O nome da sombra - Crônicas d...

By FlaviaEduarda10

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Sombra já estava acostumada a ser apenas isso: uma sombra aos olhos da sociedade que a marginalizava há 9 ano... More

Reinado das sombras
Prisioneira de luxo
Cuidada e cheirando a rosas e lavanda
Mania do oráculo
Na escuridão
Mentiras
Calia
Entre uma coisa e outra
O castelo pela manhã
Cobras e outros animais
O treinamento
O belo mundo de porcelana
É necessário conhecer o oponente
Assassino
Limites
O último Galene
Apenas reparação
Pessoas e deuses
Espere o esperado
Confronto
Loucura da realeza
Sombra
A entrada não é pela porta
Os dias 14
Curiosidade
Sobre um belo vestido vermelho
Os nuances sobre a verdade
Presente
Tudo que viera antes
O primeiro furto
O buraco
Contradição
O que faz uma resistência
Últimos preparativos
É apenas lógico
Propriedade (de ninguém) do reino
O que uma ladra faz? Ela rouba
Encontro inesperado
Decisões entre cartas e camarões
Hayes Bechen
Roubando um pouco de volta
O sacolejo do barco
A linha tênue entre bom e mau
Fogo e gelo
Bayard
Incapaz de ter um segundo de paz
O que há depois do rio?
A ladra nem precisou roubar
A realeza de Drítan
Drítan não gosta de estrangeiros
Deveria?
Diplomacia e chá
A biblioteca
Confusão e incerteza são certezas
A área particular
Uma flor do deus Ignis
A reação para a ação é justiça
A calmaria antes da tempestade
Todo o ar do salão
De respirar a se afogar em um segundo
Teria que ser tudo
Automático
Deusa da (justiça) vingança
Um é a ruína do outro
O fardo do saber
A compreensão de como uma fênix funciona
Reinando das Sombras

Ladra

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By FlaviaEduarda10

–Você deve adorar me ver assim. –Afirmei quando sua espada estava contra mim.

–Acredito que não mais que você. –As espadas de treinamento não tinham cortes, sem nada realmente afiado, podendo apenas machucar, então me dei a licença para pressionar a minha contra a barriga de Nikolai, onde eu sabia que, possivelmente, ainda se recuperava de mim, afastando-o.

Ele me xingou (tive que segurar meu riso) ainda apontando onde eu havia forçado a lâmina, seu rosto demonstrando dor. Antes que eu pudesse me vangloriar daquela cena, ele se endireitou, sua face impassível novamente, me encarando. A única coisa que ele parecia não controlar muito bem era o que seus olhos passavam, queimando em ódio por mim. Tomei como desafio e levantei uma sobrancelha.

–Você tem uma péssima técnica, não sabe equilibrar o peso da espada e age apenas por impulso, não é bom não pensar em seus próximos passos. Analise como no xadrez, você pode sacrificar uma peça momentânea se for te aproximar da vitória. Agora, se for mexer seu jogo apenas em reação, você mesma vai cavando seu fracasso pouco a pouco. –Em contraste com o sentimento que eu sabia que ele nutria por mim, seu tom era incrivelmente controlado.

–Se eu soubesse jogar xadrez, tenho certeza de que seria uma excelente analogia.

Ele já não estava com seus olhos presos em mim enquanto caminhava em minha direção, ajeitando a espada que segurava, ajeitando meus dedos e, por fim, passando suas mãos pela minha cintura, me sobressaltando com a surpresa da proximidade, não acostumada em sentir seu corpo tão perto (pelo menos não sem ameaças iminentes ou ações passivas agressivas).

–O que está fazendo?

–Consertando sua pose. Você está toda desequilibrada. –Depois girar levemente meu corpo e posicionar meus quadris em um ângulo diferente, senti-me mais estável, mais balanceada. Ao parar de me encostar, levando o calor de seu corpo com ele, observei-o enquanto se afastava, de costas para mim, andando ereto, com toda a confiança do mundo. –Veremos se agora melhora. Vamos mais uma vez.

Não importa como ele me movesse e girasse, eu nunca seria tão boa quanto ele. Parecia que ele nascera com uma espada na mão.

