Um Natal Por Acidente [GaaLee]

By whatapanda_

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Gaara era para estar de férias. Deveria estar de férias, mas não. Aqui estava ele, no corredor temático de um... More

Prólogo
Reencontros
Supresas
Kankuro, pelo amor de Deus
Biscoitos quentinhos e um pouco de vinho
Tradições
Sobre passeios e patos (Parte 1)
Sobre passeios e patos (parte 2)
Sobre passeios e patos (parte 3)

Uma Longa Noite

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By whatapanda_


Assim, após uma longa crise de consciência trancado na escada de incêndio de um condomínio (e depois de tentar todas as técnicas de abrir fechadura que havia aprendido nos filmes do Macaulay Culkin e descobrir que eram uma farsa), Gaara estava plantado na calçada em frente à conhecida casa que estivera momentos atrás.

A mala pendurada pesava nos seus ombros doloridos e seu estômago reclamava na base de um nó. Em sua mão, uma sacola com uma garrafa de vinho que Kankuro havia deixado junto de um bilhete engraçadinho escrito "divirta-se" que teve a sorte de não ser arrebentada na parede mais próxima. Gaara gostava de vinho.

Seu pé ainda estava latejando desde que desistiu de tentar abrir a porta por maneiras civilizadas e partiu para o chute. Mas então aquele casal desocupado voltou e Gaara achou por bem ir se apresentar para o porteiro como o dono das próprias coisas antes que fosse obrigado a passar a noite em outro lugar.

Ainda havia tempo de voltar atrás, não é? 

Ainda tinha como encontrar alguma espelunca de última hora numa cidade turística numa época turística para passar a noite. E com certeza ainda havia uma infinidade de trens disponíveis para pegar logo cedo quando acordasse, jogasse uma água na cara, um gelo na testa e pudesse voltar a aterrorizar ocasionais reuniões de família.

Gaara permaneceu parado, encarando a guirlanda pendurada na porta.

Quando era pequeno costumava imaginar que, como nos desenhos animados, tinha um pequeno diabo e um pequeno anjo que surgiam em momentos de dificuldade para soprar achismos nos seus ouvidos. O anjo tinha o rosto de Temari e daria os mais cuidadosos, sábios e éticos conselhos da sua vida... O diabo era apenas Kankuro.

"Dê uma chance pra você."

Gaara esfregou a orelha com força para afastar a voz dali, hoje o anjo parecia estar de folga. Ele juntou toda a coragem que vinha descobrindo ter e estendeu o dedo, apertando a campainha com firmeza.

Nada.

Essa era essa a deixa. O sinal para que desse meia volta e fosse cuidar da própria vida, antes que a própria vida cuidasse dele. Mas hoje era um dia. Um daqueles dias. Um especial de todos os loucos. E Gaara apertou de novo.

Ainda nada.

Lee e Metal haviam saído?

Encostando a orelha na porta, Gaara conseguiu escutar a voz de Lee falando alguma coisa muito mais alta que o tom de costume. Não que o tom de costume fosse algo próximo de ser considerado baixo, mas Lee não parecia ser o tipo de cara que ignorava a campainha. Ele só tinha um braço disponível para qualquer coisa, aliás, podia precisar de ajuda.

Com uma boa causa por trás de suas ações, Gaara rodou a maçaneta. A porta abriu. Perigoso. E se fosse uma pessoa tentando invadir a casa?... E se fosse uma pessoa mal intencionada tentando invadir a casa?

Precisava se lembrar de reclamar disso depois, por agora apenas empurrou devagar, dando batidinhas para avisar que estava entrando.

– ...Olá? Lee?

O piso de madeira do corredor rangeu com o taptap de passinhos rápidos, seguidos por um grito infantil.

– Metal Lee, volte aqui agora mesmo! – a voz de Lee ameaçou.

– Não quero! Não quero! Tá frio!

– Aqui fora está frio! A água está quente!

– Nããão!

– Vem aqui seu porquinho, você vai pegar um resfriado!

Gaara riu em silêncio enquanto Metal fazia oinc oinc oinc em sua fuga. Não pensou que devesse interferir quando viu a pequena figura da criança nua correndo em direção à cozinha.

