𝗙𝗲𝘁𝗶𝘀𝗵 • H.S.

By akastylessgirl

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Uma noite. Foi tudo o que precisou. Agora eles tem um acordo. • •... More

antes de ler / teaser
01 [ca•su•al]
02 [ten•são]
03 [pro•pos•ta]
04 [ex•ce•ção] (!)
05 [ca•pri•cho]
06 [a•cor•do]
07 [ris•pi•dez] (!)
08 [de•cep•ção]
09 [re•gra]
10 [em•pá•fi•a]
11 [pro•i•bi•do] (!)
12 [hos•ti•li•da•de]
13 [ge•ne•ro•si•da•de] (!)
14 [con•se•quên•ci•a] (!)
15 [hu•mil•da•de]
16 [in•si•di•o•so]
17 [do•mi•na•ção] (!)
18 [con•des•cen•den•te]
20 [ex•clu•si•vo] (!)
21 [a•lu•ci•nó•ge•no] (!)
22 [a•me•a•ça]
23 [dra•ma•ti•za•ção] (!)
24 [ir•re•ve•rên•ci•a]
25 [vul•ne•rá•vel]
26 [con•fi•an•ça] (!)
27 [con•for•tá•vel]
28 [em•bri•a•guez] (!)
29 [con•fli•to]
30 [dis•so•lu•ção]
31 [ci•ú•mes]
32 [re•ca•í•da] (!)
33 [pe•ri•pé•ci•a]
34 [sau•da•de]
35 [ins•pi•ra•ção]
[in•ter•lú•di•o]
36 [va•ri•a•ção]
37 [or•gu•lho]
38 [re•pa•ra•ção]
39 [con•ci•li•a•ção]
40 [a•mi•za•de]
41 [con•jec•tu•ra]
42 [ten•ta•ção]
43 [i•ne•bri•an•te]
44 [êx•ta•se] (!)
45 [su•a•ve]
46 [sub•ter•fú•gi•o] (!)
47 [in•ti•mis•ta] (!)
48 [me•lí•flu•o]
49 [in•ver•são] (!)
50 [fe•ti•che]
bônus [texting]

19 [a•fron•ta]

571 42 117
By akastylessgirl

[ofensa lançada contra uma pessoa, ou grupo de pessoas, em sua presença ou em público; insulto, ultraje.]

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HARRY

As últimas notas saem arrastadas, mas pelo que parece, ninguém além de mim percebe isso. Termino a canção e olho para o salão, ganhando absolutamente nada em retorno pela minha performance questionável de Garota de Ipanema. Os clientes ricos continuam focados em seus jantares de negócios e taças de vinhos com a família, fingindo que eu não existo.

Eu queria não existir num momento assim, mas o que posso fazer? Um homem tem que pagar as contas e se for tocando para pessoas que não me valorizam, que seja.

Já estou trabalhando nesse restaurante como pianista à umas três semanas, mas o expediente aqui ainda não deixou de ser um desafio ao meu orgulho e autoestima. O gerente, o Sr. De Luca, continua sendo intragável e eu acabei descobrindo, da pior forma, que os outros funcionários aqui também não são flores que se cheire. Eu já devia saber que expressar minha opinião sobre alguém com outra pessoa que não conheço é insensatez, mas tive que aprender com minha ingenuidade a não confiar em ninguém por aqui.

É como estar num ninho de cobras.

Apenas três semanas, mas eu tive que me virar para conseguir um terno decente, assim como um par de sapatos. Não saiu barato e eu passei dias comendo macarrão instantâneo no almoço, até poder me estabilizar outra vez. Pelo menos o Sr. De Luca não implica comigo por conta da vestimenta e eu tratei de arranjar bons repertórios, só para ficar longe da mira dele e continuar ganhando minha grana semanal.

Se ao menos a grana que eu faço no Poison Ivy fosse o suficiente, eu poderia dar adeus a esse restaurante, mas tenho que prosseguir nos dois empregos pra sobreviver. Tem uma garota nova lá, aliás. Uma loirinha cuja o rosto não se move ao sorrir e que fica me encarando vez ou outra. Eu procuro não olhar pra ela por mais de dois segundos, pois sinto uma súbita vontade de consertar a expressão facial dela (e também porque Charlotte me mandou não implicar com a garota).

E por falar no diabo...

As coisas entre a Char e eu estão cada vez melhores e agora eu tenho que beber suco de abacaxi pelas manhãs, o que não é nada incômodo, principalmente porque ela tem planos para isso; planos que me interessam muito.