Quando minha oponente era Ophelia, ela se movimentava primordialmente, já Nikolai parecia que era movimento, que tudo que todos os avanços e esquivas fossem parte dele, fluido como água, como se nem percebesse quando se mexia, algo apenas de seu subconsciente.

Mas eu tinha rapidez. Não era tão inútil, afinal de contas.

Eu tinha uma mínima noção do que ele falara para mim antes, sobre pensar em ações mais adiantes que apenas o próximo passo e conseguia ver muito facilmente como isso se aplicava à ele. Ele era bom, excelente, mas era limitado. Ou melhor, seu pensamento era limitado, não acredito que ele teria muitas limitações físicas.

Todas as ações dele poderiam ser previstas para quem se atentasse ao seu padrão –e eu sou boa em enxergar padrões. Lhe faltava imprevisibilidade.

Então, lá estávamos, naquele jogo, dançando pela área de treinamento, ele com a indiscutível vantagem que toda sua experiência o proporcionava.

Fora fácil para ele me desarmar, vendo enquanto ele girava a espada em sua mão, fazendo a minha voar para longe de mim. Ele, em tese, já teria me ganhado nesse combate, então veio andando despreocupado quando chutei com tudo que podia seus dedos que seguravam o cabo de sua espada. Ele arquejou baixo, praguejando novamente, mais para si mesmo que para mim, trocando a arma de braço e sacudindo a mão acertada, a raiva apenas sendo alimentada em seu olhar.

–Para todos os efeitos, você foi desarmada e eu não. Você já morreu. –Me surpreendendo, ele jogara a lâmina cega ao chão, com o barulho de sua queda metálica espalhando-se pelo local, mas não se destacando por todos os sons similares que ocorriam ao nosso redor. –Então, o que me diz de vermos como se sai no corpo a corpo?

Treinar combate corporal com Ophelia era uma coisa –ela era, sim, mais forte e habilidosa, mas também era menor e não sentia sentimentos contra mim. Não posso falar o mesmo sobre Nikolai. Ele era simplesmente impiedoso e eu fazia questão de provocá-lo, aquilo me deixava hesitante.

Mas eu nunca diria.

Então apenas fiquei ereta com os braços nas posições que Ophelia me ensinara e o convidei a começar com os olhos.

–O objetivo de cada um é imobilizar o outro. Preste atenção no que faz. –Nikolai continuava sempre com seu tom indiferente e imaculado, o que poderia ser ao mesmo tempo incentivador e assustador (acho que o objetivo era esse).

Para a minha surpresa, eu consegui me manter como sua oponente por mais tempo que eu esperava, não sabendo se era eu que poderia ter algum tipo de habilidade ou se era ele que se segurava para não me derrubar com dois segundos de luta –creio que era a primeira opção. Tendo em vista nossa relação, acho que ele não pensaria duas vezes antes de me prender ao chão.

Atacando repentinamente pelo seu lado direito depois de ter dado a entender que viria pela esquerda, consegui derrubá-lo junto comigo, batendo meus joelhos com tudo no piso, fazendo um choque de dor percorrer meu corpo, porém não deixei transparecer ou me impedir de continuar, mesmo que tenha acabado por se mostrar uma tentativa falha, já que em um rapidez maior que eu pudesse sequer piscar, ele inverteu as posições enquanto praticava uma tática que eu desconhecia, levando a perna esquerda o máximo possível para o lado direito, entrelaçando-a à minha e girando-a, puxando-me imediatamente ao chão e ele sobre mim, o contrário de como estava inicialmente, suas mãos apertando meus pulsos contra o chão, me tirando minha paciência.

–Se eu fosse você, não tentaria pular no oponente sem ter certeza do que faria. –Revirei os olhos ainda sob ele, claramente irritada com seu insuportável tom provocativo, tentando me afetar propositalmente.

–Cale a boca e vamos mais uma vez. –Tão rapidamente quanto me imobilizara, se levantara e oferecera sua mão para me puxar para cima, recebendo apenas um escrutínio ameaçador da minha parte, empurrando seu braço longe de mim, o que fez com que ele se afastasse rindo nasalmente. Antes que ele chegasse à sua posição e se virasse em minha direção, corri até ele o mais silenciosa possível e ataquei-o pelas costas, derrubando-o uma segunda vez, pegando-o despreparado.

