O nome da sombra - Crônicas d...

By FlaviaEduarda10

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Sombra já estava acostumada a ser apenas isso: uma sombra aos olhos da sociedade que a marginalizava há 9 ano... More

Reinado das sombras
Prisioneira de luxo
Cuidada e cheirando a rosas e lavanda
Mania do oráculo
Na escuridão
Mentiras
Calia
Entre uma coisa e outra
Cobras e outros animais
O treinamento
O belo mundo de porcelana
É necessário conhecer o oponente
Assassino
Limites
O último Galene
Apenas reparação
Pessoas e deuses
Espere o esperado
Confronto
Loucura da realeza
Ladra
Sombra
A entrada não é pela porta
Os dias 14
Curiosidade
Sobre um belo vestido vermelho
Os nuances sobre a verdade
Presente
Tudo que viera antes
O primeiro furto
O buraco
Contradição
O que faz uma resistência
Últimos preparativos
É apenas lógico
Propriedade (de ninguém) do reino
O que uma ladra faz? Ela rouba
Encontro inesperado
Decisões entre cartas e camarões
Hayes Bechen
Roubando um pouco de volta
O sacolejo do barco
A linha tênue entre bom e mau
Fogo e gelo
Bayard
Incapaz de ter um segundo de paz
O que há depois do rio?
A ladra nem precisou roubar
A realeza de Drítan
Drítan não gosta de estrangeiros
Deveria?
Diplomacia e chá
A biblioteca
Confusão e incerteza são certezas
A área particular
Uma flor do deus Ignis
A reação para a ação é justiça
A calmaria antes da tempestade
Todo o ar do salão
De respirar a se afogar em um segundo
Teria que ser tudo
Automático
Deusa da (justiça) vingança
Um é a ruína do outro
O fardo do saber
A compreensão de como uma fênix funciona
Reinando das Sombras

O castelo pela manhã

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By FlaviaEduarda10

O sono veio, mesmo que não tão cedo, e deitei merecidamente naquele gigantesco colchão que parecia ser feito de algodão e nuvens, mesmo que não pudesse ficar sobre ele por muito tempo, já que, ainda no início da manhã, pelo segundo dia seguido, Kai interrompeu meu estado de estupor batendo na porta, o volume aumentando gradualmente.

–Está vestida? –Murmurei algo, ainda alheia de ter acabado de acordar, que poderia ser interpretado como "sim". Ele irrompeu pela porta, me olhou e, em menos que uma respiração, no mesmo passo, virou seu corpo e passou novamente pela porta, encostando-a atrás de si. Já fora do quarto, escutei sua voz pela madeira. –Perdão, pensei que você tivesse dito que estava vestida.

–Mas eu estou de roupa. –Comentei confusa, olhando para baixo, meu corpo coberto pela leve e esvoaçante camisola verde claro que haviam deixado no armário para mim.

–Você está de camisola! –Declarou ele, ainda do lado de fora, de modo a me fazer entender o que ele queria dizer.

–E camisolas não são roupas? –Argumentei em seu mesmo tom. Um silêncio se seguiu, como se ele realmente concordasse com minhas palavras, quebrado por um distante "Oh, olá" vindo de Kai e pela porta se abrindo mais uma vez, no entanto, era Cordélia que passava por ela.

–Desculpe-me, senhorita Sombra, demorei para trazer suas novas vestes. –Olhei para ela em dúvida. Eu havia ido até a estalagem ontem justamente para ter minhas próprias vestes, não precisava da boa vontade da Rainha.

–Isso é desnecessário, Cordélia. Eu tenho minhas roupas. Não precisa ficar alargando e encurtando seus vestidos. –Seus grandes olhos me encarando, como se estivesse incerta do que faria. Deveria estar aqui sob outras ordens.

