O nome da sombra - Crônicas d...

By FlaviaEduarda10

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Sombra já estava acostumada a ser apenas isso: uma sombra aos olhos da sociedade que a marginalizava há 9 ano... More

Reinado das sombras
Prisioneira de luxo
Cuidada e cheirando a rosas e lavanda
Mania do oráculo
Na escuridão
Mentiras
Calia
Entre uma coisa e outra
O castelo pela manhã
Cobras e outros animais
O treinamento
O belo mundo de porcelana
É necessário conhecer o oponente
Assassino
Limites
O último Galene
Apenas reparação
Espere o esperado
Confronto
Loucura da realeza
Ladra
Sombra
A entrada não é pela porta
Os dias 14
Curiosidade
Sobre um belo vestido vermelho
Os nuances sobre a verdade
Presente
Tudo que viera antes
O primeiro furto
O buraco
Contradição
O que faz uma resistência
Últimos preparativos
É apenas lógico
Propriedade (de ninguém) do reino
O que uma ladra faz? Ela rouba
Encontro inesperado
Decisões entre cartas e camarões
Hayes Bechen
Roubando um pouco de volta
O sacolejo do barco
A linha tênue entre bom e mau
Fogo e gelo
Bayard
Incapaz de ter um segundo de paz
O que há depois do rio?
A ladra nem precisou roubar
A realeza de Drítan
Drítan não gosta de estrangeiros
Deveria?
Diplomacia e chá
A biblioteca
Confusão e incerteza são certezas
A área particular
Uma flor do deus Ignis
A reação para a ação é justiça
A calmaria antes da tempestade
Todo o ar do salão
De respirar a se afogar em um segundo
Teria que ser tudo
Automático
Deusa da (justiça) vingança
Um é a ruína do outro
O fardo do saber
A compreensão de como uma fênix funciona
Reinando das Sombras

Pessoas e deuses

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By FlaviaEduarda10

"Que as faces dos deuses sorriam para nós."

Para todos nós.

Não me juntei ao coro depois da deixa de Asher como se fosse um sacerdote terminando uma missa, ao som de todas as vozes recitando as últimas três palavras, fervorosas. Eles ainda acreditavam que poderia haver alguma face que os cuidava –como se todas elas já não tivessem se virado de costas para nós há muitos anos.

Eu podia não ter ido com sua cara, mas algo em Asher era necessário ser reconhecido: ele sabia como cativar uma plateia.

Depois que todos já estavam suficientemente convencidos por aquele discurso, Torryn tocou em minhas costas, me conduzindo para perto da escada, Nisha seguindo por perto, enquanto uma multidão se aglomerava perto, impedindo que chegássemos mais perto.

Ele era todo sorrisos, acenos e apertos de mão, uma imagem boa o bastante para quem precisava se segurar à qualquer tipo de esperança, tipo esse de gente que quase preenchia esse lugar.

Asher Galene, o Galene salvador, o deus salvador, coberto de promessas muito grandes para cumprir sozinho, então precisa de mim, claro, o deus da justiça.

Depois de um tempo esperando no que parecia uma fila, Nisha nem mais ao nosso lado estava, Torryn ocupado conversando com outras pessoas, finalmente alcançamos o garoto Rei (se, de fato, era Rei, ainda não decidira).

–Asher, esse foi um dos melhores discursos que já vi vindo de você. –Torryn era próximo suficiente para descartar o tratamento formal para com quem ele considerava realeza, esquecendo completamente do "Vossa Majestade" e Asher não parecendo se importar.

–Que bom que pareci confiante, não queria que notassem que foi tudo improviso. –Ele tinha um sorriso menos duro agora que Torryn e eu éramos as únicas pessoas por perto, o restante que sobrara já indo embora, como se os dois fossem velhos amigos. Quando finalmente pousou seus olhos nos meus, algo em sua expressão mudou, um jeito mais perigoso, mais obscuro nas entrelinhas, olhos duros com um sorriso no rosto, não sabia se Torryn fosse notar essa mudança, era algo que facilmente poderia passar despercebido, mas não por mim, já tinha visto rostos demais, coisas demais que me ensinaram captar traços sutis como esse.