De onde estava dava de frente para o arco da entrada da sala de jantar, uma abertura que interligava os quartos e a cozinha. Não parece que qualquer um dos dois havia percebido que estava ali porque, logo em seguida, Lee atravessou pela mesma passagem com o braço ainda imobilizado. O outro braço segurava uma toalha na frente do corpo.

Apenas isso. Nada mais.

– Te peguei!

Gaara escutou o inferninho dos gritos de Metal no outro cômodo. E Lee apenas tinha a mão esquerda livre, o que queria dizer...

– Haha, você tá pelaaaado! – o menino guixou.

– E você vai pra panela!

Com o som dos passos percorrendo o caminho de volta, Gaara deu dois passos pra trás e fechou a porta. Ele calmamente caminhou até o batente do terraço, se sentou, puxou o celular do bolso e se certificou de enviar uma mensagem, antes de qualquer coisa.

"Kankuro, eu vou matar você."

Os próximos 20 minutos passaria ali, morrendo de frio e procurando opções de hospedagem no Trivago de lugares próximos onde não corresse o risco de pegar pulgas ou contrair tétano.

Gaara suspirou em sua própria desgraça.

Era tão redondinha e firme que parecia desenhada a mão. Daquelas que dá vontade de bater, ou de morder. Ao vivo. Sem photoshop.

Ele beliscou a própria cara para se recompor.

Não queria ter que olhar pra bunda, digo, pra cara de Lee, ou melhor, ele nem sabia como que ia fazer para olhar na cara de Lee, mas quanto mais tempo ficava ali mais corria o risco dos vizinhos chamarem a polícia.

Ele espanou a neve que se acumulou em suas calças, inspirou fundo e apertou a campainha novamente. Quando Lee atendeu, ainda estava com os cabelos úmidos e uma toalha em volta do pescoço, o que por si só já despertava gatilhos terríveis mesmo que estivesse completamente vestido.

Ele parecia bastante surpreso e também preocupado. Também pudera, recepcionando uma aparição na porta de casa, no meio do inverno, com um chifre crescendo na testa e um hematoma vermelho na bochecha. Mas já que Gaara estava no inferno, tava na hora de abraçar o cão.

[...]

Kankuro havia dado autorização. Nesse caso Gaara pretendia jogar na conta dele com gosto, mesmo não se sentindo tão confiante quanto imaginava ao narrar aquela história estranha de abandono parental.

Mas toda essa confusão significava que ficaria. Pelo menos, que ainda pretendia ficar por mais uns dias. Lee ficou feliz. Metal ficou feliz. Gaara se arrependeu no minuto que colocou o pé pra dentro.

Lee não iria o colocar pra fora, isso nem passou pela sua cabeça. Mas Lee seria capaz de sugerir dormir no quintal só para Gaara ficar confortável em uma casa que não tinha espaço e isso gerou uma discussão embaraçosa onde Gaara realmente precisou contornar uma oferta desse tipo em certo nível.

O sofá estaria bom. O sofá estaria ótimo. Sinceramente, até mesmo um chão de cimento batido estaria ótimo contanto que ele tivesse uma parede onde pudesse encostar e fechar os olhos pelas próximas horas.

A casa de Lee não era muito grande porque não precisava ser, mas era preparada para o frio miserável daquele lugar. Equipada com aquecedor interno e revestida com madeira em pontos específicos para tornar o lugar quentinho e aconchegante.

Havia um quarto de hóspedes, mas estava sendo utilizado como depósito de brinquedos, equipamentos de academia e todo tipo de tralha. Nem se quisessem não pretendiam mexer naquilo agora. Decidido, Gaara deixou suas coisas em um canto da sala que não atrapalhasse e rumou para o banheiro como se sua vida dependesse disso.

O cômodo de azulejos era um pouco frio, por isso girou o registro de água no ponto mais fervente que conseguiu e deixou a banheira enchendo. O vapor começou a tomar espaço no ambiente enquanto vistoriava a própria imagem no espelho sem muita boa vontade, o machucado em sua testa chamando toda a atenção.

Era de bom tom trocar aquele curativo que já estava ficando velho, mas Gaara estava sem coragem de encarar ou, principalmente, mostrar pra alguém o nível do estrago.

Com cuidado, puxou a gaze até o fim só pra se arrepender depois. Tinha conseguido uma raladura bem feia e um galo inchado cheio de pontos roxos e azuis. Ótimo, maravilha. Ia ficar uma marca. O sangue já estava seco e não sentiu dor contanto que evitasse tocar, mas o aspecto era terrível.