–Mas não são minhas roupas, a rainha as pediu para você sob medida. –Não pude deixar de demonstrar minha surpresa. Como já teriam feito aquelas peças com minhas medidas? Ou melhor, como conseguiram minhas medidas? Se bem que, para a última questão, era necessário apenas alguns ajustes nas medidas da própria Cordélia e, sobre a velocidade de como ficaram prontas, depois de ter presenciado em primeira mão o que Dhara, Eira e Cordélia eram capazes de fazer, não duvidava que de ontem para hoje já estivessem em perfeitas condições de serem usadas. Passei meus dedos pela pilha de diferentes tecidos que ela carregava, cada um com um toque diferente.

Esticando a peça que estava por cima, admirando seu trabalho, pude soltar um suspiro. Definitivamente, aquilo era melhor do que o que tinha em minha bolsa.

Era um vestido de veludo vinho, emitindo um certo brilho enquanto se movia pela luz que vinha da janela, tão macio que eu precisei levar até o meu rosto, o material acariciando minha pele.

–Pode me vestir esse? –Minha voz saiu como um fiapo, quase um sussurro, ainda completamente focada no que segurava. Ela assentiu em silêncio, deixou o resto que segurava sobre a cama e foi me ajudar a me tirar da camisola (o que eu conseguiria muito bem fazer sozinha, mas ela foi caminhando automaticamente para os laços em minhas costas) –Ah, e antes que eu me esqueça, não precisa me chamar de senhorita. Uma ladra não é senhorita, além de que o título junto com o nome "Sombra" me soa um tanto quanto estranho, não acha?

Em um som quase imperceptível, notei uma pequena risada anasalada vindo dela. Ela era melodiosa, toda delicada. Parecia que tinha saído de uma pintura, com suas sardas beijando suas bochechas, sua pele marrom claro, seus olhos como se fosse mel. Sua aparência explicava o tom alegre no "Olá" de Kai.

Suas mãos macias como o próprio tecido foram ajeitando minha vestimenta. Tinha um cinto de couro com bordados em prata que passava pelos meus quadris, descendo pelo meio da saia, tinha também um grande decote cortado nas costas, deixando-a toda exposta, inclusive minhas cicatrizes. Não me importava muito se elas eram visíveis ou não, ou pelo menos era nisso que eu acreditava, mesmo assim, fiquei mais sossegada ao saber que meu cabelo cobriria a maior parte delas. Ainda tentando se apressar, para que Kai não ficasse me esperando por tanto tempo, penteou meus cabelos rapidamente, apenas para que não parecesse que eu havia acabado de acordar –o que, de fato, tinha acontecido. Por fim, lavei meu rosto na bacia de água gelada na minha penteadeira e caminhei para fora, notando que Cordélia continuava do lado de dentro organizando o que levara em meu guarda-roupa. A agradeci pela ajuda e encontrei Kai sentado no chão, de frente à porta.

–Finalmente, estava começando a pensar que havia voltado a dormir. –Revirei meus olhos com seu humor levemente irônico.

–E agora, estou suficientemente vestida para você? –Ele me observou de cima a baixo e, para lhe dar mais material a ser absorvido, dei uma voltinha teatral.

–Está perfeitamente vestida, podemos finalmente comer? –Sem outras perspectivas do que poderia fazer e com minha barriga roncando, apenas fui o seguindo.

Era uma área que eu ainda não tinha explorado, indo atrás de Kai enquanto ele comentava sobre o castelo, a decoração e suas divisões. A cozinha ficava relativamente perto de uma ala que, segundo ele, era onde a Rainha, sua esposa, seus agentes mais próximos, de mais confiança e seus convidados, como ela decidisse trata-los, almoçavam e jantavam, para que durante a viagem de um cômodo para outro não esfriasse a refeição. Passamos apenas de relance por uma das entradas para a grande sala, me impedindo de ver direito. Reclamei disso para ele, me respondendo apenas com um "passaremos por aqui quando puder ouvir meus pensamentos melhor que meu estômago vazio" sem paciência.

–Se está com tanta fome assim, por que não comeu antes? –Ela diminuiu seu passo, me olhando de esguelha disfarçadamente.

–Eu não queria que comesse sozinha. Aqui é um lugar novo pra você, tudo pode parecer estranho, imaginei que apreciaria uma companhia. –Ele não tinha um tom afetado, como soaria se quisesse fazer aquilo por pena ou para ganhar minha especial admiração de maneira forçada. Era um sentimento genuíno dele, algo que gostaria que fizessem por ele se estivesse em meu lugar, dando para notar até mesmo no jeito apressado e um tanto mais contido que havia proferido.