Minha queda foi feita com ciência do que fizera meu joelho bater antes, impedindo que se repetisse, Nikolai olhando-me espantado (por um segundo) enquanto estava embaixo de mim. Percebi quando ele tentou reagir com a mesma tática de antes, mas eu também sabia como funcionava a partir de agora, o que resultou em dois giros entre ele e eu no chão, terminando na mesma posição que estávamos no início, eu ainda por cima, até que ele tirou suas mãos do meu ombro, que era onde segurava ao rolar comigo na tentativa de terminar me prendendo, e passou-as em minha cintura, arrepiando-me pela surpresa, o que deixou fácil para ele empurrar-me para o lado, segurando minhas pernas com suas próprias, fincando-as ao piso enquanto fazia meu corpo ceder ao chão, subindo em mim ao sentir minhas costelas reverberarem ao chão, provocando-me um gemido baixo, pouco mais que um arquejo, de dor.

–Preciso repetir o que disse há um minuto atrás ou já entrou nessa sua cabecinha dura, ladra?

No meio da dor passageira, soltei uma risadinha coberta de provocação, ironia e escárnio encarando seus olhos.

–Retiro o que disse antes, garoto assassino. Você deve amar é me ver assim –controlada e presa, que nem o bicho que ele achava que eu sou, seu tom arrogante ao me chamar de ladra, como se me diminuísse. Nikolai deu-me uma boa olhada, estudando-me até se perceber, ficando de pé em uma fração de sua respiração ofegante e afetada, vermelho da atividade, presumindo que minha situação não deveria estar muito diferente.

–Você deveria ir lavar-se antes que fique muito tarde. –Ele terminou sem olhar diretamente para mim, seu foco no chão, retirando-se sem pensar muito.

Sem prestar muita atenção, apenas percebi quando já caminhava até a saída, onde Cordélia já me esperava, a próxima coisa que captei fora quando já era banhada, a janela aberta dessa vez na tentativa de aplacar o calor de fim da tarde, podendo escutar ao longe os sons da cidade, abafados e agitados.

Já de robe de algodão, um diferente ao de ceda que já usara, macio e quente contra minha pele, caminhei sem hesitação até minha sacada, vendo o que já desconfiava

Era dia de feira (um dia depois da semana passada, o que não era problema, já que a feira não tinha dias fixos) e a própria capital, como ser fosse viva, vibrava em sons, cores, cheiros, pessoas, como de costume em dias assim.

Respirei fundo o ar fresco do lado de fora, tendo plena noção de que Cordélia e eu estávamos nos privando de conversar acerca de trivialidades com medo de deixar que algo errado escapasse, minha curiosidade já difícil de ser mantida. Aquela poderia ser minha chance.

–Hoje está tendo feira. –Falei apenas, ainda de costas à minha dama, meus olhos distantes, ouvindo seus passos leves aproximando-se de mim.

–Sim, está. –Sua voz doce soltou perto de mim. –Gostaria de ir lá?

–Será que podemos? –Podemos, não posso. Queria que fosse comigo. Às vezes, o local mais seguro pode ser rodeado de pessoas.

–Depende somente se seu guarda autorizar. –Meu passeio recaía nas mãos de Kai (que, de certa forma, era decisão de Nikolai). Eu gostava de como a mente de Cordélia trabalhava, similar à minha, e me surpreendi por nunca ter notado como era misteriosa e um tanto vaga, mesmo educada todo tempo. Quanto mais ela estaria escondendo?

–Coloque-me em uma bela e discreta roupa. –Retirei-me da sacada, retornando ao acolhimento do lado interno do quarto. –Iremos à feira.

Cordélia não hesitou, vestiu-me em belo e discreto vestido preto com mangas de tule, transparentes, seu decote em v com dois tecidos transversais, minha cintura marcada com uma faixa preta de seda, assim como o restante do vestido, a saia com uma camada extra do mesmo tule preto da manga descendo como uma cascata, o ponto alto dele sendo seus grandes bolsos. Sua beleza era completamente inegável e ainda não era muito chamativo, o objetivo perfeito.