–E você é...? –Ele entortou a cabeça, me parecendo mais um ato predatório que interessado.

–É ela. –Torryn respondeu por mim, me fazendo olhá-lo com raiva, se ele fosse minimamente mais perceptível, notaria a pergunta "para quantas pessoas você falou sobre mim?" de forma subjetiva. A reação de Asher foi interessante, um esboço de um sorriso interessado, as sobrancelhas levemente arqueadas, seus olhos me escrutinando, estudando sua nova aquisição (como se alguém pudesse realmente ter algum poder sobre mim).

–Interessante. –A forma como lidara com aquilo era estranha, fora tão mais... indiferente, quase, de tão controlada, contudo, preferia assim do que uma cena. –Nisha já foi buscar os outros? –Ele perguntara à Torryn, que respondeu rapidamente que sim. –Melhor já subirmos, eles virão até nós.

Seguia os dois pelos degraus, lançando um último olhar ao local, as últimas pessoas ainda presentes e minha visão capturou algo que precisei piscar mais uma vez para acreditar que enxergara corretamente. Duas mulheres, jovens, conversando não muito longe de onde eu estava e se aproximando. A primeira tinha pele morena, olhos bem abertos, castanhos e com pesados cílios escuros em combinação com suas sobrancelhas arqueadas e seu cabelo liso preso em uma longa trança, seus traços sutis das ilhas nortes do leste, a diferindo de traços como os de Eira, vestindo calças e blusas escuras sob um manto roxo, bastante bela em minha opinião.

No entanto, fora a segunda que me chamara atenção com sua silhueta bastante esquia, elegante e alta, pele cor de caramelo, grandes olhos âmbar e sardas salpicadas pelo rosto adornado pelo cabelo cacheado preso, alguns cachos rebeldes se recusando à ficar no lugar.

Ali, bem à minha frente, na reunião da resistência, estava Cordélia.

E ela me vira também, congelando, seus passos parando.

Ela franziu as sobrancelhas, me deixando confusa, e deu meia volta, o que fez com que sua companheira ficasse sozinha sem saber o que tinha acontecido com ela.

Não consegui fazer muito além de observá-la se afastar, minha mente correndo entre as possibilidades.

–Você não vem? –Torryn me puxou de meus devaneios, me fazendo voltar para ele, terminando de subir as escadas, me segurando para não correr atrás da minha dama particular por informações.

Já no andar superior, adentramos em uma sala que estava em ainda melhor condição que o resto da construção, bem iluminada por lampiões espalhados pelo cômodo. Tinha no centro uma mesa redonda e ampla com sete cadeiras dispostas, papéis organizados em pilhas, pergaminhos enrolados (mapas, supus) e um grande mapa de Althaia preso à parede com pequenos rabiscos, repleto de detalhes tão minúsculos que apenas me aproximando bem eu conseguiria ler tudo.

–Fiquem aqui apenas por um segundo, vou só encontrar os outros. –Algo dentro de mim quase foi atrás de Torryn apenas para não ficar sozinha com Asher. Não que eu me sentisse intimidada por ele, mas não o conhecia ou sequer confiava nele o bastante para ficar sozinha em um cômodo em sua presença. –Sente-se em qualquer cadeira, fique à vontade. –Torryn disse para mim e se retirou. Eu não me sentei, continuei explorando o ambiente, mas Asher também permaneceu em pé, observando meus passos, algo que eu sentia mesmo quando virava minhas costas para ele.

Pensei em ir até Torryn mais uma vez, no entanto, pensei que o melhor a se fazer seria exatamente ficar onde estava. Se já aprendi algo em meus treinamentos é que eu não cederia território para o oponente tão cedo.

