O nome da sombra - Crônicas d...

By FlaviaEduarda10

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Sombra já estava acostumada a ser apenas isso: uma sombra aos olhos da sociedade que a marginalizava há 9 ano... More

Reinado das sombras
Prisioneira de luxo
Cuidada e cheirando a rosas e lavanda
Mania do oráculo
Na escuridão
Mentiras
Calia
Entre uma coisa e outra
O castelo pela manhã
O treinamento
O belo mundo de porcelana
É necessário conhecer o oponente
Assassino
Limites
O último Galene
Apenas reparação
Pessoas e deuses
Espere o esperado
Confronto
Loucura da realeza
Ladra
Sombra
A entrada não é pela porta
Os dias 14
Curiosidade
Sobre um belo vestido vermelho
Os nuances sobre a verdade
Presente
Tudo que viera antes
O primeiro furto
O buraco
Contradição
O que faz uma resistência
Últimos preparativos
É apenas lógico
Propriedade (de ninguém) do reino
O que uma ladra faz? Ela rouba
Encontro inesperado
Decisões entre cartas e camarões
Hayes Bechen
Roubando um pouco de volta
O sacolejo do barco
A linha tênue entre bom e mau
Fogo e gelo
Bayard
Incapaz de ter um segundo de paz
O que há depois do rio?
A ladra nem precisou roubar
A realeza de Drítan
Drítan não gosta de estrangeiros
Deveria?
Diplomacia e chá
A biblioteca
Confusão e incerteza são certezas
A área particular
Uma flor do deus Ignis
A reação para a ação é justiça
A calmaria antes da tempestade
Todo o ar do salão
De respirar a se afogar em um segundo
Teria que ser tudo
Automático
Deusa da (justiça) vingança
Um é a ruína do outro
O fardo do saber
A compreensão de como uma fênix funciona
Reinando das Sombras

Cobras e outros animais

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By FlaviaEduarda10

Adentrando no recinto, consegui as visualizei sentadas. Presumi que aquela ao lado da Rainha fosse sua esposa, já que ela aparecia muito pouco junto de Miranda em suas aparições públicas.

Melissa, uma mulher em seus 30 e alguma coisa, nativa do antigo reino, não transpassava segurança da mesma forma que sua esposa, no entanto, ela exalava poder de maneira única. Seu vestido era bordado com representações de galhos vermelhos e verdes contornados em dourado, cujo os formatos iam gradualmente desaparecendo em sua saia, terminado em uma extensão vermelha com o dourado se destacando em fios brilhantes, contrastando com sua pele escura, mais escura que Torryn e mais reluzente também, me lembrando a beleza de uma noite estrelada. Sua boca bem preenchida era harmoniosa em seu rosto, que tinha a delicadeza em grandes e marcantes traços. Grossas sobrancelhas pretas bem delimitadas, grandes olhos castanhos se combinavam em sua fina face, com suas maçãs do rosto destacadas pelo brilho que passava pelas janelas e os adornos dourados que usava pelo cabelo cacheado cintilando.

A Rainha, por sua vez, trajava um vestido menos elaborado que o de sua amada. Um simples tecido branco com um grande decote na parte da frente, demonstrando orgulhosamente sua tatuagem de serpente entre seus seios, a insígnia de seu reino, um cinto de metais prateados e correntes finas da mesma cor caindo sobre seus ombros, como se fossem as mangas de sua vestimenta.

Alternei meu olhar entre ela e Miranda e vi como fazia sentido. Miranda, prateada, era a lua que havia se apaixonado pela noite de Melissa.

Me curvei em uma reverência tímida e desajeitada na direção das duas, que se viravam para me observar. A Rainha estava na ponta da esquerda, sua cônjuge sentada na cadeira à sua direita. Melissa, que parecia mais acalentadora que Miranda e sua aparência fria, me dirigiu um sorriso bastante agradável.

–Você deve ser Sombra, então! –Desviou seu olhar de mim para sua amada, procurando pelo que parecia ser uma confirmação, e voltou seu foco em mim com seu sorriso inabalável. –Devo confessar, quando me disseram que conseguiram descobrir quem era a tão infame Sombra, não pensava que fosse ser tão nova.

