O sujeito desmontou pesadamente e caminhou arrogante em minha direção. Chegou e perfilou-se na minha frente bateu com o punho direito no peito e estendeu a mão bruscamente a frente.
- Longa vida à Ordem! Como falei voltamos a nos ver ferreiro! Bradou com seu tom natural de ironia raivosa.
- Não esperava que fosse tão cedo! Respondi.
- Bom dia cavalheiros, a que devo a honra da visita! Atalhou tio Aldo sentindo as faíscas no ar entre nós.
- Longa vida à Ordem Mestre Aldo ferreiro, sua fama o precede e é o motivo de nossa visita! Tornou o General.
Confuso o tio olhou para mim e em seguida para tia Martha que secava nervosamente as mãos no avental.
- Precisamos de armas Mestre Aldo, e vossa mercê nos parece ser a pessoa mais indicada!
- As melhores armas para o melhor exército! Declarou, enquanto desviava o olhar sorrateiro em minha direção.
- Fico muito honrado Mestre General, mas não sei se temos a capacidade de produzir armas em quantidades suficientes para abastecer tão grandioso exército! Respondeu Aldo.
- Nada que uma inspeção em sua ferraria não nos dê uma ideia do que podemos pedir-lhe! Respondeu.
Ouvia cada palavra do comandante, mas a minha opinião sobre ele não se alterava. Era de uma arrogância incontida e parecia querer sacar a espada a cada palavra proferida. Não sei como alguém poderia viver em tamanho estado de ira. Ira essa que parecia jamais se abrandar.
"Que proposta descabida, há algo por trás disso!" Pensei.
- Pois então, não vejo problemas! Concordou o tio.
- O capitão Linsdt irá realizar a vistoria, eu ficarei aqui, preciso trocar algumas palavras com o seu sobrinho! Declarou o sujeito.
Tio Aldo me olhou com estranheza e mesmo contrariado, conduziu o Capitão para o galpão nos fundos. Virei-me e encarei-o diretamente.
- Pois não general?
- Não farei rodeios, costumo sempre ir direto ao assunto!
- Por certo! Respondi ainda encarando-o.
- De onde Vossa Mercê conhece a enfermeira Marielle?
"Que os demônios me levem, essa pergunta de novo?".
- Inicialmente do Hospital de Balga, como deveis saber, fazemos entregas lá!
- Certo, certo, e somente com as entregas já pode criar um, digamos assim, um laço tão estreito com a bela enfermeira? Questionou quase entre dentes.
- Quereis dizer, conquistá-la? - Sim, bastou isso, deveis saber, caro general, que o coração toma caminhos inesperados e na maioria das vezes não nos deixa escolhas então....! Decidi não completar a frase, enquanto exibia um sorriso de satisfação, o que deixou o soldadinho ainda mais irritado.
- Mas não é só isso ferreiro, o caso é que houve um crime no hospital de Balga! - Uma coisa terrível!
- Marielle foi levada como refém até a sala do doutor Gheller. Uma vez lá, foi forçada a ajudar o facínora a localizar uma caixa que continha coisas muito importantes para o mestre doutor!
- Em seguida foi fortemente amarrada em sua sala. O patife fugiu, mas não sem antes matar um de nossos soldados, um crime bárbaro!
O homem me encarava como que buscando a menor reação minha à história. Não movi um músculo da face e nem desviei o olhar. Von Plauen pareceu se certificar de algo e continuou.
- Só que o sujeito não contava com uma testemunha que cruzou com os dois, e nos deu uma boa descrição dele! Falou isso medindo-me de alto a baixo.
- Sinto ouvir que minha amada Marielle passou por tal provação! - Mas fora o fato de conhecer a enfermeira, qual a relação pensais ter eu com o crime? Respondi impassível.
- A princípio nenhuma, somente que a descrição dada, bate em muitos pontos com vossa aparência! Respondeu.
- Sou um homem comum, de aparência comum. Deve haver centenas iguais a mim na região! – Eu estou sendo acusado por isso?
- Ainda não podemos acusar ninguém! Pois o que nos deixa sem direção é que a descrição dada por Marielle não coincide com a que foi dada pela outra enfermeira! Respondeu.
- Que interessante! - Em quem acreditar então? Na vítima que esteve frente a frente com o assassino, ou na testemunha que o viu de relance? Não disfarcei a ironia e ainda complementei.
- Pois Mestre General, eu só soube agora do ocorrido, e por vosso intermédio! - Me considero inocente desse crime, mas culpado confesso de outro! Declarei.
- Qual crime? Perguntou Von Plauen confuso.
- O de conquistar Marielle! - Coisa que muitos homens da Cidadela consideram imperdoável! Respondi já pensando no efeito que tal declaração teria sobre o espírito furioso daquele sujeito. Não me enganara, ouvindo isso o homem quase perdeu o controle, senti-o tremer enquanto fuzilava-me com os olhos.