–Devo admitir, quando Torryn chegara e dissera que a própria Sombra em pessoa viria em uma das nossas reuniões, não pude acreditar. Sinceramente, sequer acreditei que ele teria tal contato, mas você é quem mais me surpreendeu. Não esperava que fosse...

–Nova? Sim, escuto isso bastante. Aparentemente, a imagem que todos tem de Sombra ou seja como queira chamar é de um homem velho e feio. –Falei um tanto sem paciência, me cansando da mesma surpresa sempre. Ele, em resposta, apenas riu, preenchendo o local com o som.

–Não esperava que fosse real. Acreditava até que realmente fosse uma Mão Invisível ou um Fantasma Invejoso para agir todos esses anos sem ninguém nunca ter tido suspeitas sobre quem era, a menor das pistas que fosse, se era apenas uma pessoa, se era um grupo, como agia. Deve ser por isso que tantas pessoas te admiram.

Me voltei para ele, dando as costas para a sacada que tinha no lugar.

–E você é uma dessas pessoas? –Ele deu de ombros com uma feição engraçada.

–Culpado. –Suas palmas estavam abertas no ar, se aproximando lentamente. Inconscientemente e imperceptivelmente, fui indo para trás. –Você foi a única que não se curvou para mim. Posso te perguntar o porquê?

Ele ainda levava suas palavras com um tom mais leve, no entanto, uma nota de ressentimento não passou batida em sua voz.

–Ainda não sei se devo reconhecê-lo como meu Rei. Sabe como é, essa é apenas minha primeira reunião da resistência, não sabia sequer se você estava vivo até pouco tempo atrás, então acho que você pode entender a minha precaução.

Para mim, reverências poderiam ser perigosas. Em um único gesto, você pode acabar aceitando como uma pessoa se vê como superior à você, realmente o fazendo superior.

Não, não, ele precisa de mim, eu não preciso dele. Não há nada superior nele, não me curvaria tão cedo.

–Precaução apenas com uma reverência? Não é apenas um gesto de respeito? –Não, quis responder, não é esse o significado para você, não se faça de tonto.

–Ora, se realmente se trata de apenas um gesto, por que isso sequer continua na conversa? Agora, se a questão for educação, não se preocupe, eu não tenho problema em ser taxada como mal-educada. –Ele começou a abrir um sorriso intrigado na mesma medida que insinuante, ainda com aquele seu toque feroz surgindo mais uma vez, como se estivesse esperando o momento para dar o bote, sua mão esquerda apoiada na mesa, levemente inclinado para onde eu estava, minhas costas encostando em uma cadeira, os braços cruzados quando a porta se abriu.

–Desculpa pela demora, Nisha tinha decidido me dar um perdido de última hora. –Torryn irrompeu pela porta abruptamente, organizando imediatamente a disposição das folhas à frente de certas cadeiras enquanto outras pessoas entravam. A primeira que vi era a jovem que acompanhava Cordélia minutos antes, vendo mais de perto o conjunto em sua face e com mais atenção, percebendo detalhes como o delicado e discreto traçado preto ao redor de seus olhos, fazendo com que eles parecessem ainda maior do que já eram, adornando-a. Atrás dela, vinha um homem de cabelos cortados bem rentes ao couro cabeludo, moreno e com marcas escuras descendo pelo pescoço, notando que se tratava da ponta de uma tatuagem que se escondia sob a blusa bege. Notei também que ele tinha seu braço como apoio para outra pessoa, uma que entrava ao seu lado.

Uma mulher linda, bem corpulenta, com um tronco mais largo e curvas bem notáveis ainda mais valorizadas com o tipo de vestido que usava, tendo um decote considerável pelo corte da vestimenta, o tecido firme de um vermelho vibrante, como se combinasse com o cabelo ruivo mais notável que o de Nikolai, contrastando com o azul esverdeado de seus olhos, combinando perfeitamente na obra como um todo.