Além do sexo, sinto que Charlotte e eu temos ficado mais próximo um do outro, que uma certa conexão se formou entre nós, assim como uma espécie de rotina que só nós entendemos. Ela passeia pelo meu apartamento com alta frequência e, apesar dos milhares de defeitos do mesmo, eu tenho ficado cada vez menos envergonhado dele. Ela nunca ligou para a simplicidade da minha morada ou desdenhou de mim por isso. Mas nós passamos a maior parte do tempo na minha cama, então eu acredito que não sobra muito pra esse tipo de julgamento.

Ela é, de longe, a melhor que eu já tive, a amiga colorida mais talentosa que eu já tive o prazer de experimentar e eu quero que isso dure muito mais do que posso quantificar agora. Charlotte me faz sentir como eu nunca me senti e eu sei que as melhores transas da minha vida foram com ela. Aquela mulher me algemou numa cama e me fez implorar de uma forma que faz meu pau pulsar só de recordar. Nunca pensei que poderia ser tão submisso no sexo como fui com ela, mas Charlotte tem algo que simplesmente me aprisiona e me contamina, até me conseguir de joelhos no chão de sua cozinha.

E ela me faz querer mais, sempre mais. Eu nem sabia que isso era possível, mas é e eu sonho acordado.

Me assusta às vezes perceber que esse mais vai além dos lençóis, no entanto.

Eu digo coisas estúpidas só para fazê-la rir, assim como provoco a paciência dela só para ver seus lábios de coração formarem um beicinho aborrecido. Tenho certeza que Charlotte não sabe o quão fofo seus lábios ficam quando ela está brava, caso contrário ela os esconderia de vista. Pensar em coisas assim me faz querê-la comigo o tempo todo. Ela é o tipo de companhia que inspira a minha curiosidade e eu adoraria passar um dia inteiro com ela, para poder testemunhar todas as facetas que ela perpassa enquanto vive.

O encanto dela sobre mim ainda está fazendo efeito e é tão forte que até mesmo quando estamos longe, me leva a pensar nela e no que ela está fazendo, se ela está se sentindo bem ou se precisa de algo. Nos aproximamos muito mais nessas últimas semanas e eu acredito que estou tão intoxicado com o cheiro de sua pele e o de seu longo cabelo, que isso tem afetado o meu juízo, o que me leva a pensar demais em coisas que eu provavelmente não deveria.

Ainda não sei o que isso tudo significa, levando em consideração a nossa não-oficialidade e regras, mas eu sinto meu coração batendo forte quando a vejo acordando ao meu lado e sei que algo mudou pra mim.

Eu estou assustado, não vou negar. Ela é uma das mulheres mais bonitas que eu já conheci, talvez a mais bonita, e o poder que obtém sobre o meu corpo pode estar confundindo os meus sentidos.

Ou só me fazendo cair numa armadilha da qual eu não vou conseguir sair.

Ultimamente, tenho evitado Gary e o julgamento racional dele sobre o acordo com ela. Ele a viu saindo do meu apartamento uma vez e riu da minha cara assim que teve a chance, dizendo que eu estava imensamente fodido e que ela estraçalharia o meu coração, se assim o desejar. Ele sabe que quando eu desvio de alguma pergunta sobre ela e mudo de assunto, é porque eu não serei capaz de não demonstrar que algo realmente mudou pra mim.

Antes, eu olhava para Charlotte e apenas pensamentos sujos me vinham a mente. Tudo sobre ela é como sex appeal feito especialmente pra mim. Desde as roupas que ela veste até as músicas que escuta. Inteligente, sagaz, dona de um humor ácido e do sorriso mais confiante e lindo desse país. Como uma dose que me deixa embriagado e viciado no primeiro gole.

Contudo, agora, eu olho para Charlotte e me pergunto se ela tomou café da manhã ou se aceitaria almoçar comigo. Me pego contando quantas vezes ela enrola o cabelo nos dedos quando o tira da frente do rosto. Eu quero saber como ela era no colégio e se gosta tanto assim de ler como eu imagino que goste. Cor, comida, filmes, eu quero conhecer tudo que ela mais ama.

A maldita regra número 1. Se não fosse por isso, eu tenho certeza que estaria a par de todos os pequenos detalhes sobre ela e que mergulharia neles.

Eu nunca estive tão perto e tão longe de alguém antes e o meu desejo de progredir com ela está mesmo me deixando com medo do que pode acontecer entre nós.