Gaara encarou seu reflexo meio desmotivado... Estava mais pálido do que de costume e suas olheiras pareciam maiores. A cor escura do seu cabelo parecia que contrastava de maneira ruim com tudo isso e deixava com aspecto de uma pessoa doente.

Nem a mãe, nem o pai dele, muito menos os irmãos tinham uma aparência tão mórbida assim. Quando era adolescente era a coisa mais legal do mundo parecer com um boneco de voodoo, mas a partir do momento que você estava tentando impressionar alguém com mais de 15 anos de idade que não tivesse interesse em necrofilia, se tornava complicado.

Não precisava pensar muito a respeito, então não pensava. Em casa todo mundo já estava acostumado a olhar pra ele e não se chocar mais com nada, apenas aceitar. Shukaku também não teria do que reclamar enquanto tivesse seu cantinho, caixinha limpa e comida no prato, mas aqui... Gaara só queria que tivesse uma maneira de causar uma impressão menos... impactante.

Estava ficando velho pra essas coisas e ia precisar contar com o resto de autoestima que ainda tinha e o pouco de sorte que não tinha porque, a essa altura, não tinha como Gaara comprar uma cara nova. Foi o que buscou se convencer enquanto afundava até a alma na banheira quente, ali ficando pelo tanto de tempo que tinha direito.

De cabelo penteado o machucado ficava pior ainda, mas não havia nenhum saco de papel por perto pra fazer dois furos e sair com ele na cabeça. Pelo menos podia ficar mais confortável agora que finalmente conseguiu escaldar metade do que estava pesando em sua carcaça cansada.

Quando voltou para a sala, Lee estava no sofá com o braço ruim apoiado numa almofada e fazendo alguma brincadeira bobinha de mãos com Metal – e estava perdendo porque era duas contra uma. Ao lado deles uma pilha limpinha de travesseiros e cobertores que estavam pedindo a Deus para serem usados no seu leito de morte. Talvez se ele corresse conseguisse chegar lá antes que...

No exato momento que o viu, o rostinho de Metal se contorceu. Infelizmente, o tanto que Gaara podia contar com a discrição de Lee não se aplicava ao filho dele. Ele bufou, desistindo da vida, e buscou um lugar no canto do sofá.

– O que?

– Por que tem um mondongo na sua cabeça?

Ah, que bênção.

Lee não havia se manifestado.

– Hm, Metal por que você não vai pegar sua caixinha de remédios? – pediu ao filho, sem muitas comoções. Gaara tentou retrucar, mas ele foi mais ligeiro – Antes q ele comece a dizer que não precisa. Vai.

Com uma missão estabelecida, Metal saiu correndo disparado para um dos quartos e retornou rapidinho com uma caixa branca toda enfeitada com adesivos nas mãos.

Gaara tentou interceptar o pacote, mas ele entregou direto nas mãos de Lee.

– A médica só mandou colocar gelo. – disse.

Lee riu.

– Sei. Mas você não vai gostar de acordar com fios de cabelo ou roupa de cama grudada nisso aí, então seja bonzinho.

Disse tudo em um tom de voz que já Gaara tinha ouvido antes. O mesmo que utilizou quando precisou repreender Metal por fazer alguma coisa errada. Ele se sentou de lado para ter acesso ao ferimento, com o remédio em spray na mão.

– Prometo que não vai arder.

Gaara riria na cara dele se não fosse descortês. Tinha medo de poucas e exclusivas coisas, certamente não da dor.

Certamente não tinha medo de sentir os calor dos dedos de Lee na lateral do seu rosto. Nem de sentir o peso se movendo na almofada conforme Lee se inclinou pra frente. E definitivamente não tinha medo da aproximação abrupta e repentina do rosto de Lee perto do seu.

De todas as coisas que fizeram pouco sentido no dia de hoje, essas seriam o topo da categoria. Caso fossem.

Extremamente certo de que não era nenhuma dessas coisas que o deixava intimidado, ele rodeou os braços em torno da própria barriga agitada e fechou os olhos.

Primeiro a mão afastou seus cabelos para trás. Depois uma borrifada. Outra. E então uma gaze suave parou as gotas de escorrerem, fazendo cócegas em sua pele. Gaara não podia ver, e ainda bem que não, mas o rosto tão perto do seu estava começando a rosar.