–Nisha já não devia estar aqui? Ele que foi nos chamar e é quem demora, que ironia. –A mulher ruiva falou para ninguém em especial, correndo os olhos das pessoas que já conhecia para pousá-los em mim, sentindo seu escrutínio, um sorriso modesto e confiante ao mesmo tempo surgindo em seus lábios. –Ah, então você deve ser a Sombra. É uma honra finalmente conhecê-la. E pensar que eu já posso fazer a passagem para o outro lado sabendo como o rosto do Fantasma Invejoso é. –Ela caminhou até mim, seus quadris balançando naturalmente, como se seus passos fizessem parte de uma bela dança, pegando minha mão direita entre suas duas e as balançando. O homem que entrara com ela continuara perto do batente da porta, apenas observando a cena.

Pela proximidade que os dois estavam, imaginei que fossem um casal, contudo, vendo suas ações e reações, tive dificuldades de acreditar que realmente estivessem juntos sendo tão opostos.

–Me chamo Thalia, esse é meu marido, Enver –apontou para o homem taciturno –e essa –continuou enquanto a jovem que conversava com Cordélia se aproximava, sua atenção em mim –é Elowen.

Elowen já tinha uma feição mais centrada, séria, como se ainda me analisasse para ter certeza se eu era um animal perigoso ou não, desconfiada. Tão perto de mim, pude notar pela primeira vez seu colar de bordado, tão delicadamente feito, tão pequeno que mal se notava a frase em seu centro de modo que eu não conseguiria ler se não soubesse qual frase era: para ti, o sorriso dos deuses. Ela era o que eu deixara de ser há tempos, uma religiosa.

–Prazer em conhecê-la... como prefere ser chamada? Sombra mesmo? –Sua voz era de um tom quase sussurrado, melódico, diferente de Thalia, com a voz alta e enérgica. Olhei ao redor, com Torryn fora mais uma vez e Asher esperando-o do lado de fora da sala, percebendo que todos eles sabiam quem eu era, pensando que ninguém além desse grupo teria tal informação e tentei me contentar com isso, afinal, não tinha muito a ser feito agora que eles já sabiam.

–Quando estiverem apenas nós, pode me chamar de Sombra, sim, entretanto, quando precisarmos conversar em ambientes mais públicos, pode me chamar de Amélia. –Não posso ser culpada, criei certo apego à esse nome de mentira.

–Oh, esse é o seu nome verdadeiro? –Dei um sorriso complacente sem dizer uma única palavra à Thalia, quem fizera a pergunta. Ela não esperava verdadeiramente que eu desse meu nome de verdade, esperava? Virei-me à Elowen e vi em sua expressão que ela sabia muito bem disso e não pensava em receber nada diferente. Antes que qualquer uma pudesse fazer algum outro comentário, Asher chamou a atenção para si mais uma vez, caminhando firme e com convicção até uma das cadeiras, sendo o primeiro a se sentar.

–Eles já estão subindo, arranjem seus lugares. –Contrária ao que Asher pedia, permaneci de pé, me afastando um pouco da mesa, vendo a disposição que cada um ficava. Enver se sentava entre Asher e Thalia, a última se encontrando à direita de Elowen, três cadeiras permanecendo vazias até Torryn passar pela porta mais uma vez, escoltando Nisha, que tomara o lugar à esquerda de Asher.

Eu observei Torryn se mover pelo cômodo confortável, não se importando com atenções –porque sentia-se confortável com aquelas pessoas, notei. Antes que ele tomasse uma cadeira entres as duas que sobraram, ele dirigiu um olhar para mim e puxou a cadeira próxima à Elowen, gesticulando que era para me sentar ali. O encarei, incerta de como sentir com tal ação cavalheiresca vindo de sua parte, mas balancei a cabeça negativamente, indicando que preferia ficar em pé e vi algo perpassar em seu olhar, algo como tristeza ou decepção, o que me deixou confusa.