"Você pode ter uma pausa agora, se quiser." Anuncia o Sr. De Luca, encostando ao meu lado rapidamente.

"Oh. Obrigado. Eu quero mesmo ir ao banheiro." Comento, fechando a tampa das teclas do piano e me levantando do banco.

"Detalhes desnecessários, garoto. Seja rápido. O restaurante está cheio esta noite." Ele me dispensa e se afasta para consultar uma mesa, conferindo se estão todos bem com o falso sorriso que usa com os clientes. Minha vontade é de revirar os olhos, mas eu simplesmente me apresso até a área de funcionários e sumo lá dentro.

O barulho na cozinha é muito diferente do som calmo de pessoas conversando e bebendo no salão. Aqui, o Chef grita ordens e os cozinheiros voam de um lado para o outro com uma larga diversidade de pratos e receitas. Os garçons não param e o pessoal da limpeza nem se fala. É cômico pensar que para a tranquilidade lá fora acontecer, caos corre solto por trás das cortinas.

"Harry. Como vai, cara?" Ouço um forte sotaque colombiano me chamando e viro o rosto para encontrar um sorridente Jorge. Ele é responsável por lavar a louça e eu nunca vi as mãos dele paradas, assim como nunca o vejo sem os fones de ouvidos ligados. A maioria das pessoas aqui são cobras, mas Jorge sempre foi legal comigo, pelo menos até agora.

"Oi. Eu só vou usar o banheiro. Não tenho muito tempo e já vou ter que voltar para o banco." Informo, nem ao menos parando para falar com ele, já que o próprio está ocupado.

"Senhor Di Loco é um pé no saco, eu sei. Vê se toca alguma coisa legal, beleza?" O apelido que ele usa para se referir ao nosso gerente me faz rir, mas ao lembrar que estamos cercados por pessoas não confiáveis, engulo o riso e me despeço dele.

Uso o banheiro bem brevemente e aproveito para ajeitar minha aparência no espelho. O gerente não nos deixa usar os banheiros do salão, porque ele não quer que os clientes tenham que entrar em contato com os funcionários dessa forma, a menos que estejamos os servindo, então eu tenho que vir até os fundos todas as vezes. Não que ele me permita muitas pausas.

Meu estômago ronca quando eu vejo um prato de alguma coisa bem sofisticada saindo da cozinha, mas eu tenho que segurar a fome para depois. Minha rápida pausa para o lanche ainda vai demorar e eu provavelmente só vou conseguir comer uma maçã, então seria melhor voltar para o meu posto e sair de perto do aroma do filé que foi colocado na chapa nesse exato momento.

Vejo a mesma recepcionista que me recebeu na minha primeira vez aqui, Verônica, levar dois casais para uma das mesas maiores do salão e suspiro. Esse lugar vai mesmo lotar, como o gerente havia dito. Reassumo meu posto no piano e abro a tampa das teclas novamente, me preparando para tocar e ser ignorado por mais algumas horas. O repertório da noite está na minha frente, então eu só viro uma das páginas para acessar outra canção.

Minha reconexão com o piano me fez ligar para casa e passar duas horas no telefone com a minha mãe. Meu padrasto também contribuiu para que houvesse tanto assunto a se discutir e eu senti falta da minha irmã no meio disso tudo. Eu sinto falta de casa por conta deles, mas não da vida lá, muito menos das expectativas sobre mim. Aquele lugar sempre foi pacato demais pra mim e meus grandes sonhos, eu não me encaixava. Por isso arrisquei tudo e vim para os Estados Unidos.

Tocar piano duas noites por semana nesse lugar está me deixando emotivo, veja só. Agora estou pensando no fracasso que foi a minha busca pelo sonho americano, enquanto toco Chet Baker para um público arrogante demais para me dar dois segundos de atenção. Pode até parecer carência, mas quando se é um performista como eu, o mínimo que se espera é reconhecimento.

Verônica reaparece no salão e ela olha pra mim, sorrindo de canto, tentando flertar comigo exatamente como na primeira vez que coloquei meus pés aqui. Ela é bonita, mas não me inspira nada em especial. Ela é uma das menos confiáveis aqui e por mais que demonstre interesse, tenho certeza que seria a primeira a me lançar uma pedra caso eu fizesse algo considerado errado. Eu já estava prestes a desviar meus olhos para as teclas de marfim abaixo dos meus dedos, mas assim que vejo quem está atrás dela, congelo, pasmado.