- Escute aqui ferreiro! - Eu não sei como, mas sei que estais envolvido nisso, e eu darei um jeito de descobrir!
Fingindo não ouvir as ameaças busquei mudar o assunto para algo que pudesse me ser útil.
- E o que havia de tão importante nessa caixa?
- Não é da vossa conta! Tornou Von Plauen.
- Pelo jeito havia coisas muito valiosas em seu interior, para provocar uma investigação tão tresloucada!
Acho que me excedi, pois o soldadinho colocou as mãos no cabo da espada e assumiu uma postura de ataque. Os outros soldados o seguiram.
- Biltre! O homem cuspiu a palavra na minha face.
- Somente sua insolência já é um bom motivo para cortar sua cabeça. Mas esse não é o lugar nem o momento. Assim que provarmos sua culpa eu mesmo farei isso! Respondeu tentando se controlar.
Permaneci impassível, não esbocei reação, sabia bem o que aconteceria se revidasse. A única coisa que fiz foi sustentar o olhar. A situação só foi amenizada pela chegada do tio e do capitão. O lunático mudou completamente de comportamento, soltou o cabo da espada e abriu um grande sorriso enquanto se virava para eles.
- Então capitão Linsdt, o que achastes das instalações? Já podemos mandar algumas encomendas ao mestre ferreiro?
- Sim comandante, podemos sim, só temos que definir a quantidade inicial e os tipos de armas que precisamos! Respondeu o Capitão.
- Excelente, vai ser ótimo trabalharmos juntos e ficarmos em contato mestre Aldo!
- O capitão já irá lhe adiantar um pagamento inicial e firmaremos o contrato agora com o selo da Ordem!
- Nos dias de trabalho que se seguirem, ele virá fiscalizar o andamento da fabricação e testar a qualidade das armas! Disse num sorriso satisfeito.
Não conseguia compartilhar a felicidade de tio Aldo enquanto recebia a gorda bolsa de táleres e assinava o tal contrato. Aquilo nitidamente tinha o objetivo de nos vigiar. De alguma maneira eu me sentia responsável pela situação. Agora teríamos ocasionalmente a visita de um oficial do exército para conferir o andamento dos trabalhos. Mais um problema que se juntava aos tantos outros. O General e seu pelotão saudaram respeitosamente os tios e em seguida partiram para Balga.
- Rayd meu garoto, estamos ricos, temos que comemorar. Digo, fabricar armas para o exército Teutão é o sonho de todo ferreiro que se preze. E conseguimos isso graças à qualidade do seu trabalho! Disse o tio não cabendo em si.
- Obrigado tio, o trabalho não é só meu, é de todos nós! Falei tentando esboçar um sorriso, mas não conseguia.
O tio pareceu sentir a minha inquietude.
- Eu sei rapaz, não era exatamente o que vossa mercê esperava. Me sinto contrariado em fabricar armas para esses assassinos, mas pressenti que eles não aceitariam um não como resposta. Senti o coração apertado. Senti que estaria expondo todos nós a um risco desnecessário! O tio se explicava com um tom de angústia na voz. Procurei tranquilizá-lo, afinal já estava feito.
Caminhei até a frente da casa, e de um outeiro próximo olhava para a estrada enquanto a tropa se afastava. Minha intuição martelava maus pressentimentos em minha cabeça, feito pregos na tampa de um caixão. Decidi afastá-los e me concentrar apenas em uma coisa, abrir aquela maldita caixa. Ao voltar-me para a entrada da casa, me detive no bosque que a circundava, alguns olhos me espreitavam entre as árvores. Outono e a alcateia estavam ali.
Tirei a caixa de um compartimento secreto que havia feito embaixo da cama em meu quarto. Era a primeira vez que punha os olhos nela desde os acontecimentos do hospital. Arrombei-a. Em seu interior moedas, algumas joias e três grossos livros com belas capas de couro. Tirei os livros e ignorei o restante. Meu instinto me dizia que eram eles o motivo de tanto interesse do doutor Gheller. O primeiro, de capa de couro avermelhado tinha muitas gravuras com anotações. Pareciam descrever com precisão o corpo humano e todos os seus órgãos, músculos e ossos.
"Coisas de médico!" Pensei.
O segundo de capa azul também em couro, trazia basicamente as mesmas coisas só que agora eram animais e suas partes. Órgãos internos, ossos, esqueletos completos, desenhos de músculos. Algumas gravuras eram bizarras. Tudo escrito em uma língua que não conseguia entender. O terceiro tinha uma capa preta bastante gasta e envelhecida. Era elaborada com desenhos pictóricos e gravuras em baixo relevo. Estava lacrado com um cadeado que decidi não violar. Levaria tudo para Marielle, ela saberia o que fazer.