–Vamos logo com isso, já demorou mais do que o esperado para a reunião começar. –Asher se pronunciou, dirigindo um olhar acusador para Nisha que, em resposta, balançou os ombros com uma expressão inocente.

–Não sei porque está olhando para mim desse jeito, a culpa não foi minha. –O escrutínio continuou, dessa vez com mais pessoas na mesa encarando do mesmo jeito, Torryn com uma sobrancelha levantada questionadora. –Tá bom, talvez tenha sido um pouco minha culpa, mas não vamos ficar presos ao passado, foco na reunião.

–Indo direto ao assunto principal dessa noite, creio que todos aqui foram apresentados à Sombra, certo? –Todos assentiram à pergunta de Torryn, quietos. –Ela não é ainda uma aliada e não deve nada à nós, porém ela está aqui para ver se a causa vale sua participação, que, se viesse a ocorrer, significaria muito para toda a resistência já que suas habilidades que a precedem não precisam de apresentações. Antes de qualquer coisa, Sombra, gostaria que você tire todas as suas dúvidas conosco e será um prazer respondê-las. –Todos os olhos na sala pousaram em mim, me sentindo desconfortável com tamanha atenção, mesmo já devendo estar acostumada devido os últimos acontecimentos desde que fora descoberta, contudo, meu foco estava apenas em uma pessoa, na pessoa que mais me passava tranquilidade e confiança na medida do possível, aqueles olhos de esmeralda que pareciam brilhar mesmo com a pouca luz.

–Você me disse, no dia que me encontrou, que existem teorias sobre a mania do oráculo, sobre a Rainha estar por trás disso, mas não terminou de falar o porquê eu deveria acreditar nisso. O que vocês sabem sobre a mania?

–Sendo honesto, não mais que você. –Sua voz sai natural, como se não tivesse feito gigantescas acusações e suposições para me convencer a vir aqui, o que me fez quase rir do quão absurdo era tal ideia.

–Ah, bom saber. Excelente! –Desacreditada pelo tamanho risco que eu tomara ao somente vir aqui e pelo quanto eu fora exposta à desconhecidos, alternei minha atenção entre as pessoas no cômodo. –Precisam de mim para mais alguma coisa ou eu já posso ir?

–E quanto você descobriu ficando no castelo, com a própria Rainha? Alguma coisa? Qualquer coisa? –Asher interveio de forma dura, as mãos cruzadas sobre a mesa. Suas perguntas me fez parar por um segundo, refletir o quanto eu realmente sabia sobre tal doença e percebi que eu conhecia incrivelmente pouco para alguém que tinha como serviço buscar registros sobre ela.

–Por que ela contaria esse tipo de coisa para uma ladra que só está lá para fazer um trabalho? Ela não precisa me dar satisfações quando já me tem pelo colarinho.

–Bem, nós não sabemos muito sobre a doença porque Miranda tem todo o controle sobre eles, mantendo-os o mais perto possível de seu alcance. Se realmente ela pensasse que isso apresenta alguma ameaça à ela, você pensa que ela realmente deixaria em sua própria casa?

Eu demorei mais para responder dessa vez, tentando repassar as únicas certezas que eu tinha na tentativa de encontrar uma resposta.

–Ela faz isso para evitar desespero coletivo entre as pessoas.

–Claro, claro. É tudo pensando nos cidadãos, os mesmos cidadãos que passam fome, que são tirados de seus empregos, que são marginalizados, -Asher levanta de sua cadeira e caminha até ficar cara a cara comigo –que precisam apelar ao crime para sobreviver.

Aquilo era completamente pessoal e eu sabia, sua face mais próxima da minha do que me sentia confortável, sua figura se agigantando sobre mim como se considerasse algum tipo de deus. A matemática era simples, para ter ganhado tamanha reputação e todos os anos que eu agi, tendo a prova que como eu era jovem em meu rosto, era fácil saber que eu comecei a roubar por sobrevivência.