Em um elegante vestido de seda azul petróleo, num salto alto fino, segurando uma pequena bolsa de mão, Charlotte cruza o salão. Seu cabelo tão comprido está agora muito bem preso em sua cabeça, deixando escapar apenas uma única mecha estratégica na frente de seu rosto, que chama atenção para a impecável pigmentação em seu lábios, o rosado mais vigoroso em suas bochechas e os brincos em formato de gotas brilhantes em suas orelhas.

Ela anda como uma dama- Não! Como a dama mais bonita. Ela está magnifica; estonteante como eu nunca vi antes. Seus quadris se movem com graça dentro do vestido solto e é como se vestisse a noite, como se carregasse a mesma pelo salão fechado.

O que ela faz aqui? Sei que ela é incrível, mas o que faz num lugar assim, tão... esnobe? Entendo que não a conheço como gostaria, mas não imaginei que Charlotte se apeteceria com esse clima de futilidade e presunção. Mas, Deus, ela se encaixa tão bem em tanto glamour. Parece até que nasceu para isso.

Eu volto meus olhos para o piano novamente quando percebo que havia me distraído demais. Eu estou aqui a trabalho, afinal.

Oh não, eu estou aqui a trabalho e não pretendia contar a ela sobre esse emprego.

E se ela me ver? Será que ela já me viu? Não quero que ela saiba sobre minha péssima situação financeira, já é humilhante demais morar onde eu moro e não ter muito o que oferecer a ela. O que ela vai pensar se me ver aqui?

Verônica a conduz para uma mesa de dois lugares não muito longe do meu campo de visão e eu as vejo trocando palavras curtas. Charlotte sorri de lábios e um garçom se aproxima, afastando a cadeira para ela se sentar. Ela fica de perfil pra mim e passa os dedos pela mecha de cabelo em seu rosto. O mesmo garçom retorna e serve água na taça dela. Eles trocam algumas palavras e ele se afasta novamente. Ela fica sozinha e olha para a cadeira vazia diante de si, suspirando.

Espera um segundo. Mesa de dois lugares, restaurante francês, ela está linda como o luar... Estará aqui para um encontro?

Sinto minhas mãos tremerem levemente e encaro as mesmas. A essa altura, já não estou mais tocando e uma quantidade irritante de dúvidas percorre a minha mente em pânico.

Quais são as chances? De todos os restaurantes caros nessa cidade, ela tinha que ter um encontro justamente no que eu estou trabalhando. Quer dizer, só pode ser um encontro, certo? Ela e eu não temos um compromisso e à semanas atrás, a própria quase me empurrou para os braços de uma outra garota, logo após um dos momentos mais intensos que compartilhamos. Estaria eu equivocado em pensar assim?

Uma sensação ruim se instala no meu peito e o barulho ambiente se torna irritante. A gravata no meu pescoço me incomoda e eu levo os dedos até a mesma para tentar respirar melhor. O que está acontecendo comigo? Isso é fome? Não pode ser fome.

Viro o rosto para encará-la novamente. Charlotte está com os dois cotovelos sobre a mesa, seu queixo apoiado numa das mãos, enquanto ela escaneia casualmente o salão. Posso eu ter esperança de que ela tenha vindo jantar sozinha, só porquê sentiu vontade? Acho que não. Por qual motivo, afinal? Por que ter essa esperança, dentre tantas? Por que ficar sozinha, dentre tantos candidatos?

Me pergunto quem é o sortudo, então. Me pergunto onde eles se conheceram, se ele é gentil com ela, se a respeita. Me pergunto se ele já a tocou e se não, me pergunto se ela vai deixar isso acontecer e se eu vou ter que testemunhar.

Mas por que eu me importo tanto? Ela pode fazer o que quiser, onde quiser. Não é como se ela tivesse feito de propósito, ela não é assim... eu acredito. Isso é só uma coincidência, uma trágica coincidência.

"Com licença." Uma voz me chama atenção e eu desvio o olhar da imagem da dama distraída ao longe.

"Pois não?" Há uma mulher mais velha próxima ao piano, olhando diretamente para mim. Ela sorri com expectativa.

"Estava tocando Chet Baker, correto?" Indaga precisamente e eu aceno. "Poderia tocar I Fall In Love Too Easily? É o meu aniversário de casamento com o meu marido e essa música tocou quando nos conhecemos." Ela pede e isso serve como um lembrete do que eu deveria estar fazendo agora, ao invés de devanear.