– Esse! Esse! Eu escolho esse!

Metal Lee estava animado por alguma coisa e Gaara percebeu a firmeza do band-aid sendo pressionado contra sua testa. Um quadrado, dos grandes.

Sequinho, protegido e confortável, Gaara abriu os olhos. Mas a mão de Lee ainda estava em seu rosto, e ele estava sorrindo com carinho, e Gaara não conseguiu formular um só pensamento que não envolvesse taquicardia ou falta de ar.

– Prontinho, viu? Bem melhor.

Os cantos de sua boca estavam se retorcendo de novo como se quisessem subir e suas bochechas estavam quentes, mas... Não era uma sensação ruim. Era desesperador. Angustiante. Provavelmente um dos maiores martírios da sua vida. Mas passava longe de ser ruim.

Apoiado nas pernas do pai, Metal estava atento e curioso, supervisionando tudo direitinho.

– Você não vai beijar?

A pergunta arrebatou a sala como um raio partindo o chão durante uma tempestade em alto-mar. Sem resposta, Metal ergueu o braço ilustrando o que queria dizer.

– Tem que beijar pra sarar logo!

Ele está falando do machucado.

Claro que é o machucado. Desgraça. Calamidade. Claro que é.

Gaara apoiou o braço no encosto do sofá sentindo a alma desfalecer.

Lee tossiu com força e então riu, sem saber se era um riso de vergonha ou de ternura por Metal ser tão bonitinho. Ele ergueu a mão e acariciou a cabeça de seu filho.

– Você quer beijar? – perguntou a ele.

– Eu posso?

A pergunta fez os arredores se cobrirem de expectativa. Gaara olhou para o rostinho animado em frente de si e decidiu que não tinha jeito. Curvou o corpo lentamente até conseguir ficar em uma altura que o menino alcançaria.

Bastante feliz em ter ganho essa responsabilidade, Metal Lee apoiou as pequenas mãos em cima do joelho do pai, se inclinou e deixou uma bitoca em cima do curativo estampado que tinha escolhido mais cedo.

Ele então bateu as mãos com euforia, como se tivesse se parabenizando pelo ótimo trabalho. Lee o seguiu, emulando animação. Gaara ainda não sabia muito bem como reagir a tudo isso, mas por um momento desistiu de brigar com seus instintos e emitiu um sorriso. Ele separou as mãos levemente e bateu palmas junto.

[...]

Da última vez que pensou a respeito Gaara havia jurado que, uma vez que tivesse se encostado para dormir, só acordaria se a casa estivesse pegando fogo ou se ele mesmo estivesse pegando fogo. Mas até aí parece q subestimou o nível de conforto que seu corpo poderia abdicar depois de causar um atropelamento e ter três crises nervosas em um dia.

Ele deu uma longa espreguiçada para alongar suas costas travadas. Sua cabeça ainda pesava e todo aquele frio infeliz estava começando a fazer o seu nariz escorrer. Mas Gaara se sentia bem.

A textura do curativo limpo em sua testa trazia conforto e havia visto, mais tarde em seu reflexo, que Metal tinha escolhido um band-aid estampado com macaquinhos. A lembrança o fez esboçar um sorriso que acabou morrendo junto com o vento.

Isso porque Metal era filho de Lee, e Lee era pai. Um ótimo pai.

Gaara mal conseguia ser tio direito.

Ainda estava aprendendo a ser gente, pra começo de conversa.

Ele bateu a cinzas do cigarro no parapeito da varanda, dando mais uma tragada enquanto observava as pequenas luzes coloridas enfeitando a beira do telhado sob sua cabeça. Brilhando com lentidão, uma por uma. Brigando contra a escuridão da madrugada.

Não estava nevando.

Quando era criança o natal costumava ser uma época especial.

Talvez o fato de ser criança tornasse o natal especial. É muito cômodo poder dormir até tarde, comer o que quiser, ganhar presentes, ver todos os seus tios favoritos e brincar durante o resto do feriado. Depois que você cresce e começa a ter que organizar a casa, cozinhar para um batalhão, trabalhar até tarde na véspera, recepcionar parentes insuportáveis e ainda limpar tudo quando acabar... a magia simplesmente desaparece.