Meus cabelos, Cordélia somente penteara, deixando meus cachos escuros soltos caindo sobre meus ombros e minhas costas. Pareceria uma viajante, uma turista de passagem em Kava. Ninguém perderia muito tempo recordando-se de meu rosto.

Sem perder meu tempo, voltei até a área de treinamento enquanto os último raios de sol iam embora, encontrando Kai perto de Ophelia, de Zoram e Vega e me aproximando, pedindo que Kai viesse ao meu lado para perguntar-lhe algo em particular.

–Kai, será que você poderia me levar à feira hoje? –Kai, um tanto hesitante, em contraste com a empolgação em seu rosto ao me ver no centro de treinamento mais uma vez, seus olhos me estudando e refletindo consigo mesmo, fez menção de abrir a boca. Com medo de receber uma negativa imediatamente, me adiantei antes que ele falasse qualquer coisa. –Por favor, eu nunca perdi um dia sequer. E estou presa nesse castelo tem mais de uma semana.

Compadecido, ele toca em meu braço, me direcionando ao portal.

–Você sabe o porquê disso. –Mas sua própria voz não estava convencida do que dizia.

–Kai, eu sinto saudades de caminhar pelas ruas. –Bastou mais um olhar triste para que ele suspirasse e pedisse para que eu esperasse por um instante enquanto ele caminhava até o grupo que estava conversando antes, Ophelia chegando ao meu lado, afastando-se dos outros.

–Você está linda, mas tem certeza que é uma vestimenta adequada para treinar? –Dissera gesticulando para o meu vestido bem-humorada, mãos na cintura. Dei um sorriso em resposta e dispensei seu comentário com um gesto contido.

–Estou querendo ir à feira hoje. –Ouvindo-me, abriu um sorriso sincero e distraído.

–Ah, eu sempre amei a feira. Vivia conversando com viajantes, envolvendo-me com comerciantes. Tenho muitas boas memórias entre as tentas.

–Por que não vai mais então? –Como uma âncora, puxei sua atenção ao mundo, tirando-a de sua nostalgia e fazendo-a voltar-se à mim com questões no olhar, como se eu tivesse a ofendido.

–Como? –Talvez ela não tivesse notado como sua frase estava toda no passado.

–Você disse como se nunca mais tivesse feito o que costumava fazer na feira, como se, agora, tudo isso só existisse no passado. Se eu estiver falando algo errado, apenas desconsidere.

Em um suspiro, confessou sem palavras o que eu desconfiava.

–Você tem razão. Acho que... meu cotidiano ficou muito corrido para abrir tempo para perambular entre vendedores e flertar com pessoas desconhecidas.

–E agora só tem tempo para flertar com pessoas conhecidas, acertei? –Como esperado, ela soltou uma risada melodiosa em conjunto comigo, um tanto mais solta e linda (nada novo).

–Realmente, faz um tempo desde que não vou em uma para me divertir. –Depois de um curto tempo reflexivo, mirou seus olhos azuis nos meus e continuou. –Quer saber? Vou com vocês também. Eu preciso de novas flechas do sul, de todo jeito.

A diferença entre as nossas flechas e as flechas do sul eu não fazia a menor ideia de quais eram, porém se ela dizia que precisava, eu não iria me opor, notando quando Kai voltava até mim acompanhado dos outros dois guardas, um sorriso em seu rosto.

–Para sua felicidade, Zoram e Vega precisam de algumas coisas da feira também. Acho que só preciso ir avisar Nick e podemos ir. –Zoram trocou olhares ácidos comigo.

–Não estou indo para lhe fazer companhia, ladra. Não pense que já viramos amiguinhos.

–Não se preocupe, não penso nem por um segundo. –Eu deveria aprender a manter minha boca fechada por mais tempo, mas certos desaforos mereciam respostas (se esse guardinha acredita que consegue me intimidar ou diminuir, ele não poderia estar mais enganado). Soltando uma bufada, parecendo uma criança mesmo com seu tamanho amedrontador, virou-se.