"Mas é claro." Eu confirmo, retribuindo o sorriso dela como posso. "Felicidades, aliás."

"Obrigada, querido. Você toca muito bem. Obrigada." Ela é doce comigo e volta para perto de quem eu imagino ser seu marido com muita animação.

Encaro o piano e viro uma página do caderno diante de mim, achando a canção que foi pedida. Por sorte, eu havia selecionado três músicas desse mesmo artista e planejava tocá-las em sequência. Com isso, tiro as notas do instrumento e a melodia faz o casal mais velho sorrir largamente.

O homem se ergue da mesa e chama a esposa para dançar. Alguns olhares recaem sobre eles, já que são os únicos que começam a dançar no restaurante, mas nenhum deles se importa. Me faz sorrir genuinamente.

Os dois valsam lentamente, abraçados, provavelmente cochichando doces declarações enquanto revivem preciosas memórias. É como um lampejo de afeição num lugar tão frio.

"My heart should be well-schooled / 'Cause I've been fooled in the past..." Canto em murmúrio a letra da música, não resistindo, me deixando levar na felicidade deles. "...But still I fall in love so easily / I fall in love too fast."

Prolongo a melodia da música o máximo que consigo, não preparado para ver o casal se separar e voltar a sentar ainda. A essa altura, vários outros clientes prestam atenção neles e quando eu finalmente acerto a última tecla, para a minha completa surpresa, há uma salva de palmas. Ah, mas não foi para mim e sim, para o casal. Eu não me sinto mal, entretanto. Eles merecem essa.

"Harry?"

Eu engulo em seco e aperto as mãos, para canalizar um pouco da tensão que cresce em mim. Agora, parada ao lado do piano, está a bela dama de azul petróleo, me olhando com confusão e uma gota de aborrecimento. Percebo que ela está muito mais arrumada do que imaginei. Há maquiagem em seus olhos e de perto posso perceber também que seu vestido é muito mais elegante do que pareceu de longe.

Não há como fugir agora. Ela não só me viu, como resolveu vir até mim.

"O que faz aqui?" Questiona, franzindo o cenho, nada contente. "Isso é algum tipo de brincadeira?"

"O que? Não. Charlotte... Oi." As palavras saem arrastadas pelo nervosismo. A presença dela assim tão perfeita está me intimidando mais do que o normal, é difícil me concentrar em não gaguejar. Me lembro que ela fez uma pergunta e pigarreio antes de responder propriamente, "Eu só estou... tocando aqui. Você está linda, maravilhosa." Acabo deixando escapar o elogio.

"Você-" Ela suspira e fecha os olhos bem apertados, demonstrando estresse. Odiou tanto assim me ver aqui?

"Foi uma coincidência, Char." Eu ressalto para tentar acalmá-la, pois sinto que ela precisa. Ela está linda, mas parece tensa, bem tensa. Agora, perto de mim, posso enxergar isso. Será que ela está bem?

"Eu não acredito em coincidências, Harry." Ela rebate, duramente. Se eu estivesse em pé, teria dado um passo pra trás ao ouvir isso, mas apenas parto os lábios e desvio os olhos rapidamente.

"Eu só quis dizer que-"

"Esquece. Eu tenho que ir." Ela me corta e não hesita em me dar as costas e andar de volta para sua mesa. Só assim posso ver que seu vestido de seda tem as costas completamente nuas, revelando toda a pele e as pintinhas que ela tem. Seus quadris se movem hipnoticamente, estando tensa ou não, e isso me faz sentir ainda pior. O que há com ela hoje? Eu fiz algo errado?

Um impulso, que eu não sei de onde veio, me faz levantar do banco. Não quero que ela fique brava comigo, eu devo explicar o motivo de estar aqui. Infelizmente, meu gerente me lança um olhar repreensível ao longe e eu sento outra vez, arrumando a gravata no meu pescoço. Eu odeio esse lugar. Me coloco a tocar a primeira música que encontro no repertório e espio Charlotte novamente, entre uma nota e outra que tenho chance.

Há um homem sentado diante dela agora. Ele tem cabelos grisalhos, usa um terno que aparenta ser caro e tem um belo relógio no pulso. Ela gosta de homens mais velhos? O garçom oferece uma garrafa de vinho para ambos, mas o homem dispensa a mesma, o fazendo trocar por outra. Ela gosta de homens mais velhos e esnobes?

Eu quero que ela olhe pra cá, quero que ela me veja tocando esse piano com mais força do que eu precisaria, quero que veja o desgosto no meu rosto.