Mas sua mãe amava cada pedacinho disso.

Era pela memória dela que seu pai insistia rigorosamente em continuar a celebração, mesmo que ninguém estivesse tão afim. Rasa diz que é uma das únicas coisas que ainda mantém a família unida... Como se não fossem necessárias outras formas de contato durante o ano para isso.

Gaara era um adulto e adultos acham o natal um saco, mas honram promessas. Adultos fingem que se importam por 24h para poder cumprir agenda e voltar pra sua vidinha distante onde poderiam novamente esquecer que possuíam qualquer compromisso religioso com aquelas pessoas por outros 364 dias.

Não, Gaara não detestava sua família.

Claro que sua adolescência foi difícil, mas isso porque a partida de Karura estava fora dos planos. E isso não era só sobre ele. Havia Kankuro e Temari, e também o velho Rasa, que comandou a família com uma rigidez quase militar enquanto tentava disfarçar o peso que perdeu e o pouco tempo em que seus cabelos se tornaram completamente brancos.

Sempre foi muito fácil brigar, e mais fácil ainda fingir que a briga não existiu depois. Muito a se exigir, pouco a se explicar. O tempo se encarregaria de curar o que estava doente e consertar o que estava quebrado. Mas, quanto tempo?

Gaara sempre soube que nunca foi o tipo de filho que se saia exibindo por aí aos parentes mais distantes e a tradicional reunião natalina tornava isso mais evidente do que nunca.

Temari era a filha mais velha, a mais responsável, madura, estudiosa. Saiu de casa para cursar uma universidade famosa na capital e lá conheceu o seu atual marido Shikamaru que provavelmente é um dos maiores pesquisadores do país.

Sério, o cara é brilhante. Atualmente deveria escolher dentre as três bolsas de PHD que conseguiu na Europa mas não teve como fazer pesquisa fora porque, como todo casal perfeito, eles haviam acabado de ter um perfeito garotinho.

Inteligência, maturidade, responsabilidade. Essa era a parte dourada da família.

Kankuro era um espírito rebelde. Aventureiro. Sempre teve certeza do que queria e conquistou sua liberdade bastante cedo. A lábia dele era quase um talento nato, a habilidade de comunicação incrível. Sempre teve tato com pessoas, senso de humor e uma criatividade enorme, o que o tornava o queridinho das reuniões em família.

Gaara era apenas... Gaara.

Ele não era nem a ovelha negra porque para isso precisaria ser uma ovelha. 

Notas medianas, zero traquejo social, problemático, antipático, solteiro, florista. Se ficasse num cantinho bebendo gemada até vomitar talvez pudesse dar a desculpa de estar se sentindo mal e escapar de todo o interrogatório irrelevante e comentários simpáticos sobre como as escolhas de vida dele são péssimas e medíocres.

Bem, aqui está ele. Baforando um maço de cigarros na sacada de uma casa de família, bem onde judas perdeu as botas, e com certeza em direção a mais uma escolha de vida péssima e medíocre.

A porta rangeu em suas costas assim que ele chutou o batente de madeira. Gaara teve o reflexo de engolir a própria bituca apagada no susto, mas jogou dentro do bolso do casaco e se endireitou bem a tempo do rosto de Lee surgir enterrado em um cachecol grosso.

– Brr... aqui fora parece uma geladeira. – ele reclamou para ninguém em específico, esfregando o braço protegido por um tecido de lã – O que foi? Caiu da cama?

Era a última pessoa que Gaara gostaria de ver agora.

– Eu... não durmo muito.

Iniciou, sem saber como se justificar. Ou porque devia se justificar. Se devia se justificar. Não era de todo mentira, mas Gaara estava praticando contenção de danos em ocultar de Lee qualquer informação sobre desconforto e o sofá

– E você? O sol nem nasceu.

– Relógio biológico de cozinheiro. – Lee comentou suavemente, erguendo a caneca fumegante que tinha na mão – A cafeteria precisa estar aberta, limpa e atendendo a partir das 7h, e, depois que você acostuma...

– Parece uma droga.

O homem abriu um sorriso gentil, caminhando até parar ao lado de Gaara na sacada. Os dois olhando para as ruas vazias cobertas de branco.