Seus argumentos internalizaram em mim, refletindo sobre a segurança que ela sentia mesmo tendo pessoas com a mania do oráculo por trás de suas portas se, segundo ela, nem sequer sabia se era contagiosa ou não e sobre o porquê eu tinha acesso às mesmas informações que a oposição de Miranda, que deveria ser mantida em ignorância com relação as fraquezas que seu reinado apresentava, logo, fazendo as ligações, percebi: nós éramos o que menos sabiam sobre a situação.

Então, muito possivelmente, Miranda realmente escondia algo.

–Supondo que vocês estejam certos, apenas supondo... qual seria a sugestão de vocês acerca disso para mim? –A reação fora quase engraçada se não fosse tensa, como se a sala em si soltasse a respiração que segurava.

–Quando for à Drítan, –o que Torryn disse me pegara de surpresa, já que não pensava que eles soubessem até da minha futura viagem –não dê os registros para Miranda, dessa forma ela pode manipular todos os conhecimentos sobre a mania. Ao ter essas informações em suas mãos, faça o que for melhor para as pessoas. –Ele não precisou continuar, eu entendi as palavras subentendidas: "dê os registros para quem realmente se importa com a população. Nos dê os registros."

Suspirei discretamente, cansada do que estava me metendo, cansada da confusão que minha vida tinha se tornado, sempre me colocando no meio de questões muito maiores que eu, a pressão sempre recaindo sobre meus ombros.

Nada daquilo me dava seguranças ou certezas, mas suas palavras não eram infundadas, minha mente retornando às pessoas que vieram escutar o discurso de Asher, o discurso da resistência, gente que dava atenção à eles, a atenção que a maior parte de quem compareceu aqui vêm sentindo falta durante o reinado de Miranda. Pessoas boas, pessoas como Lórcan, o diretor da antiga escola da minha mãe e como Cordélia, a menina que cuida de mim com tamanho carinho.

Cordélia, a menina que perdera seu amor para a mania do oráculo.

Aquele era o meu tipo de pessoa –infinitamente mais esperançosos, contudo, ainda me via neles e os via em mim.

Porém, o risco valia a pena?

–Me falem mais sobre isso.

____________

Depois de mais alguns questionamentos, finalmente pudemos sair daquela confinadora sala, me movimentar mais, Thalia e Enver sendo os primeiros a se despedirem, dizendo que precisavam pegar "a bebê" na casa de sua vó, me deixando curiosa, agora vendo os dois como pais, não apenas um casal qualquer. Aquilo me fez sentir um pouco mais de respeito pelos dois, principalmente de Thalia –eles estavam na resistência buscando dar uma vida melhor para sua filha e era algo admirável.

Nisha desceu com pressa, indo se encontrar com um rapaz que o esperava do lado de fora do antigo santuário e Elowen ficara ainda discutindo alguns assuntos com Torryn e Asher no mesmo cômodo.

Eu desci as escadas sozinha, ninguém se importando com meus passos mais uma vez enquanto um sentimento de breve alívio me invadia. Pela primeira vez em algum tempo, não me senti observada naquele momento.

Apenas eu estava no andar de baixo agora, vendo como o ambiente poderia ser gigantesco sem as pessoas o ocupando e como minha visão anteriormente havia me enganado a achar que a parte de dentro estava incrivelmente conservada. Mais apresentável que o lado de fora ainda era sem sombra de dúvidas, no entanto, as imperfeições estavam ali, ainda bem presentes, se destacando pelo contraste com a beleza das partes boas e inteiras. Meus passos ecoavam, ainda que secos, pela extensão que eu explorava até me lembrar da porta sob o segundo andar, a porta que levava ao pátio dos deuses.

Não foi eu quem me guiou até ali e, sim, minhas lembranças. As memórias calorosas como quando minha mãe me trazia para fazer piqueniques durante a primavera e inventava nomes para os deuses –o que poderia ser considerado blasfêmia, mas eu não entendia muito bem e também nunca liguei.