Mas pra quê? De que isso tudo valeria? Por que todo esse drama da minha parte?

Eles fazem os pedidos e são deixados sozinhos de novo. Ela continua tensa, não sorri e fala pouco. Se for um encontro, será o primeiro? Ela está nervosa? Ela gosta dele ao ponto de ficar sem palavras?

Num movimento despretensioso, o sujeito vira o rosto num ângulo que me permite enxergar sua cara e minha desventura se transforma em confusão, passando para esclarecimento logo depois. Eu já vi esse homem antes, mais especificamente ontem no apartamento dela. Foi ele que apareceu lá pela manhã sem avisar e estragou o meu clima com ela na cozinha. E isso não é tudo, pelo pouco que eu ouvi da conversa deles ontem e agora dando uma boa olhada no rosto dele, posso concluir uma coisa: isso é sim um encontro, mas não romântico como pensei.

Eu acho que ele é o pai dela.

Minhas bochechas esquentam e eu desvio o rosto imediatamente, focando apenas no piano. Como pude ser tolo assim? Como pude me deixar levar com tão poucos fatos? Pior, com nenhum fato. Eu só a vi incrivelmente bonita e surtei por dentro.

Agora tudo faz sentido.

Ontem, fomos interrompidos no meio de algo que eu nunca desejaria ter sido pego e Charlotte não ficou nada feliz, o que é totalmente compreensível. Quando eu percebi que eles iam entrar no apartamento, corri da cozinha para o quarto e me vesti. Não consegui ouvir com clareza a conversa deles, mas ouvi a palavra 'pai' e isso foi o suficiente para me fazer ir embora o mais rápido possível. Contudo, nem mesmo a minha pressa e constrangimento me impediram de sentir o clima pesado entre eles.

Ela nunca me falou sobre sua família, eu também nunca perguntei (porque não sou permitido), mas vendo a expressão igualmente fechada dela na mesa desse restaurante, entendo que eles provavelmente tem uma relação complicada.

Por isso ela não gostou de me ver aqui.

Será que ela tem vergonha de mim, por isso não queria que seu pai me visse aqui? Eu sei que temos uma regra sobre confidencialidade, mas será que essa regra é só para manter nossa privacidade ou porque ela sabe que as pessoas torceriam o nariz ao descobrirem que é com um cara como eu que ela rola nos lençóis à noite?

Drama, drama, drama. Eu tenho que parar.

Enquanto toco uma nova canção, espio a interação deles o mais sutilmente possível. O homem é o que mais fala e a expressão dela não muda muito. Vez ou outra noto um mínimo sorriso curvando seus lábios, mas é claro pra mim que foi praticamente forçado. Ela esfrega as pontas dos dedos da mão direita sobre a toalha da mesa com inquietude e é doloroso entender que ela está desconfortável lá, com ele.

Eu não posso fazer nada agora, além do meu trabalho de pianista, apesar de eu querer muito resgatá-la e sumir desse lugar. Ambos temos um bom motivo pra fugir, mas me falta o direito de me meter nesse assunto. Somos apenas conhecidos de foda, afinal.

Não posso evitar indagar o que o pai dela diz tanto, o que eles tem tanto pra conversar, assim como o motivo pelo qual ela está tão fora de órbita ao lado dele.

Os pratos deles chegam e Charlotte se porta com muita educação ao se ajeitar pra comer. Ela está tão elegante naquele vestido, tão madura com aquele penteado... E num lugar assim... O pai dela também se porta muito bem, mas já era de se esperar. Ele parece ser o típico empresário bem sucedido, que janta em lugares assim diariamente.

Diariamente. É necessário muito dinheiro pra isso. As roupas, os acessórios... Indo ainda mais distante, o babaca do ex-namorado com toda aquela empáfia, o sujeito na sex shop e os comentários cheios de escárnio, o papo não esclarecido sobre a ida da Charlotte a universidade de Direito...

Acho que as peças estão se juntando aos poucos na minha cabeça.

Espio novamente a mesa deles, mas ao invés de ver os dois jantando pacificamente, uma Charlotte bem aborrecida se levanta abruptamente da cadeira e atira o guardanapo sobre a comida. Ela cospe palavras ríspidas para o homem grisalho, que tem uma carranca no rosto, e agarra sua pequena bolsa de mão para se afastar dali. Foi tudo tão rápido, que eu só tenho a chance de ver a seda azul petróleo voando entre as outras mesas, os saltos dela marchando em direção a saída.