– É sim. Mas é o pouco de tempo que tenho para mim, então tento aproveitar o silêncio do jeito que posso. Não dá pra correr agora, então estou entediado.

– Correr. Nesse frio?

– Você ficaria surpreso com os benefícios que...

– Lee, eu já estou surpreso. – Gaara inclinou a cabeça em direção à tipoia, mudando de assunto – Como está o seu braço?

– Dolorido. Mas vou sobreviver. E a cabeça?

– Parece que estou equilibrando uma bigorna. Mas vou sobreviver.

Lee ainda estava rindo. Talvez por isso Gaara não sentisse necessário subir a guarda de maneira tão frenética. Ou talvez não tivesse tanto a energia necessária para tal.

Naquele momento Lee era apenas companhia, neve e silêncio. Era conforto.

– Então... Você fuma?

Lee estava bebericando o que tinha trazido, mas talvez tenha conseguido sentir no ar o homem imediatamente ficar tenso do seu lado, porque se apressou em acalmá-lo.

– Gaara, está tudo bem.

Gaara deixou a cabeça cair para trás, em desgosto, encostando-se à parede da entrada. Um respirar profundo deixando seus lábios no formato de uma nuvenzinha de vapor. Lee estava prestando atenção.

– Só quando estou nervoso.

– E você está nervoso por...?

Por onde poderia começar? Gaara não conseguia imaginar a droga de um único motivo pelo qual não estaria nervoso. Os olhos de Lee não demonstravam expectativa ou curiosidade, eles só esperavam.

Ele apertou os punhos dentro dos bolsos e enterrou o rosto na gola grossa, em silêncio. Existiam tantas perguntas que achou que Lee podia fazer. Que iria fazer. Mas ele não perguntou mais nada, apenas bebeu de sua caneca.

Acima deles o céu começava a arroxear com a perspectiva do amanhecer.

– Por que não mencionou que tinha um filho?

Quem perguntou foi Gaara. Lee claramente não esperava por essa, porque o olhou em sincera confusão.

– Han? Não mencionei?

Gaara negou com a cabeça. Lee coçou a bochecha, envergonhado.

– Metal faz parte da minha vida a tanto tempo que as vezes eu me esqueço que pode ser incomum. Desculpe por te deixar sozinho com ele. Sei que ele pode ser muito... intenso. As vezes.

Gaara se perdeu alguns segundos em torno da palavra "intenso", achando gentil demais... Metal era um furacãozinho.

Existem poucas coisas mais perigosas do que uma criança que tem plena consciência do seu poder. No caso, Gaara acredita que existem pouquíssimas coisas mais perigosas do que uma criança com os genes de Lee que tenha plena consciência do seu poder.

– Ele me mostrou a foto do natal no antigo asilo.

– Você viu? Eu ganhei o álbum do meu pai uns anos atrás. Veio recheado de memórias antigas. – ele se entreteve enquanto contava sobre – Eu não me lembro muito do velho natal de caridade, nem porque você estava lá, mas ele me contou que foi depois dali que eu comecei a querer aprender a cozinhar. Então acho que foi um dia especial.

– Nisso o seu filho foi mais esperto que você. Minha mãe organizava o Natal de caridade. Ela quem comandava a cozinha.

Lee olhou em sua direção como se fosse mais importante ver suas palavras em vez de ouvir. E então olhou para lugar nenhum. Ele inspirou repentino e alto.

– Sua mãe! Ela que fazia o pudim? Aquilo era um pudim? Ou era um bolo... Eu nunca vi nada parecido. Oh, você não sabe a receita, sabe? Eu adoraria dar uma olhada!

Gaara olhou para os olhos diante de si, quase sendo tragado pela animação.

É claro, o pudim de natal.

Não era qualquer pudim. Era uma receita de família que levava quase um. mês para ficar pronto porque era necessário ficar curtindo na mistura por vários dias. Gaara não conhecia os detalhes porque era terminantemente proibido de adentrar na cozinha. Ele e todas as crianças da casa. O único que costumava se aventurar era seu pai, isso até a sua mãe se estressar e gritar com ele em algum momento.

Rasa ainda era o responsável pela ceia, mas nunca mais fez o pudim desde que Karura morreu.

– Eu não sei. – respondeu, pensativo. – Mas posso procurar.

Lee fez um barulhinho agudo e encolheu o ombro, comemorando a vitória do jeito que podia com um braço machucado e o outro ocupado. Gaara achou graça.