–Venha, O'keefe, vamos nos arrumar. –Ao chamar um nome que nunca havia escutado até o momento, virei-me na tentativa de ver mais alguém perto de onde estávamos, no entanto, foi Ophelia quem se moveu, indo na mesma direção que os outros dois, despedindo-se rapidamente de nós dois. Tocando levemente meu antebraço enquanto os outros 3 seguiam para um caminho diferente, Kai soltou em um sussurro:

–Sombra, pergunto isso sem pretensões, porém, existe alguma chance de Cordélia também ter vontade de ir à feira? –Abri um sorriso incriminador e infantil ao mesmo tempo que já caminhávamos ao meu quarto para pegar minhas coisas e irmos, Kai sacrificando o tempo para se limpar com calma apenas para me acompanhar (ou melhor, não apenas me acompanhar, já que percebera suas segundas intenções ao me levar aos meus aposentos, essa "pretensão inexistente", curiosamente, com o mesmo nome que minha dama e, também, ir até Nikolai atrás da nossa permissão).

–Não que você tenha algum interesse, claro, mas eu estava conversando com ela e o plano era Cordélia me acompanhar quando fôssemos. –Kai não respondeu, apenas tentou disfarçar o sorriso bobo de sua face.

Até chegarmos à minha porta, tirei algumas de minhas dúvidas, como o motivo de terem chamado Ophelia por "O'keefe", descobrindo que esse é o sobrenome de sua família e, por ter os dois irmãos trabalhando para a coroa, a fim de evitar confusões com sobrenomes e terem dois guardas chamados da mesma forma, Kai pode escolher o primeiro nome para ser referido, guarda Kai, e Ophelia pegou o sobrenome, guarda O'keefe –não pude deixar de pensar como Ophelia estava quase apagando quem era antes de Eirlys se tornar Althaia, desfazendo-se do próprio sobrenome de nascimento.

Mais rápido que esse pensamento me atingiu, outro apossou-se de mim, me chamando de hipócrita. Ophelia não apagara seu passado, ela adicionara à ele. E quanto à você, menina sombra? Sequer usa seu primeiro nome de nascença ou o esconde assim como esconde à si mesma? Assim como esconde sua origem cravada em seu "lia"? Ophelia ainda é Ophelia. Sombra não é Calia.

Absorta em meus próprios devaneios, nem notei quando Kai seguiu até as escadas para encontrar-se com Nikolai, quem, eu percebo agora, Kai referiu-se como Nick, um apelido para íntimos, ganhando noção que o relacionamento entre eles era mais antigo e de maior confiança do que julgava antes.

No tempo de algumas respirações apenas, já tinha em mãos minha capa, onde duas das minhas adagas mais leves e mais discretas se encontravam em bolsos internos e imperceptíveis para quem não sabia de sua existência, e minha pequena bolsa. Eu era uma viajante, afinal, não existem viajantes que não andam com nada nas mãos, principalmente em um dia como esse, onde o comércio age como uma cobra já no bote, pronta para atacar os desavisados.

Passando pela porta, Cordélia já estava de pé à minha frente, um vestido diferente de seus usuais, ainda que simples, uma bolsa transversal atravessando-lhe o tronco, seus olhos ansiosos e nervosos. Ela sabia o que vinha com o nosso passeio.

–Pronta? –Perguntei-lhe, recebendo um aceno de cabeça e começou à me guiar pelo castelo, esbarrando em Kai no caminho, que juntou-se à nós.

Caminhamos até a feira apenas os três, Kai dizendo que os outros três nos encontrariam lá, o que fez com que a trajetória fosse composta apenas de duas vozes, minha e de Kai, Cordélia mais silenciosa do que o normal e com olhos desfocados. Meu guarda conversava distraidamente comigo, coisas sobre meus avanços a cada treinamento, como Zoram não me odiava de verdade e perguntando sobre meus avanços com Melissa, nunca descartando a oportunidade de fazer comentários sarcásticos e espirituosos na tentativa de nos fazer rir (o que funcionava na maior parte do tempo) e sempre buscando incluir Cordélia na conversa, mas a mesma quase não escutava o que dizíamos, presa em sua própria mente. Eu tentava dar continuidade, mesmo não vindo com tamanha facilidade para mim quanto parecia vir para ele.