Que diabos aconteceu?

Me levanto do banco e a canção que eu estava performando se interrompe. Tenho vontade de gritar o nome dela, meu coração batendo forte no meu peito, mas não há como eu fazer isso sem perturbar o clima do restaurante inteiro e atrair atenção negativa pra mim mesmo. Esse ainda é o meu trabalho.

Ousadamente, aproveito que meu gerente não está no salão e deixo meu posto, caminhando apressadamente até a dama de azul quase desaparecendo de vista. Chego perto o bastante para que ela me ouça, então chamo seu nome, "Charlotte. Charlotte." Ela se vira com um olhar arregalado e ao me reconhecer, desacredita, mas se recompõe rapidamente. Ela para por um segundo e isso é o suficiente para que eu tome seu antebraço e chegue bem perto, "Char, por favor, não vá ainda."

"Harry, o que está fazendo? Eu tenho que ir." Ela solta seu braço, mas eu logo acho sua cintura para segurar, "Harry-"

"Me escuta. Não sei o que houve, mas sei que quer partir, então me espere lá fora." Charlotte estava pronta para negar, mas minhas súplicas a cortam. "Por favor. Eu já estou saindo, não vai demorar nada. Me espere lá fora, eu preciso falar com você."

Os olhos de mel que me encaram confusos tem um vazio tão vasto, que faz meu estômago se apertar. Ela não está bem, esse tal jantar não saiu nada bem. Sou apenas o pianista aqui, apenas o conhecido de foda dela, mas não posso ver esse vazio e não fazer nada. Ela não merece isso, o que quer que seja.

"Por favor." Sussurro ao tocar a bochecha dela delicadamente com o dorso de minha mão.

A respiração dela estremece e ela assente, retomando seu caminho até a saída logo depois. Era só o que eu precisava. Agora tenho que achar um jeito de sair logo daqui.

Me viro sobre os calcanhares e sobressalto ao me deparar com um dos clientes que estava vindo nessa direção.

"Desculpa, senhor." Digo rapidamente, desviando para continuar.

Contudo, alguém segura o meu antebraço e me puxa. Quando dou de cara com cabelos grisalhos, me alarmo.

"Você é o sujeito que estava com ela ontem, não é? Quem é você? O que quer com a minha filha?" Ele interroga descontente, não poupando seu julgamento rígido ao me fitar.

Uma coisa é receber um olhar torto quando se é pego desprevenido, como ele me olhou ontem. Mas me parar assim e falar desse jeito comigo...

"Senhor, er... Deve haver algum engano." Digo a primeira besteira que vem a minha mente.

"Então não era você o sujeito que saiu do apartamento dela ontem? Está dizendo que não conhece a Charlotte?" Ele aperta o meu braço, ainda preso em seus dedos, e eu lhe lanço um olhar indignado. Isso está mesmo acontecendo?

"Mmm... Era eu sim, mas-"

"Sabe quem ela é? Ou melhor, sabe quem eu sou?" Ele aponta para o próprio peito, arrogância em cada sílaba.

Olho ao redor e noto que alguns dos clientes estão encarando, assim como os funcionários. Esse homem está mesmo fazendo uma cena no meio desse restaurante? Ele não está gritando ou algo assim, mas está chamando atenção demais pra nós.

"Olha pra mim quando eu falo com você, rapaz." Ele dá mais um puxão no meu braço, me fazendo arregalar os olhos em descrença. "Deve pensar que pode se aproveitar dela, já que, pelo que parece, você não tem onde cair morto. É só o pianista, não é? Se bem que, usando esse terno barato, pode ser o moleque do lixo." Zomba, me analisando dos pés a cabeça.

"O senhor não pode-" Tento me defender, mas ele me corta de forma rude.

"Fique longe dela." Ordena, apontando o dedo na minha cara. "Minha filha vem de um padrão elevado e pianistas como você não alcançam esse padrão."

"Isso com certeza é algum engano." Murmuro entredentes, irritado com tanta ofensa gratuita.

"Engano é pensar que poderia tirar algo dela. Fique longe." Ordena uma última vez e me solta finalmente, rumando para a saída a passos firmes.

Levo a mão até o antebraço que ele apertou e o encaro partindo, sentindo toda a raiva destilada para mim injustamente poluir o que restou do meu bom humor para o dia de hoje. Que droga foi essa? Ele estava me acusando de que, afinal? Quem ele pensa que é pra tratar uma pessoa assim?