–Ninguém pensava. Deve ser por isso que consegui ficar tantos anos sem ser descoberta. –Ao deixar escapar aquelas palavras, refleti que poderia não ser o tipo de coisa que elas gostariam de ouvir ao ver a feição de surpresa em Melissa, no entanto, ela também tinha o mesmo senso de divertimento ácido que a Rainha, que a olhou como se dissesse "Eu lhe disse que ela é assim".

–Suponho que esteja certa. –Abrindo ainda mais seu sorriso no meio de uma risada controlada. –Não fique aí parada, sente-se ao meu lado!

Um tanto surpresa, fui caminhando até ela, do outro lado da mesa, me sentando quase ao mesmo tempo que empregados passavam por uma das várias portas que levavam até aquela ala cheios de comidas, nenhum sendo reconhecido por mim. Durante toda a loucura de pratos, travessas e pessoas, nem notara que Nikolai também caminhava pela mesma entrada que eu alguns segundos atrás, na tentativa de me distanciar dele.

Droga, era só o que me faltava ter que almoçar de cara com ele.

Antes mesmo que meu pensamento emendasse em outro, outras três pessoas foram entrando na sala e se sentando, uma mulher e dois homens, todos me estudando com olhares curiosos. Quem sentara ao meu lado era um homem sem cabelos, sobrancelhas ou sequer cílios, uma pele bem alva, talvez até mais que a própria Miranda. Ele era consideravelmente alto, maior que todas as pessoas que eu havia visto no palácio até agora e, pelo que parecia, bem magro, mesmo que não tivesse como ter certeza pelas roupas que vestia, uma túnica marrom com um cinto que passava pelo quadril, similar ao meu, no entanto, enquanto o meu era de couro com bordados em prata, o dele era mais simples, sendo apenas uma tira de couro escuro. Seu corte também, reto, como se não quisesse nada em seu corpo destacado. Me era uma imagem interessante, com seus olhos inteligentes e simpáticos. Ele me deixava confusa, não conseguindo decifrar se ele era alguns anos mais velho que eu ou mais velho até mesmo que a Rainha.

Os outros dois se sentaram à minha frente, a mulher ao lado de Nikolai. Ela tinha uma beleza diferenciada, rústica, dura. Parecia que ela estava sempre preparada para guerrear, me observando como se eu fosse um animal que rapidamente poderia perder o controle. Seus olhos eram azuis como o oceano visto de longe, do caís. Seu cabelo era castanho escuro, voltado para o acobreado, dividido rigorosamente ao meio, descendo escorrendo pela sua face de tão liso que era, emoldurando seu rosto anguloso, suas maçãs do rosto tão afiadas que tinha medo de me ferir se me aproximasse, lindo e perigoso. Suas vestes eram pretas, simples, com um corpete de metal prateado justo ao seu corpo não tão curvilíneo, parecendo parte de uma armadura desmembrada.

O último, que sentava à esquerda da mulher, era um homem grisalho de feições rechonchudas, olhos pequenos e brilhantes, corpo largo e baixa estatura, mesmo que maior que eu –não que isso fosse difícil, realmente. Não demorou seu foco em mim por tanto tempo. Trajava um casaco vermelho com medalhas da realeza fechado sobre uma blusa, os botões lutando para permanecer no mesmo local, abrindo-se em brechas.

Um grupo de três pessoas bem diversificado, devo dizer, contudo meus devaneios sobre eles foram instantaneamente transferidos à outra sensação –algo se arrastando pelos meus pés, escamas raspando em minha perna e minha respiração perdida. Lancei um olhar desesperado para Melissa e no mesmo ar de um suspiro amedrontado, soltei:

–Acredito que tenha uma cobra em meus pés. –Um pedido sublime de socorro, me esforçando com todos os nervos do meu ser não causar uma cena, meus músculos rígidos. Ao invés de compartilhar dos meus sentimentos, revirou os olhos, parecendo irritada e entediada, se voltando à Miranda.

–Você deixou Arco-íris solta? Sabe bem que, ao termos visitas, ela fica no quarto! –Ainda me encontrava com os olhos arregalados, dessa vez por ter presenciado o jeito como Melissa se referia à Rainha. "Você" e não "vossa Majestade", além de que aquilo era evidentemente uma reprimenda. Ela estava mesmo dando uma bronca na Rainha na nossa frente? Miranda, por sua vez, se levantou igualmente irritada, se agachou ao meu lado, enfiando sua mão por debaixo da mesa e retirando de lá uma serpente com escamas furta-cor metálicas, hipnotizante na mesma medida que mortal, envolvendo-a em seu próprio corpo como uma echarpe brilhante e colorida. Então ela era a referida "Arco-íris"?