Sorri para ele, mesmo que não estivesse olhando diretamente para mim.

–Imaginou certo, Kai. Obrigada por esse gesto. –Descontraído, se virou para mim e lançou-me uma piscadela amigável. Sorte minha que era ele a pessoa designada para manter o olho em mim. Raridade seria encontrar alguém tão agradável e cavalheiresco como ele na guarda da coroa.

Percebi que o nosso destino se aproximava pelo cheiro espalhado pelo corredor. Eram temperos, iguarias, diferentes massas, carnes, assados. Mesmo naquele horário da manhã, meu olfato fazia festa e se sentia na feira novamente. Passando pela porta, Kai pela frente, outro cheiro dominava: pão.

Pães recém saídos do forno eram meus favoritos, ao ponto de que me arriscava um pouco mais em meus furtos apenas para conseguir uma bisnaga quentinha. Ali, não existia aquele risco, era realmente para mim.

A cozinha ela um local cheio de informações e extenso, cores alternadas entre branco porcelana, marrom madeira e preto ferro, diversos balcões espalhados pelos quatro cantos para que várias pessoas pudessem trabalhar ao mesmo tempo e uma grande bancada no centro, cheio de ingredientes que seriam usados, meu palpite, e comidas já preparadas. Apenas aquela visão fazia minha boca salivar, finalmente entendendo que era da realeza que aquilo tudo se tratava, nada menos que excelente era esperado. O local era claro, um pouco mais quente que do lado de fora, acolhedor e convidativo.

–Oh, minha criança, você parece faminta! Kai, por que não a trouxera antes? –Kai abrira a boca para começar a se explicar, esclarecer que, na realidade, a culpa era minha, mas Dhara não permitiu que continuasse. –Venham os dois, essa fornada acabou de ficar pronta, pegarei um pouco de queijo de cabra para vocês. O leite fresco está sobre a mesa. Kai, seja educado e sirva um pouco para a moça.

Kai, ainda surpreso por ter sido rebaixado de babá a empregado, a obedeceu, possivelmente por medo das consequências se não o fizesse. Dhara, antes de se dirigir à outra porta do lugar, oposta ao portal que entramos, que estava aberta e dava para o lado de fora, o céu azul podendo ser visto ao longe, caminhou em minha direção, colocando meu rosto em concha sobre suas mãos e me analisando.

–Veja só, já parece completamente melhor do que ontem, antes dos nossos cuidados. Esses dias lhe farão bem, devolver um pouco de carne para essa bochechas. –Terminou de falar beliscando-as levemente de modo carinhoso.

Com um pão já na boca, Kai enfiou uma de suas mãos no bolso da sua jaqueta da guarda da coroa e retirou de lá a chave que havia pegado emprestado de Dhara, devolvendo-a.

–Ah, obrigada, menino. –O agradecimento durou pouco, logo transformado em sermão. –Você precisa cuidar melhor das suas coisas, já lhe disse.

Kai, nada afetado, me olhou com um sorriso aparecendo no canto de sua boca como se fosse uma piada particular e esticando seu braço com o copo de leite para mim.

–Pode deixar, senhora Dhara. –Sorri de volta e revirei os olhos enquanto pegava o que ele me oferecia, também me esticando para pegar um dos pãezinhos macios quando vi Eira entrando no momento em que Dhara se retirava. Pousando seus olhos em mim, fez uma breve e confusa reverência. Eu sabia que ela deveria estar pensando "ela era prisioneira até ontem, além de ser uma ladra, preciso me curvar? Qual seu título, afinal?". Não a julgo, aquilo era complicado até mesmo para mim.

–Bom dia, senhorita Sombra. –Já, ao pousar os olhos em Kai, virou-se para Dhara, que entrava em cena novamente, e a perguntou em um tom que sabia que ele escutaria. –A senhora não tinha expulsado ele da cozinha?