"O que você pensa que está fazendo fora do seu banco, Harry?" A voz irritada do meu gerente me chama atenção e eu acabo revirando os olhos, sem nenhuma gota de jurisprudência para me guiar agora. Eu já estava cansado, mas esse episódio com o pai da Charlotte foi a gota d'água.

"Mon Dieu! Você está horrível." Ele acrescenta, "Se estiver doente, vá embora. Não quero que contamine os clientes." Declara, enojado por alguma razão.

Sinto minha testa fria e quando a toco, entendo que estou suando de nervoso. Isso pode ser útil pra me tirar daqui e ir encontrar a Char. Ela ainda está lá fora me esperando (tomara).

"Sim, Sr. De Luca. Estou me sentindo... não muito bem." Minto, usando a ideia que ele mesmo me deu com sua afetação.

"Sendo assim, vou dispensá-lo mais cedo. Se estiver mal assim amanhã, nem venha."

Não fico perto dele por muito tempo e trato de ir pegar as minhas coisas o mais rápido possível. A lembrança de que o pai de Charlotte saiu pelo mesmo lugar onde eu pedi que ela me aguardasse, está me deixando aflito.
Passo pela recepção como o vento, ignorando o adeus que Verônica me dá, pois minha mente está apenas na esperança de encontrar Charlotte lá.

Assim que piso na calçada, olho para a esquerda, mas vejo apenas carros estacionados, clientes saindo e entrando. Olho para a direita e... O vestido azul petróleo fica preto por conta da falta de iluminação, a barra voando suavemente com a brisa noturna. Não sou um especialista, mas pela forma como está de braços cruzados e andando de um lado para o outro, sei que está impaciente. Ela coça os cabelos em sua nuca e suspira, entediada.

Ela esperou, como eu pedi. O estresse que passei a poucos minutos se torna insignificante com essa visão dela, meu coração descompassado.

"Ah, já chega." A ouço reclamar e seus saltos se movem sobre o concreto. Charlotte já ia partir sozinha, mas ao se virar, me vê e se interrompe, arfando com o leve susto. Passando a mão pela saia do vestido, ela engole em seco e fecha a expressão, "Eu já ia embora. Disse que não ia demorar." Informa, séria - ou tentando o melhor que pode passar essa imagem.

"Me perdoe, Char. Eu tive um... imprevisto." Omito, vendo ela arquear as sobrancelhas.

Devo contar a ela? Foi o pai dela que começou àquilo, mas eu devo estressá-la com isso? Ela já parece estressada o suficiente e eu não quero causar mais danos.

"O que quer comigo, afinal? Por que me mandou esperar aqui fora?" Ela cruza os braços, apertando sua pequena bolsa em uma das mãos.

Devo contar a ela sobre isso também? Sobre como detesto do fundo do meu coração vê-la chateada ou zangada e como isso me faz sentir?

Ando devagar até ela e Charlotte descruza os braços, analisando meu corpo por alguns rápidos segundos.

"Está usando terno. Nunca imaginei..." Comenta, mais pra si mesma do que pra mim.

"Então andou imaginando o que?" Provoco e paro bem perto dela, enfiando as mãos nos bolsos.

Charlotte dá de ombros e desvia o rosto, mas se mantém no lugar. A única mecha de cabelo que toca seu rosto me chama e eu a toco, a colocando para trás de sua orelha, fazendo sua dona encontrar os meus olhos no silêncio que se formou entre nós. Ela está mais alta hoje por conta do salto e me deixa mais perto de seu belo rosto.

"Não quero ser indelicado... mas eu vi que não tocou no seu prato." Começo dizendo e ela franze o cenho, desviando o olhar novamente.

"Estava bisbilhotando? Não era da sua conta." Ressalta e apesar do aborrecimento, noto tristeza também em seu tom.

"Eu não estava. Não muito." Ela me repreende silenciosamente, mas só abaixa o olhar logo depois.

"Char?" A chamo e recebo sua atenção de novo. "Você está com fome?"

"Por que se importa?" Rebate e o vazio em suas íris me entristece pela segunda vez na noite.

A forma como estava tensa, a forma como saiu daquela mesa, a forma como meu braço foi agarrado logo depois - uma hostilidade que ela certamente recebeu também. Ela não merece nada disso, não mesmo.

"Porque eu quero cuidar de você agora."

N/A: faixa número 6 do álbum Fine Line 👩🏽‍🦯

Deixem seus lindos votos, meus amores.

Espero que tenham gostado do capítulo.
xx

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