O simples fato de só tentar acompanhar-me já significava muito.

Ao chegarmos, Cordélia foi a primeira a se separar, indo atrás de seus próprios interesses, divertindo-me enquanto via os olhos de Kai seguindo-a, um sorriso travesso brotando em meus lábios.

–Há quanto tempo você gosta dela? –Kai pulou toda a parte da negação ou de fingir surpresa, ele não escondia o fato que ela o atraía, soltando um suspiro em resposta.

–Acredito que, agora, já fazem dois anos, mas ela já tinha um namorado... noivo, creio eu. Aí, no ano passado...

–Eu sei. –O cortei quando vi a dificuldade que ele estava tendo de terminar a frase.

–Então, por isso, mantive uma apenas uma relação de suporte com ela pois posso apenas imaginar como isso a faz sentir e, quando tento me aproximar, tento fazer da maneira mais respeitosa possível. Não quero que ela pense que eu tento me aproveitar de sua fraqueza e muito menos que se sinta sozinha. O que me resta a ser apenas paciente e compreensivo.

Eu não tinha reação para isso. Ao ver pela primeira vez a forma como Cordélia o tratava, devo admitir, julguei internamente sua atitude tão passiva em resposta ao tratamento frio de Cordélia, percebendo agora que tinha algo por trás do comportamento dos dois lados.

–Por que não gosta da ideia de deixar as pessoas sozinhas? –Ele me encara com uma expressão que dizia "não é óbvio?".

–Porque eu não gostaria de ficar sozinho. –Seu braço passou pelo meu, deixando que eu me apoiasse nele enquanto o mundo ao nosso redor rugia entre comerciantes, compradores e vendas. –E eu quase fiquei quando meus pais morreram se não fosse por Ophelia. Ela devia ter uns dez anos quando foi adotada e eu tinha doze. Nem sempre nos enxergamos como família, sentíamos como se fôssemos rivais, cada um por um motivo, até um precisar do outro. Acredito que ela odiava se sentir sozinha tanto quanto eu. –Depois de uma breve pausa, enquanto eu assimilava as novas informações, ele abriu a boca mais uma vez. –Não me entenda errado, eu era louco por uma irmã mais nova, mas toda a nossa situação naquela época era complicada. Dentro do castelo, pintavam os nativos de Eirlys como vilões e, mesmo assim, meus pais quiseram Ophelia pelo estado frágil da minha mãe depois de perder a criança que carregava na barriga em uma luta contra quem resistia ao destronamento. Ela queria muito uma menina e, ao bater os olhos em Ophelia, mesmo sendo um pouco mais velha, sabia que queria ela como filha. –Kai contava ininterrupto e eu estava completamente entretida no que ele me contava até ele parar e lançar-me um olhar de esguelha quase envergonhado. –Peço perdão, não percebi que só estava falando sobre mim.

–Não peça. Eu adoro escutar sobre sua vida. –Era o melhor tipo de elogio, significava que ele confiava em mim para contar assuntos tão pessoais.

–E você? –Fui pega de surpresa, não desconfiava que a conversa fosse se voltar à mim.

–O que tem eu?

–Você nunca perdeu uma feira porque vem para roubar?

Olhando o chão enquanto caminhava, soltei uma risada, respondendo-o em voz baixa para que ninguém escutasse, da mesma maneira como ele perguntara.

–Não tenho muito o costume de roubar mercantes. Geralmente, roubo dinheiro de alguém e pago pelo que quero consumir das barracas. –Kai solta uma risada alta, chegando até mesmo a inclinar o pescoço para trás, resfolegado enquanto lutava para proferiu as palavras "não esperava diferente".

Kai havia parado em uma barraca com maçãs caramelizadas depois de ter notado como eu as olhava, salivando, pagando mesmo depois que eu declarei que não era necessário que gastasse seu dinheiro comigo.