–A casa também é dela! Os convidados que deveriam se acostumar à ela. –Pelo visto, a plateia não as incomodava, na verdade, nem mesmo os presente se viam abalados pelo que acontecia. Nada os tinha surpreendido, nem a cobra, nem o linguajar da esposa da Rainha ou o pouco caso que a própria Miranda fazia disso. Parecia uma discussão mais antiga do que a minha presença evocava.

–Amor, eu entendo o seu ponto de vista, mas os convidados não são animais peçonhentos que provocam medo como uma cobra o faz. –Eu já esperava que fosse acontecer algo do tipo assim que terminara sua frase. Como se fosse sua deixa, ao ter as palavras proferidas, Nikolai engasgou com o que estava bebendo de maneira teatral e discreta ao mesmo tempo. O desferi um olhar mortal: "quanta classe me chamar de cobra, ainda mais quando não fui eu quem se esgueirou em um corredor sozinho atrás de uma jovem desarmada para ameaçá-la ".

Seu ato chamou também a atenção da Rainha, que o analisou e focou em sua mão direita que tinha marcas recentes de dentes e um vermelho em alto-relevo surgindo.

–Pelos deuses, o que aconteceu? Algum animal te mordeu? –A ironia na fala de Miranda me fez rir internamente. Assim como eu, ela era uma descrente que evocava seus nomes e suas faces.

Ele me lançou uma rápida observação, voltando ao seu copo e levantando seus olhos para a Rainha novamente.

–Digamos que sim. –Engraçado que, por um momento, eu queria que ele permanecesse vivo. Queria retirar os pensamentos que já haviam sido lançados ao mundo. Se ele morresse, não me veriam reclamar.

Uma resposta estava na ponta da minha língua, me coçando para ser liberta: "Acho que deveria saber que não se pode ir atrás de animais que estão em seus cantos e irritá-los", mas aquilo seria um pouco demais, exposição demais, preferi me remexer, inquieta, no meu assento, no entanto, outra pessoa interpretou aquilo de forma diferente.

–Não se preocupe, daqui a pouco você se acostuma com a forma de convivência das duas. –Virei-me para a voz ao meu lado que proferiu aquelas palavras sussurradas, para o homem sem pelos ao qual eu ainda não havia sido apresentada inclinado para mim com um sorriso sem mostrar os dentes. Infelizmente, nem mesmo como ele falava me dava indícios de sua idade, soando como um rapaz e como um homem já passado dos trinta e tantos ao mesmo tempo.

–Sempre é assim, já é algo comum. –Proferiu o outro homem, do outro lado da mesa também em um tom baixo. A rainha, que voltou a prestar atenção no resto da mesa e em seus presentes, pigarreou, chamando nossa atenção para ela.

–Agora que a mesa está completa, queria apresentar-lhes à minha nova convidada. Sombra, esses são Bram, Lazarus e Jasira. –Sua mão direita apontando para cada um enquanto recitava seus nomes: Bram era o homem ao meu lado, Jasira era a mulher e Lazarus se tratava do mais velho da sala.

Assim que meu nome fora pronunciado, todos tiveram diferentes reações. Bram franziu uma parte de sua testa, como se levantasse uma sobrancelha inexistente, Jasira pareceu não ter entendido o que a Rainha dissera e Lazarus apertou seus lábios e parecia estar segurado sua respiração, começando a ficar vermelho.

Contra a minha suposição, ele estava bem e respirando, apenas nervoso, demonstrando sua revolta batendo com as duas mãos na madeira polida da mesa e se levantando em um pulo.

–Eu disse que era contra essa ideia! Essa menina é uma criminosa, deveria ser exposta, presa, com os dedos cortados, não comendo na mesma mesa que nós. –Esbraveja enquanto gesticulava com seus braços curtos e roliços, seu rosto mais vermelho que sua jaqueta. Estava me sentindo mais ameaçada do que quando Nikolai tinha sua lâmina contra minha garganta, como se, de repente, pudessem mudar de opinião e eu perder minha utilidade, minha importância, me encolhendo em meu assento, meus ombros se curvando involuntariamente.