Em uma fração de suspiro, eu já me encontrava lá, sob o céu aberto com as grandes paredes de concreto e tijolos enfraquecidas e decadentes, algumas já caídas em pedaços específicos pelas questões de falta de cuidado e de tempo. Olhei ao meu redor e vi as altas estátuas quase desaparecidas, camuflando-se com vinhas que as escalavam e musgos que as cobriam além do mato com algumas flores que brotavam dos sulcos nas paredes, onde as estátuas se encontravam na tentativa de protegê-las das chuvas torrenciais e do sol impiedoso dos piores dias de verão ainda sem deixá-las escondidas.

Caminhei até Jezélia, uma estátua que, assim como todas, não possuía qualquer característica para ser tomada como homem ou mulher e, como de costume, um rosto sem definição, mas minha mãe, em atos de rebeldia, a tomara como mulher e a nomeara.

"Ela possui livros à seus pés, um pássaro ao ombro e um flautim nas mãos. Ela é a mais inteligente desses oito, claramente é uma mulher" minha mãe dissera e eu apenas aceitava.

Eu concordava, Jezélia parecia inteligente. Deusa da inteligência caberia à ela.

–Para qual você reza? –Estava tão dispersa em meus próprios pensamentos que quase deixei sua aproximação passar despercebida, me voltando à Elowen enquanto ela se aproximava. Tomei um tempo para responder, meu escrutínio mais uma vez à estátua.

–Eu não rezo. –Ela parou ao meu lado, o olhar no mesmo foco que o meu.

–Então você zomba dos deuses? –Seu tom não era julgador ou esnobe de qualquer maneira, era apenas uma pergunta em sua mais pura curiosidade. Me virei a fim de ficar de cara para ela, observando-a enquanto ela fazia o mesmo comigo.

–Não há como zombar de algo que eu não acredito. –A realização a pegou, fazendo com que sua cabeça levemente e, presumo, inconscientemente assentisse.

–Compreendo.

Eu realmente senti ela compreendera mesmo Elowen sendo uma fiel. Eu senti empatia pela parte dela, que podia enxergar pela visão de outras pessoas.

Ficamos algum tempo em silêncio, alternando nossos olhares ao que tinha ao nosso redor até que um pensamento me invadiu, me provocando um sorriso que não alcançava os olhos.

–Sabe, eu mesma já fui considerada um deus. –Depois de minhas palavras saírem da minha boca, Elowen voltara seu foco à mim, querendo saber sobre o que eu falava. –Deus da justiça, até soa chique. Muitos costumavam rezar para mim. Eu nunca atendi à um único pedido, sabe por quê? Porque eu não escuto. Ninguém escuta. –Meu desabafo fora rápido, mais para mim e para Jezélia do que para a menina ao meu lado, um verdade fria sendo jogada em minhas costas. –Mas eu nunca fui um deus, era apenas uma garota de sarjeta, invisível e esquecida. –Respeito a opção dela acerca de acreditar, mas aquilo parecia preso em mim por tempo demais, todas as vezes que Calia orava misericórdia, por um caminho pelo qual seguir e só recebendo pedras. –Não existem deuses, existem apenas pessoas e as coisas que as pessoas fazem. Talvez seja até melhor pensar assim, então aceitamos que a maldade do mundo vem apenas de pessoas más e não de entidades superiores espectrais. –Dei uma pausa e proferi pouco mais alto que um sussurro. –Dá para se vingar de pessoas, pelo menos. –Elowen ainda me encarava, me estudando, nada alterada pelo meu monólogo, mas seus olhos davam a resposta que eu precisava. Eles entendiam o que eu quis dizer. –Já está tarde, acho que já vou. Foi um prazer conhecê-la.