–Pelos deuses, você está praticamente flertando com essas maçãs. Se não comê-las agora, acredito que seja capaz de pedir uma em casamento apenas para leva-la com você. –Recebendo a mesma em mãos, Ophelia chegou até nós por trás, sinalizando onde os outros estavam e chamando-nos para irmos até lá e tomarmos algumas cervejas brancas borbulhantes com eles no mesmo instante que avistei Cordélia encarando-me do outro lado da via, à frente de uma barraca de tecidos. Kai foi caminhando em direção à sua irmã, voltando seu olhar à mim quando não me movera.

–Pode ir. Quero passear um pouco com Cordélia para, sabe, escolher tecidos para suas próximas criações. –Terminei apontando onde minha dama encontrava-se, o que fez com que ela viesse caminhando lentamente até nós. Kai hesitara em um segundo, um segundo apenas, até soltar meu braço e dizer que depois nos encontraria, observando-o enquanto Ophelia sorria ao vê-lo indo à ela. Podem nem sempre ter sido uma família, mas agora não existia o que mais poderiam ser.

Pegando Cordélia pelo braço, da mesma maneira cavalheiresca que Kai fazia comigo até o momento, passei a perambular entre comerciantes, absorvendo os diferentes sotaques, desviando-me de ambulantes que vinham com seus produtos até nós, escutando a barganha antes da compra até que Cordélia quebrou a parede invisível que havia se instalado.

–Acredito que aqui seja mais seguro para falar sobre o que ambas viram dois dias atrás do que no castelo. –Pela ironia da situação, um sorriso me escapou junto com uma breve risada.

–Ás vezes, o melhor esconderijo é encontrado sob milhares de olhos, de fato. –Senti os músculos do meu rosto endurecerem enquanto minha feição se tornava dura, irredutível, inquisidora. –Por que você estava na reunião, Cordélia?

Não estava nervosa por esse motivo, não teria razão, mas tanto sua discrição, sua falta de lealdade aos lados (assim como eu) e sua segurança me preocupavam.

–Já contei sobre minha história. Por te encontrar lá e por ter visto-a subir as escadas até a sala privada dos líderes da resistência, sei que você, mais do que ninguém, consegue entender meus motivos.

Ela estava certa. Eu conseguia, dando-me conta de que todas as coisas ruins que ocorreram em sua vida vieram pelo destronamento.

O emprego que colocava o teto em sua cabeça viera pela consciência pesada de quem havia tirado tudo dela, a saúde de seu pai, o emprego de sua mãe, a estabilidade de sua vida e da de seus irmãos –isso sem falar da perda do amado.

Apenas depois de formar essa linha de raciocínio, percebi algo sutil em sua fala, como havia se referido à sala que havia me encontrado com Torryn, Asher e o restante de seu grupo, descobrindo que, ao invés do que eu pensava, Torryn não era apenas um integrante da resistência e, sim, um de seus líderes.

–Então você é quem passa informações para eles? –Cordélia também havia mudado, mais rígida, a postura mais ereta, o rosto mais impassível.

–Minha família ajuda como pode para que possamos ter o que já foi nosso um dia e eu sou a única que tem acesso tão próximo à corte, então, sim, eu sou a informante. –Quando ela dissera que as paredes do castelo poderiam ter ouvidos, se incluía como um deles.

–Então o restante de sua família também é a favor do retorno dos Galenes? –Assentindo com a cabeça, Cordélia concordou.

–Enver é o mais envolvido da família, mas eu sei que as informações que eu passo são tão importantes quanto. –O nome, de início, me soara apenas familiar até lembrar-me que ele sentara-se à mesma mesa que eu quando discuti sobre se deveria ou não juntar-me à resistência, esposo de Thalia, o mais quieto daqueles seis, surpreendendo-me com tamanha profundidade que Cordélia se encontrava no movimento, sabendo que ela morava no covil de seus declarados inimigos.

–Você os contara sobre a mania. Contara sobre mim quando fui capturada. –Lembrando-me de como Torryn sabia onde me encontrar, como sabia que eu era Sombra.