– Eu sabia que havia um motivo pra eu encontrar você depois de tanto tempo!

– Você parece genuinamente feliz.

– ...Eu não deveria?

A pergunta deixou o ar da varanda um pouco denso. Gaara suspirou, se arrependendo de ter quebrado o clima leve com o peso de uma marreta.

– Eu não costumo causar esse tipo de reação. – e lá vai ele – Pelo menos não por muito tempo... Parece que existe uma força invisível que me joga de qualquer jeito contra as pessoas. E de um jeito que elas sempre saem perdendo.

Lee ficou em silêncio enquanto ele falava. As palavras tragaram toda a felicidade recente de seu sorriso como se fosse um buraco negro de emoções e agora os dentes só permaneciam à mostra feito um retrato estático. Era isso o que fazia. Era isso o que queria dizer.

Talvez o silêncio significasse que Lee tivesse entendido.

– Eu acho que você tem razão. – comentou – Essa força invisível te jogou em cima de mim de todo jeito. Mas eu não sinto que perdi nada... Eu me sinto sortudo.

Havia sinceridade nas palavras dele, dava para perceber. Mas o que devia aliviar, só fazia Gaara sentir angústia. Ele o olhou em expectativa, embora não conseguisse dizer que tipo de confirmação estava procurando.

– Por que acha isso?

Lee voltou a se apoiar no parapeito, do mesmo jeito que Gaara estava antes dele chegar. Gaara aguardou pelo que tinha a dizer.

– Quando eu olho para o passado eu me lembro muito de você. Um menino quieto demais, zangado demais.

– Parece assustador...

– Sozinho, eu acho. Fico pensando no que aconteceria se não tivesse havido aquela confusão. Se você não tivesse que ir embora.

– E você queria ser meu amigo?

– Eu queria ser seu namorado.

A resposta sem nenhum titubeio o pegou desprevenido e os olhos de Gaara cresceram duas vezes o seu tamanho. Aquela caneca não tinha tequila, tinha?

Lee mantinha um tom nostálgico enquanto falava, quase caloroso, como quem revisita boas lembranças.

– Eu ficava planejando assuntos para conseguir falar com você. Ficava pensando se algum dia iria poder fazer você rir, ou segurar a sua mão. Então quando tiraram o meu nome do pote de maionese junto com o seu, eu nem consegui dormir.

Gaara respirou e fez uma pequena pausa, enrugando a testa.

– Mesmo que fosse para lutar?

– É claro. Não existe ligação mais intensa do que a entre dois homens prestes a trocar punhos!

A maneira como Lee ergueu a caneca numa confiança vigorosa fez Gaara soltar um riso pelo nariz.

– Não sei se isso faz sentido na minha cabeça.

– Você descobriu que eu existia, não foi? – quando ele virou o rosto na sua direção, Gaara pôde ver que estava profundamente envergonhado – Ei, não ria! É estranho falar tudo isso olhando pra você anos depois. Estou morrendo aqui.

Gaara estava rindo, mas não era pela graça em si.

– Se está morrendo, por que está me contando tudo isso?

– Porque você está aqui!

Naquela hora Gaara o olhou. Realmente o olhou.

Olhou para os olhos mais expressivos que já viu. Havia pensado isso antes mas, mesmo agora, não entendia como era possível serem de uma cor tão escura e refletirem tanto. Como a superfície de um lago à luz da lua. Metal tinha olhos como os do pai. Grandes, imersivos. Mesmo que o formato diferisse os dois.

Os ombros de Lee naturalmente se mexiam. Mesmo estando parado ele se movia, a respiração quase visível pelas suas narinas ao contato com o ar frio. Suas grossas sobrancelhas acumulavam pequenos cristais de gelo quando se movimentavam junto de suas emoções.

Lee tinha razão. Gaara havia descoberto que ele existia.

Não só naquela época, mas agora mais do que nunca. Sua existência jogada de encontro à dele como uma bicicleta desgovernada derrapando por cima do gelo.

– Você é mesmo um cara estranho. – comentou.

Os lábios à sua frente se comprimiram.

– Você também é.

O sol havia acabado de nascer.