–Espero vê-la mais, Sombra. –Também adoraria, respondi-a em minha mente, entretanto, apenas me dirigi à saída, olhando para cima, para as diversas estrelas que uma vez jurei que decoraria os nomes, notando a lua em seu auge e em como a noite avançara rápido, estando mais tarde do que eu esperava. Me surpreendi ao ver uma forma na sacada do andar de cima, da sala de reunião, me olhando de volta. Ali estava Asher, altivo como se estivesse em um pedestal.

Será que aquilo era apenas implicância minha? Acho que nunca saberia.

Minha única reação fora aguentar o peso de seus olhos de escuridão até passar pela porta, ele me acompanhando em seu foco e eu grudada em seu olhar, um desafio silencioso. Não, eu não abaixaria minha cabeça à ele tão cedo.

Torryn estava na porta do santuário, apenas observando a rua quando me ouviu chegar perto, virando-se para mim.

–Quer que eu te acompanhe até perto do castelo por segurança? –Dei um sorriso bem aberto e sincero, achando graça de ele pensar que precisaria escoltar-me como se eu não tivesse que me virar nas ruas quando era nova ao ponto de não saber sequer o que era beijo.

–Acho que eu me viro bem no caminho, afinal, eu sou a Sombra, não é mesmo? –Essas ruas são minhas, quis dizer, mas contive minha arrogância. Ele fizera um gesto com a cabeça como se reconsiderasse o que dissera e julgasse suas próprias palavras.

–Fico feliz que você tenha vindo aqui hoje, de verdade. –Ele me olhava quase alheio, como se enxergasse mais que apenas eu.

–Apesar de tudo, fiquei feliz de ter vindo. –Meus passos se aproximaram dele, minha mão se levantando e apertando seu braço. –E fiquei feliz de te ver.

Ele emitira um sorriso como reação à mim, me deixando absorta por um tempo em seus olhos verdes como se fossem âncoras à lembranças boas.

Antes que ele respondesse, adentrei na noite, não querendo perder mais tempo para voltar ao castelo (e fazer uma coisa a mais).

Estava desviando-me do primeiro caminho que tomara para chegar à reunião, tendo um objetivo diferente.

Quando dissera que as portas das igrejas não se fechavam, eu falava sério, chegando perto enquanto os sinos da meia-noite badalava. Meia-noite de quarta-feira, dia sagrado, dia dos santos, dia de queimar minha vela.

O ambiente estava escuro e vazio, eu gostava disso. Peguei um fósforo que havia à disposição e o acendi, tocando o fogo cuidadosamente na ponta da vela quase toda derretida –na próxima quarta já terei que trocar, comprar uma nova. Sim, comprar, não roubar (mesmo que o dinheiro usado seja roubado), aquelas velas deveriam vir certo em minhas mãos.

Sua frágil, oscilante e bruxuleante luz não iluminava ou aquecia, mas cumpria seu papel.

–Sorrie para mim, mãe, pois eu precisarei de um pouco de sorte. –Ainda mais agora que me encontrava nos dois lados opostos dessa batalha.

Depois de toda a conversa da resistência, acabei me aliando, no entanto, aprendo minha lição muito facilmente. Todos querem me usar, querem Sombra enquanto tenho algo a oferecer, enquanto eu for útil.

Eu não conhecia o jogo, mas já estou dentro e mexendo minhas peças, o que eu não aceito é ter passado por tudo que passei para virar somente um peão descartável para qualquer um dos lados. Se a resistência quer me usar em seu objetivo, é apenas justo que eu os use para meus objetivos.

Ainda quero ajudar as pessoas, pessoas como eu, pessoas melhores que eu, mas não se for às custas da minha pele. Meu senso de preservação construído por todos esses anos falava mais alto.

Se eu ainda estou viva, é porque sei cuidar de mim

Sombra, lados opostos de uma mesma batalha, leal apenas à ela mesma.

Se eles se matarem, pelo menos eu viverei. É bom o suficiente.


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