–Conto apenas o que sei e não costumam confiar segredos de estado para uma dama particular. –Mirando-me pelo canto olho, desconfiada, voltou a falar. –E você? Não tinha dúvidas que tentariam te recrutar no momento que lhes informei que havia sido pega, mas o que fez com que fosse à reunião? Que ficasse lá?

Sabia que meu segredo estava seguro com Cordélia, mas também sabia como o dia era azul que ela não era tão confiável como um dia pensara.

–Tenho dezessete anos, Cordélia. Faça as contas. –Olhei em seus olhos enquanto a realização a pegava, me encarando de forma mais compassiva, voltando a ser a Cordélia que tinha cuidado ao me vestir como se eu fosse feita de porcelana, falando outros motivos que não fossem os mais verdadeiros: queria saber tudo de todos os lados para saber o que seria melhor para mim. –Eu não seria o que me tornei hoje se tivesse escolha. Se não tivessem tirado minhas escolhas. –Eu sou o produto de uma negligência e agora abominam minhas atitudes.

No meio de alguns passos, virei-me aos barulhos que vinham de um bar na esquina da rua onde estávamos, um velho que sacrificara seu físico pela cevada fazendo um show depois de ter quebrado uma caneca, gritando com a garçonete. Quando a garçonete voltara, recolhida e envergonhada, ao interior da taverna, Cordélia, eu e boa parte das pessoas que passavam por perto o escutaram dizendo: "Ah, essa escória nativa. Nós damos empregos para eles e ainda são incompetentes."

Um outro homem, sentado próximo ao que havia desrespeitado a garçonete, levantou-se e empurrou-lhe da cadeira, indo de encontro ao chão com as costas, fazendo com que um pedaço de seu casaco caísse ao seu lado, me proporcionando um pouco do cintilar do metal de uma adaga ou de uma espada contra a pouca luz das lanternas rua enquanto pessoas ao redor afastava quem o empurrara a fim de que a violência não aumentasse. Desfazendo-me do braço de Cordélia e caminhando até o centro da confusão em passos fortes e decididos, cheguei até o velho e ajudei-o a levantar-se, que segurou-se em meu braço com força na tentativa de voltar a ficar de pé, sentindo o gelado de sua aliança de ouro contra o tule fino, abaixando-me, de forma com que minha capa se abrisse e o cobrisse da visão da rua. Ele me agradecera com a voz rouca e embriagada, me dando pela ciência que a caneca quebrada estava longe de ser uma das primeiras cervejas e tampouco uma das últimas. Me afastara rapidamente, fazendo que Cordélia acelerasse seu passo para acompanhar-me.

E ele nem notara quando meus dedos ligeiros passaram por seus bolsos, seu dedo anelar e até mesmo sua bainha, descobrindo que era, de fato, uma adaga.

Gostaria de ver como ele quitaria a dívida de sua bebedeira, que, com certeza, não seria pequena, com a tal "escória nativa".

Ele era a escória, porco arrogante com complexo de superioridade.

–Um presente para você, Cordélia. Faça o que quiser com isso. –Disse ao vê-la chegando ao meu lado, jogando-lhe o anel de casamento que havia acabado de pegar, a adaga extra recém adquirida dentro do espaço onde cabia pouco mais de apenas uma fazendo peso e batendo em meu quadril a cada passo, sabendo bem que, talvez, viesse a ficar roxo.

–O que está me dando? –Em um choque um tanto desnecessário, seu queixo caíra diante do que percebia. –Você o roubara? –Não pude evitar revirar os olhos ao escutar tal pergunta.

–Ora, que péssima deusa da justiça eu seria se não agisse em nome da própria justiça. –Vendo que minha tentativa de humor não a amaciara, seus olhos ainda arregalados, maiores que o normal, tentei mudar a abordagem, meu tom saindo mais baixo e duro. –Eles roubaram tudo de nós e se vangloriam, é mais do que justo roubar algumas coisas de volta. –Sentindo-me satisfeita comigo mesma, voltei meu foco à frente e abri um leve sorriso em um dos cantos da minha boca. Eu sou uma ladra, afinal de contas, roubar é o que eu faço e se consideram isso justiça, quem sou eu para parar?

Não acredito que ele vá se vangloriar disso agora.

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