As extremidades do rosto de Lee estavam coradas pelo vento. Gaara pensou que provavelmente também estava do mesmo jeito. Ele se enterrou mais no casaco e se aproximou mais do corpo ao lado do seu. Estava tão frio. Estava quieto.

– Queria ter te conhecido melhor naquela época.

– Eu estou bem aqui do seu lado.

Lee empurrou o ombro contra o dele. Gaara suspirou, se encostando mais naquele toque. Não muito, só o suficiente para derrubar as armaduras no chão.

"Dê uma chance pra você."

– É, você está.

Ele ergueu a caneca no vazio, como que a um brinde a sua mais recente epifania. Foi só estando tão perto que Gaara conseguiu sentir o cheiro que vinha dali.

– Chocolate? – Lee o olhou com um olhar culpado em exagero – Não está muito tarde para isso?

– Tecnicamente está muito cedo pra isso.

– Eu deveria me preocupar com a sua taxa glicêmica?

Lee riu da seriedade com que Gaara fez a pergunta. Principalmente depois de tê-lo flagrado entupindo o pulmão com nicotina antes de começar a julgar a sua xícara de chocolate. Mas, das três vezes que Gaara se deparou com ele comendo no dia de hoje, todas as três envolviam coisas com uma quantidade expressiva de açúcar.

Quem poderia julgar? Isso mesmo, ninguém. Por isso Lee deu de ombros.

– Quer experimentar?

– Não me dou com doces.

Primeiro o natal. E então a corrida. Agora os doces. Se Lee fosse competitivo do mesmo tanto que Gaara se esforçava para contradizer, podia jurar que estava sendo desafiado. Só que Lee era sim competitivo.

Ele tomou outro gole antes de falar contra a borda de cerâmica.

– Está sendo covarde.

Dessa vez foi Gaara que riu.

– Por não beber um chocolate.

– Por não beber um chocolate, numa noite de inverno, às cinco da manhã.

Gaara rolou os olhos, mas mordeu a isca. Ele estendeu a mão para buscar a caneca e Lee a tirou do seu alcance.

– Você não vai tomar chocolate mexido. Vem comigo.

Gaara o seguiu para dentro de casa, sentindo o próprio corpo amolecer com o aquecedor depois de tanto tempo trincando lá fora. No balcão da cozinha havia uma garrafa térmica que não estava ali quando tinha levantado.

Ele encarou com hesitação quando Lee serviu uma nova caneca, colocou dois marshmallows no topo e raspinhas de chocolate amargo em cima, caprichoso. Não havia nada de simples. Gaara não havia dito antes, e talvez Lee nem tivesse a exata noção do quanto, mas ficou feliz em saber que havia uma marca de sua mãe nas coisas que fazia com tanta paixão.

Gaara segurou o copo perto do rosto, sentindo o vapor aquecer a ponta do seu nariz. Doce demais para o próprio gosto.

– Como vou saber se você não batizou esse negócio?

Lee mostrou a ponta da língua, apoiado no balcão.

– Não vai.

– Tudo bem. Mas se causar um pico de insulina você vai ter que lidar com isso.

Gaara não queria soar rabugento como parecia. Como ele era. Mas se convenceu de que não devia se preocupar assim que ouviu a gargalhada bonita de Lee.

– Combinado. – ele ergueu o polegar para confirmar a promessa – Mas você sabe o que vem depois da euforia.

– O que?

– A queda.

Eram duas horas da tarde quando Gaara acordou completamente perdido e horrorizado no sofá da sala.

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N/A: Olá! :3
Consegui cumprir o combinado, então queria estatizar a quinta-feira como a data oficial de atualização disso aqui. Vamos ver como me saio daqui pra lá kk

Essa semana parece meio estranha no fandom. Um pouco quieta desde o mês passado. Espero que esteja todo mundo bem!

Se você está gostando, não esqueça de deixar uma estrelinha! Isso e comentários ajudam bastante na classificação da fic e faz com que a história seja sugerida a mais pessoas.
Obrigado pela companhia e até a próxima

OBS: Isso mesmo queridos, vocês não estao ficando doidos. Eu adicionei em cada capítulo uma ilustração de uma das cenas. Essa arte INCRÍVEL e MARAVILHOSA, e que me teve gritando por vários e vários dias comissionada por essa ar-tis-ta dona da minha existência @eliddz (twitter). E vou ter uma ilustração para TODOS os capitulos sim.

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