Já fatiando o tal queijo de cabra, a faca tão delicada e manejada com maestria como uma agulha em sua mão, virou-se para Eira ao mesmo tempo que despejava os pedaços em dois pratos.

–Expulsei... só em momentos de pico, como almoços, por exemplo. Além disso, ele trouxe companhia. Contanto que ele não atrapalhe, –Dhara lançou um duro e bem expressivo olhar em sua direção –não tem porque ele não poder ficar por aqui quando está relativamente vazia. –Já Kai, em resposta, apenas lhe lançou um sorriso travesso, como se dissesse "nunca pensaria em fazer isso" e "não posso prometer nada".

–E você, senhorita? Está gostando da ideia de ficar por aqui? –Eira me perguntou se aproximando com um avental sobre seu vestido. Passou seus olhos sobre o que eu vestida e um sentimento de orgulho passou em seus olhos. Ela deve ter sido uma das pessoas que trabalhou nele, sendo fácil reconhecer seu esmero e talento. Entre uma mordida e outra, dando um gole em meu copo de leite, a respondi.

–Creio que ainda seja muito cedo pra ter uma opinião sobre, mas aqui é um lugar bonito, devo confessar. –Kai, surpreso, franziu o cenho alegando que eu nem sequer tinha visto o suficiente do ambiente para ter tal conclusão (pelo menos, não que ele soubesse), me apressando para comer, mesmo com os protestos de Dhara alegando que era para que eu comesse em meu tempo.

Enquanto me demorava em minhas últimas mordidas, Kai me pegou pela mão e começou a me puxar pelas direções, dizendo apenas que precisávamos aproveitar o tempo que ainda tínhamos.

Primeiro, ele me levara ao jardim, estando mais familiarizada com o local do que ele poderia imaginar, contudo, ver tudo aquilo pela perspectiva da manhã trazia mais vida, suas cores, mais brilhantes.

Sentinelas agora andavam em maior quantidade pelos cantos e o silêncio da madrugada foi substituído pelo leve farfalhar das folhas das árvores, o cantar dos pássaros, os passos sobre a grama verde e uniforme, as abelhas indo de flor em flor. O frescor substituído pelos aromas da manhã.

Pela temperatura já nesse horário, sim, o verão realmente se aproximava.

Fui sendo guiada pelas trilhas, escutando seu falatório acerca das videiras, das pilastras, dos quiosques, do chafariz em seu centro, o qual tinha a mesma arquitetura da fonte das igrejas, em homenagem aos deuses de muitas faces sem que tivessem seus formatos delimitados. Achei curioso que mantivessem tal construção no palácio. Essa não era a religião dos Meliones.

De lá, ele me levou para as outras alas, passando pela torre de observação, que era mais virada para a cidade do que para o castelo, pela ala comunal da Rainha, por onde passamos mais cedo, similar com a sala do trono, ainda que em escala menor e com uma mesa de madeira preta que se estendia pela maior parte do local. A sala de treinamento me foi capturada apenas de relance, infelizmente, já que os sons vindo de lá despertavam meu interesse. Quando seguimos reto, sem parar para que ele me mostrasse o que tinha lá, questionei-o do porquê. Ele fez um gesto com as mãos como se dispensasse tal questão, dizendo que mais tarde eu teria tempo suficiente para observá-la.

Depois de tanto explorar e andar, todo o barulho se viu amplificado e agitado. Kai, assim como eu, percebeu que deveria estar próximo do horário de almoço.

Passos que foram se aproximando apenas confirmaram, com Cordélia e sua delicadeza novamente atrás de mim.

–Olá, senhorita Cordélia, devo dizer que está esplêndida ho...

–Senhori... Sombra, –corrigiu-se depois de provavelmente lembrar da nossa última conversa, a qual eu pedia menos informalidade entre nós, cortando os modos galantes de Kai enquanto ainda se curvava –a Rainha pediu para que se arrumasse para almoçar com ela.

Meus olhos arregalados pela surpresa encontraram os seus, naturalmente enormes, intercalando meu foco entre ela e Kai, a pergunta subentendida.

