Capítulo 1

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Aquele lugar onde moravam era sórdido, quase inabitável. Um cantinho qualquer debaixo de um viaduto, coberto apenas por uma colcha listrada e já velha. Quando o sol se punha e, então, a escuridão começava a ocupar o espaço, as ruas ficavam ainda mais perigosas e a disputa por território quase sempre se iniciava nesse período do dia. Por isso, temendo pela segurança de seu irmão e até mesmo pela sua, Raul fechou a cabaninha, que era desprovida de toda e qualquer segurança, e dividiu com Kevin o pouco da comida que havia conseguido naquele dia.

— Cachorro-quente de novo? — o garotinho de cabelos negros protestou, encolhendo os ombros.

— Só deu para comprar isso, Kevin — Raul respondeu enquanto entregava um cachorro-quente para o irmão.

— Eu já estou quase bom no malabarismo. Daqui a pouco, vou poder te ajudar.

O irmão mais velho ergueu o olhar e sorriu minimamente. Depois, ofereceu um pequeno sachê de ketchup para Kevin, que aceitou prontamente e continuou dizendo:

— Eu não consegui vender nenhuma bala hoje. Quero dizer, até vendi, mas tive que pagar o Tales.

— Ele te cobrou?

— Uhum! Ele disse que você ainda não tinha pagado o aluguel.

— Claro que eu já tinha pagado!

— Tinha?

— Sim!

— Bem, ele me ameaçou falando que, se eu não pagasse, ele ia me enfiar uma faca — Kevin afirmou sem muito espanto e deu uma longa golada na Coca-Cola que sempre acompanhava os cachorros-quentes.

— Ele fez alguma coisa com você? — Raul se perturbou.

— Não, só me ameaçou. Daí, eu tive que dar para ele todo o dinheiro que consegui.

— Temos que nos mudar daqui, Kevin. Não se lembra do que aconteceu com o Charles por causa de 1 real?

— O Tales bateu nele.

— Pois é.

— Mas para onde a gente pode ir?

Raul deu de ombros enquanto passava as mãos pela boca para limpar qualquer vestígio de molho. Depois, também deu um gole na Coca-Cola, respondendo logo em seguida:

— Não sei. Aqui é o melhor lugar, por mais que o Tales cobre uma taxa muito alta. Além disso, aqui é mais seguro. Pelo menos os capangas dele vigiam as cabanas, em qualquer outro lugar, iríamos ser roubados todos os dias...

— Por que a gente não entra para a gangue dele? — Kevin perguntou com sua inocência de criança. — Assim, não iríamos precisar mais pagar a taxa.

— Não, é muito perigoso.

— Mas eles comem bem e moram numa casa, nós não.

— É, mas tudo que eles têm é conseguido de maneira desonesta. Nós não somos esse tipo de gente.

— Mas eu seria um pouco desonesto só para comer melhor e morar numa casa.

— Não vale a pena, Kevin. Olha os caras da gangue do Tales, hoje estão aí, mas amanhã podem estar na prisão ou mortos. Nós, pelo menos, podemos dormir com a consciência limpa, sem problema nenhum com ninguém.

— Mas a gente passa fome, Raul.

— Você quer comer o que não é seu? O que é dos outros, é dos outros, Kevin. Não é ruim quando roubam algo nosso? Por que fazer o mesmo com as outras pessoas?

O garoto, que havia completado 7 anos ainda há pouco, murchou os ombros e, abaixando a cabeça, terminou de comer seu cachorro-quente em silêncio. Raul, por outro lado, apesar de tentar não demonstrar, tinha o coração apertado. Então, contrito, esticou uma mão e acariciou os cabelos de Kevin, tentando confortá-lo:

— Nós vamos sair dessa, amigão. Nós vamos sair.

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Lorena desceu para a garagem, enfiando-se dentro do carro apressadamente.

— Cadê seu irmão, Ícaro? — ela perguntou ao filho, assim que o viu entrar no carro com a atenção voltada para o seu videogame portátil e que, por isso mesmo, não a escutou perguntando. — Ícaro!

— Hum?

— Cadê o...

— Tô aqui, mãe. Tô aqui. — Bernardo apareceu com sua mochila pendurada no ombro.

— Ótimo. Não quero me atrasar outra vez — disse Lorena dando partida.

— Mãe — murmurou Ícaro de repente.

— Oi, amor.

— Por que tem uma maçã na minha lancheira?

Lorena olhou pelo retrovisor e viu o filho com a lancheira aberta no banco de trás.

— Lembra da cárie que a mamãe tirou do seu dente?

— Mas eu quero meu Snickers na sobremesa.

— Para ter mais uma cárie?

— Eu não me importo de ter cáries, eu só quero comer o meu Snickers.

— Você não se importa, mas eu sim.

Ícaro fechou o semblante e voltou sua atenção para o videogame, dando a deixa perfeita para que Lorena ligasse uma música no rádio do carro e se concentrasse no caminho até a escola dos filhos, que não era tão longe assim.

Passados alguns minutos, ela parou o carro diante de um semáforo e viu um garotinho se aproximando desinibidamente. O pequenino, que era Kevin, estava trajado numa camisa exageradamente grande, se comparado à sua miudeza, e trazia nas mãozinhas uma pequena caixa repleta de balas dos mais variados tipos.

— Bom dia, tia! — Kevin exclamou feliz ao chegar diante da janela de Lorena e se esticar sobre seus pés, pois o carro era alto para ele. — Você pode comprar uma bala na minha mão? Eu ainda não tomei café da manhã.

No interior do carro, Bernardo e Ícaro pareciam estar em outra dimensão, pois nem perceberam o diálogo entre a mãe e o garoto.

— O que você está fazendo aqui na rua? — Lorena perguntou obedecendo ao seu instinto maternal.

— Eu moro na rua — sem o menor acanhamento, o garoto respondeu com um sorriso que transparecia sua ingenuidade e apontou para trás, para o outro lado da avenida, onde estava a cabaninha onde morava com Raul. — Bem ali, ó!

— Sozinho?

— Não, com o meu irmão.

— E onde está ele?

— Tá em outro semáforo.

— Ele também vende balas?

— Não, ele é malabarista. Ele é grandão assim.

Kevin ergueu o braço direito, tentando ilustrar o tamanho de Raul, que quase alcançava os 1,90 metros de altura. Então Lorena riu e se inclinou no banco, apanhando sua carteira de dentro de sua bolsa, de onde tirou uma nota de 50 reais.

— Tome. Para você e seu irmão comerem alguma coisa.

O garoto de olhos castanhos e miúdos esboçou um semblante de surpresa, apanhando a nota com toda a alegria do mundo.

— Obrigado, tia! — o pequenino agradeceu e, sem pensar duas vezes, saiu correndo com a caixinha de balas numa mão e o dinheiro na outra.

O farol, então, se tornou verde e Lorena acelerou o carro, acompanhando Kevin com os olhos, vendo-o correr a todo vapor avenida abaixo. Quando, de relance, viu-o parar diante de um jovem rapaz, que descansava sentado na calçada com um monociclo ao seu lado, e, logo em seguida, notou Kevin apontando na direção de seu carro, que sumiu em meio a aquele trânsito caótico.

E a verdade é que não tirou Kevin da sua cabeça o restante do dia. 

O Malabarista - ConcluídaDär berättelser lever. Upptäck nu