perninhas enquanto comia um pedaço de bolo, Kevin perguntou à Gilda, que não conseguia parar de se admirar com a simpatia do garotinho:
— Você tem filhos, tia?
— Tenho — a senhora respondeu com um sorriso encantado.
— Quantos?
— Três.
— E eles são grandes?
— São. Já são adultos.
— Eles são mais velhos que o meu irmão? Porque o meu irmão tem...
Kevin interrompeu as palavras quando ouviu passos. Então olhou para trás e, ao ver Raul entrando na cozinha com Lorena, disse com seu tom inocente de criança:
— Nossa, Raul! Você dormiu muito.
O jovem rapaz olhou de relance para Lorena e, depois, para Gilda. De fato, já se aproximava das 10 horas da manhã, mas ele não sabia, pois não havia se encontrado com nenhum relógio até então.
— Gilda, esse é o Raul... De quem tinha te falado.
A senhora, sempre simpática, atravessou a cozinha para cumprimentar Raul.
— Tudo bem, filho?
— Tudo bem — ele respondeu, sério, mas gentil.
Lorena, ao lado do jovem rapaz, apontou para uma cadeira e disse:
— Pode se sentar, Raul. Fica à vontade.
— Raul, Raul! — Kevin exclamou e, logo em seguida, cortou um pedaço do bolo que estava sobre a mesa, estendendo-o para o irmão animadamente e dizendo: — Experimenta. É de abacaxi. Eu amei!
Um pouco sem jeito, Raul apanhou o pedaço, tentando conter a agitação de Kevin. Enquanto Gilda e Lorena trocaram olhares, cúmplices.
Então, aproximando-se da mesa, a loira disse ao jovem rapaz:
— Eu vou estar na sala. Quando você terminar... Vai lá. Tá bom? Eu quero conversar com você.
Raul assentiu e, apenas por desencargo de consciência, Lorena acrescentou:
— Mas pode comer com calma.
Na sequência, ela saiu.
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Kevin, comunicativo como era, engatou em uma conversa com Gilda, como se a conhecesse há anos. Afinal, na falta de Ícaro para brincar, ele julgou ser uma boa ideia acompanhar a simpática senhora em seus afazeres, enquanto lhe fazia perguntas dos mais variados assuntos. Raul até quis chamar-lhe a atenção, dizendo para o irmão que deixasse Gilda fazer seu trabalho em paz, mas ela garantiu que não a incomodava.
Então, com sua típica hesitação, o jovem rapaz foi até a sala, mas não disse nada ao entrar, vendo Lorena sentada no sofá concentrada em algo no celular. Ele até quis dizer alguma coisa, mas a timidez não deixou. Por sorte, de canto de olho, a loira o notou.
— Meu Deus, você apareceu aí igual a uma assombração — Lorena tentou brincar, mas Raul não riu.
— Desculpa.
— Não precisa se desculpar. Sente-se aí!
Timidamente, Raul seguiu até o sofá do lado oposto ao que estava a loira e se sentou.
— Eu tenho uma clínica odontológica em um bairro aqui perto e... Bem, já faz um tempo, o rapaz que fazia a segurança lá para mim precisou se afastar por causa de alguns problemas de saúde e, desde então, eu tenho uma vaga lá...
Lorena olhou para Raul e o viu desviar o olhar no instante em que ela o fitou.
— Se você quiser... Eu posso... É um emprego simples. Você apenas teria que ficar na recepção, dando uma olhada, e, quando necessário, dar alguma informação... Nada demais.
Um silêncio se formou e logo foi possível escutar Raul fungando. Acabou que, por mais que tivesse tentado esconder, as emoções se confundiram e as lágrimas escaparam.
— Tá tudo bem? — Lorena perguntou, preocupada.
— Sim... É só que...
O jovem rapaz enxugou as tímidas lágrimas na manga da camisa que usava e fungou mais uma vez, antes de prosseguir:
— Eu não consigo acreditar em tudo que está acontecendo.
A loira sorriu, pensativa, e perguntou:
— E então? Aceita?
— Tudo o que eu quero, no momento, é dar uma boa vida para o Kevin, sabe? Acho que nem é mais por mim, mas por ele. Então... Claro.
— Acho que você dará um bom segurança.
Aquela foi uma outra tentativa de fazer Raul sorrir, mas era difícil. O jovem rapaz não costumava extravasar as emoções como o irmão mais novo.
— E... - Lorena continuou — É claro que, quem tem emprego, também quer ter um lugar para ficar e... Bem, eu tenho um apartamento que tá fechado há um tempo. Ele fica no bairro Prado... Conhece?
— Você está me colocando muito em dívida com você — disse Raul sem responder a pergunta da loira, que riu de suas palavras.
— Claro que não...
— Como é que eu vou te pagar por tudo isso?
— Não precisa me pagar.
— Você diz isso, mas eu sinto a obrigação moral de te pagar algum dia.
— Não precisa se preocupar com isso. Só vou te pedir uma coisa...
— Qualquer coisa — disse Raul, disposto.
Lorena riu daquelas duas palavras e lançou sua condição:
— Para receber tudo isso, você tem que aceitar eu te levar ao médico para ver essa questão dos seus rins.
— Se todas as condições fossem assim.
— Então estamos combinados?
Raul assentiu, resoluto. Jamais poderia recusar uma proposta como aquela. Afinal, já eram 4 anos tentando encontrar uma saída para a sua vida sofrida.