–Pode ir com a bela senhorita Cordélia. –Uma breve piscadela foi lançada para a jovem, que, por sua vez, revirou os olhos. –De todo modo, iríamos acabar em direções opostas, eu não almoço com a Rainha.

Despedindo-se de nós em uma breve e polida reverência, virou-se de costas e nos abandonou, nossa própria retirada logo em seguida.

–Cordélia, por que trata Kai com tanto descaso? Ele realmente parece gostar de você.

Cordélia, no entanto, deu uma bufada, debochando de tal ideia.

–Ele é apenas galanteador. Não se pode dar mais corda que isso. –Eu concordava em partes. Sua personalidade era, de fato, charmosa, mas eu não via ele tratando outra pessoa com tantos floreios como tratava Cordélia. Ele não me chamava de "bela senhorita".

Já em meus aposentos, me encontrava sentada em frente à penteadeira com Cordélia trançando mechas do meu cabelo, contornando minha cabeça novamente como uma coroa, entretanto, com a maior parte dos meus cachos soltos pelas minhas costas desnudas, ainda cobrindo minhas cicatrizes, diferente do penteado que Dhara fizera ontem, utilizando quase todos os meus fios.

–Cordélia, me permite te perguntar algo? –Lançando um rápido olhar para mim pelo reflexo, assentiu com a cabeça e voltou seu olhar para baixo, para seu trabalho. –Como você conseguiu trabalhar no castelo sendo uma nativa de antes do destronamento? –Aquela era uma dúvida que me apoderava todo momento que meu pensamento ia para o "lia" em seu nome. Não era como se isso a transformasse em alguém sem qualificações, no entanto, ter sob o teto da Rainha alguém como ela servindo-a sem que fosse sob ameaça, como eu, poderia ser um perigo. Muitos nativos tinham ressentimentos acerca dos Meliones por ter mexido com o reino como conhecíamos, ainda mais com o fato que muitos entes queridos foram perdidos durante a tomada de reinado.

Ela hesitou, sua mão parando por um segundo em meu cabelo, suspirando. Por fim, ela endireitou seus ombros, assumindo toda sua altura admirável.

–Depois que tudo aconteceu, meu pai, que era quem mais trazia dinheiro para casa, ficou doente, não podendo mais trabalhar, minha mãe perdeu o emprego para os recém chegados de primeira Althaia e precisava ficar a maior parte do tempo cuidando do marido. Eu e meus irmãos precisávamos ajudar de algum jeito e, Dhara, que era uma nova vizinha, viu como eu era proativa e prestativa, me dando o emprego de arrumar os quartos do palácio aos quinze anos. Com o tempo, provando meu valor e lealdade, meu cargo foi subindo. Agora eu sou a pessoa que cuida de você e, acredite, é algo bem importante. –Minhas palavras não ditas ecoavam pela cabeça: "mesmo eu sendo a Sombra?". –Terminei! Gostaria de trocar a roupa também? –Comecei a admirar seu trabalho, me fazendo parecer realeza com sua tiara de tranças. Eu sabia que, mesmo se eu procurasse exaustivamente, não encontraria uma falha sequer no que suas mãos haviam acabado de produzir. Ao pensar na resposta para a segunda questão, passei meus dedos pelas curvas do vestido, o veludo me fazendo cócegas. Me virei na cadeira para ficar de cara com ela.

–Não, esse está perfeito. Assim como meu cabelo! Obrigada, Cordélia. –Fazia muito tempo que eu não agradecia tanto outras pessoas em um único dia, a palavra se tornando doce em minha boca novamente. Ela, tímida pelo elogio, abaixou a cabeça e sorriu sem os dentes, o rubor surgindo em suas maçãs do rosto.

–Que bom que ficou de seu agrado, senhorita Sombra. –Ri discretamente na perspectiva de que ela não perderia o costume de me chamar de "senhorita" tão cedo. –Precisa da minha ajuda para mais alguma coisa?

Com essa pergunta, notei que mantendo-a ainda aqui, eu a impedia de ir atrás do seu almoço.