Jasira, com uma clara falta de paciência em sua expressão, passou uma mão pelo rosto, cansada. Parecia uma velha briga.

–A gente se lembra bem que a sua opinião ia contra o nosso plano, mas a ignoramos porque era uma opinião estúpida! Você já sabe que precisamos dela, pare de fazer caso e se sente. –Lazarus, com pura fúria e hesitação, seu foco ainda em Jasira, encostou na cadeira novamente. Jasira, com toda sua imposição, dirigiu um olhar para mim, me analisando, e depositou-o em Miranda, por fim. –É ela? Sério? –Voltando a me estudar, sem nem sequer esperar a confirmação da Rainha, interessada, notando o que ela tinha deixado passar anteriormente. –Quantos anos tem, menina?

Ao perceber que ela falava comigo, retribuí sua atenção, encarando-a de volta. Não sabia se queria respondê-la. Revelar minha idade poderia fazer com que ela rapidamente descobrisse quantos anos eu tinha quando minha vida nas ruas tinha começado, eu não queria isso. Mesmo que ela já pudesse ter uma ideia do quão jovem eu sou apenas pela minha aparência, falar os números exatos o fariam oficial.

–Há quanto tempo as sombras realmente existem? Existe sequer alguma forma de responder isso? –Suas finas marcas na testa se aprofundaram um pouco mais para entender o que eu queria dizer com aquilo.

–Não faça isso com a pobre Jasira, filosofia a deixa com dor de cabeça. –Bram se direcionou para mim em um tom conspirador e um sorriso divertido, para que Jasira não conseguisse escutar. –É um prazer conhecer a pessoa que conseguiu fazer o que você fez por tantos anos sem nunca levantar suspeitas. Você provoca diferentes reações, como pode ver: há pessoas que te admiram e há quem se enfurece pelas suas atividades. Faço parte do primeiro grupo, caso não tenha percebido.

–É um prazer conhecê-lo também, Sir Bram. –Proferi com educação automática, mesmo ele parecendo gentil.

–Bram não é Sir, ele é o nosso Erudito. –Explicou Melissa, se inclinando em minha direção, tornando-se parte da conversa enquanto o resto já iniciava uma discussão entre eles ao momento nos era disposta a comida. Eu não sabia que nosso alimento seria posto nos pratos por outras mãos, já segurando os talheres para me servir. Era estranho pessoas desconhecidas adivinhando o que eu gostaria de comer, existia alguma regra? –Jasira é nossa General, nossa Mestre de Guerra e Lazarus é nosso Mestre da Moeda, quem controla a economia do reino. –Agora faz sentido seu ódio por mim, era uma pedra em seu sapato diariamente.

–Bram, sendo um Erudito, não pode ser um Mestre? –Não sabia nada acerca da realeza, minha cabeça girava com seus títulos, funções e poderes.

–Seu posto é um pouco diferente pelo motivo de como ele veio a existir. –Um silêncio se fez enquanto ela esperava minha reação, o que denunciou meu raciocínio lento em uma feição confusa. –É realmente um pouco mais complicado, se tivermos mais tempo, posso te explicar um pouco mais sobre as divisões da corte.

–Agradeço pela oferta, vossa Alteza, eu adoraria isso. –Ao terminar de falar, ela abaixou o garfou que estava a meio caminho à sua boca com um sorriso curioso estampado.

–Eu não sou alteza, Sombra. Sou Lady Melissa, ou apenas Melissa, não me importo tanto. –Se estava tendo problemas em acompanhar o que ela me dizia antes, agora minha lógica havia se despedido.

–Mas a senhora não é casada com a Rainha? Isso não deveria te tornar Rainha também? –Ela sorriu de lado, deixando seu talher completamente esquecido.

–Não ganhei o título para evitar confusão de Rainhas. –Apenas continuei a encará-la, pensando se aquilo era sério. Ela não tinha o título apenas para que outros não se confundissem? Vendo minha surpresa, riu da minha ingenuidade não rudemente. –Estou brincando, não é isso. A família Melione passa seu sobrenome apenas seus descendentes consanguíneos, assim eles pensam que outros não podem se aproveitar de seus títulos e eu não reclamo. Ainda bem que eu não tenho todo o trabalho que Miranda tem, nunca conseguiria terminar um livro que fosse se tivesse os deveres de uma Rainha. Mas... você não sabia disso? De como funcionam as regras de regência? –Pelo seu tom, supus que fosse algo apresentado nas escolas e que era chocante uma jovem crescida não saber disso.