–Fique tranquila, consigo me virar muito bem. Pode ir comer, sei como chegar ao meu destino. –Seus grandes olhos pousaram em mim, um sorriso complacente pairando em seu rosto. Fez uma elegante reverência para se retirar, mas ao olhar para mim e perceber que era mais do que precisava, abriu um sorriso cálido em minha direção, como se dissesse "sim, eu sei, vou tentar ser mais informal com você".

Ao sair e me deixar sozinha, joguei água em meu rosto para me refrescar novamente e, finalmente, passei pela porta. Engraçado como tão facilmente consegui ficar sozinha, o que era de completa desaprovação da Rainha.

Caminhava despreocupada pelo corredor vazio até a sala onde almoçaria, sorrindo sozinha pelos recentes e agradáveis acontecimentos até lembrar o motivo de tudo aquilo: o roubo de segredos de Estado do reino de Drítan –que poderia dar errado de tantas formas diferentes...

Meus devaneios foram interrompidos por outro par de pés caminhando pelo corredor, perto da entrada da ala, se aproximando rápido. Enquanto ainda me virava para ver quem me fazia companhia, fui acertada de supetão e já me encontrava pressionada contra a parede quando recobrei meus sentidos, uma lâmina gelada contra meu pescoço e o rosto de quem a segurava perto do meu, de modo que eu podia sentir seu hálito de menta enquanto sussurrava para mim.

–Não pense que só porque agora se parece mais com uma convidada do que uma prisioneira que eu me esqueci do que você fez. Você ainda é só uma ladra, uma peça descartável nesse jogo que esfaqueou o Auxiliar da Rainha. Em um ato idiota seu, eu posso me livrar de você. –Nikolai tinha gelo e fogo ao mesmo tempo em seus olhos castanhos, querendo me amedrontar. Será que ele não aprendeu nada da última vez que tentou fazer isso?

Dei um sorrisinho provocativo e divertido pelo canto da minha boca. Eu sabia que era apenas um blefe. Se eu fosse tão descartável, então porque todo aquele esforço atrás de mim? Mandar até mesmo seu próprio auxiliar para ter uma chance de me pegar não me parecia qualquer coisa. Eu era intocável, ele sabia disso e eu também. Pelo menos até que meu trabalho por aqui estivesse feito.

Com mãos leves, tateei seu cinto sem que ele percebesse e tirei a outra adaga que estava ainda em sua bainha. Dobrei uma das minhas pernas, apoiando-a na parede para pegar impulso e nos empurrar para frente, para que as posições se invertessem na outra parede, colocando sua própria lâmina contra sua pele.

–E não pense que só porque você tem esse posto todo engomadinho me impediria de repetir minhas ações com uma mira um pouco mais apurada, se é que me entende. Como você mesmo disse, eu sou menos que nada, não tenho posição a perder, você tem. –Mas aquilo também era um blefe. Ele também era intocável. Nós dois sabíamos disso.

Rindo de escárnio, se recuperando mais rápido do que eu pensei que faria, agarrou minha mão que segurava sua adaga, prendendo-a atrás das minhas costas, me fazendo soltar um gemido de dor e derrubar o objeto no chão, o que provocou um pequeno eco do metal reverberando no chão de pedra polida. Por trás de mim, ele usava seu próprio corpo contra o meu para me prender de frente na parede, meu rosto virado para a direita e sua faca ainda em meu pescoço.

Ele se aproximou novamente de mim, sua boca quase encostando em minha orelha, sua respiração quente em meu pescoço.

–Pra quem se encontra na sua situação, você tem uma língua bem afiada.

Sorri, mesmo sem saber que ele conseguiria ver ou não, e falei:

–Você não faz ideia. –Antes que ele notasse, virei-me para sua mão que ainda segurava a adaga e a mordi. Mordi de verdade, com força, quase como um animal. Ele guinchou de dor, me liberando de sua pegada e soltando o objeto que segurava.

Me afastei rapidamente e cheguei à entrada da ala comunal da Rainha, desferindo-o um último olhar, como se indicasse que havia ganhado.

Pelo menos naquele momento, a vitória era minha.

Mas havia sido uma bela briga de blefes.

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