–Não sabia, não fiquei muito tempo tendo aulas. –Estava mais ocupada tentando sobreviver nas ruas por cada dia do que entendendo como funcionavam os títulos da nova realeza, quis dizer, no entanto, ela estava sendo educada comigo, não tinha motivo de usar escárnio gratuitamente. Talvez ela, vivendo dentro das paredes de um belo palácio, sendo servida, tendo um grande e sempre cuidado jardim, não soubesse como era a vida real do lado de fora. E eu era a amostra mais próxima que ela tivera desse mesmo mundo ou, pelo menos, a amostra que valesse a pena sua atenção, pensando nas pessoas que trabalhavam aqui.

Assim que disse, percebi a realização alcançando seus olhos. Eles não tinham certeza de quantos anos eu tinha, mas a resposta de que eu era jovem vinha em meu rosto e, pelo menos, ela tinha consciência de que eu havia começado a ganhar minha reputação há 8 anos, mesmo que tenha começado a roubar há 9. Realmente, eu não teria tempo para escola, a compaixão e compreensão surgindo em seu olhar. Pelo menos não era pena que eu via, não sei como reagiria à isso.

–Entendo. Você gostaria de sessões de estudos gerais comigo? Eu adoraria te ensinar sobre essas coisas, principalmente que, quando for visitar à corte de Drítan, algumas dessas informações serão necessárias. O que me diz? –Sua oferta original acabou de evoluir e eu era grata por isso. Saber como funciona esse ninho de cobras me ajudaria em vários aspectos.

–Quando a senhora estiver disposta. –Respondi sorrindo, finalmente me permitindo aproveitar o conteúdo no prato à minha frente.

Se eu considerava luxuoso o que me davam enquanto estava presa, aqui, à mesa da Rainha, eu via o que realmente era luxo. Ou talvez nem luxo seria a palavra certa. Se os deuses se alimentassem, definitivamente, era isso que eles comeriam.

Cada mordida, garfada, gole, trazia sabores diferentes e sensações novas, seu cheiro fazendo parte de toda a festa. Não sei como havia resistido aos aromas por tanto tempo, mas, ainda aproveitando, lembrei do antes. Lembrei dos outros.

Enquanto eu me esbaldava com o que me era oferecido, adicionais vindo de todos os continentes, lá fora, nas esquinas, existiam pessoas passando por dias pensando quando será a próxima refeição. Será que existiria uma próxima refeição para eles? Eu ainda lembrava da minha barriga doendo, da incerteza.

Do medo.

Enquanto eu dormia ao relento para tentar esquecer a fome, isso era o que serviam dentro do castelo.

A comida havia, de repente, perdido a maior parte do gosto, insossa, arenosa, cinza.

–Que bom que vocês estão todos de acordo. Todo sábado vocês se reunirão em meu escritório para discutir o avanço entre os planos elaborados por Nikolai e Sombra durante o restante da semana, horários e dias sob revisão dos dois, excelente. –A voz de Miranda proclamou em alto e bom som para que todos à mesa a escutassem sem precisar de repetições. Terminou ao pousar seus olhos sobre seu auxiliar e sobre mim. Que eu trabalharia com o desgraçado eu já sabia, mas não fazia ideia que seria tanto assim.

Desferi um olhar a ele pela primeira vez depois de seu insulto. E lá estava ele, em todo o seu poder, tão convencido, inclinado para trás na cadeira, tomando um gole do que quer que tinha em sua taça, os olhos grudados no meu. Seja o que fosse, queria um gole daquilo.

Peguei um pouco do vinho disponível, despejei em meu copo e o levantei em sua direção.

–Para um trabalho bem feito. –Se não nos matarmos antes. Todos brindaram a isso e o imitei, tomando meu gole demoradamente com meu olhar grudado ao dele.

Que ele entendesse de uma vez por todas: o que quer que ele fizesse, eu faria melhor.

Não, eu faria pior.

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