ELENA ANDRADE
Eu gosto de física, da teoria e das contas.
Poderia ficar horas tendo aula de física, o terror de muitos alunos é o meu paraíso. Não sei quando o meu interesse surgiu, mas quando meus pais perceberam a minha aptidão e a do meu irmão para contas matemáticas, estimularam ao máximo o nosso talento.
A pequena Elena de nove anos, fascinada pelo cosmo e pelo Big Bang, nunca imaginaria os feitos que a Elena adolescente poderia alcançar.
O meu caminho para as Olimpíadas de matemática e física começou a ser trilhado por meio da OBMEP. Mesmo sendo uma Olimpíada para as escolas públicas, o conselho estudantil do meu antigo colégio achou que seria uma boa ideia promover a prova, o resultado não foi o esperado, a nota dos alunos foi alta, em sua maioria, mas poucos quiseram ir para a segunda fase.
Eu estava entre esses poucos, foi a primeira medalha que conquistei em uma Olimpíada, uma medalha de prata. E a partir desse momento, tudo mudou.
Meus pais me mudaram de colégio e me matricularam no Álvares de Azevedo, referência quando se trata de vestibulares voltado para exatas e comecei a participar de Olimpíadas de matemática e física.
Até que ano passado, conquistei um dos maiores prêmios que poderia imaginar: A Olimpíada Internacional de Física.
As eliminatórias, semifinais e as finais, nenhuma delas foi fácil e não me refiro apenas ao conteúdo. Poucas meninas compunham as equipes, para onde olhava via homens, compondo equipes, avaliando, julgando e determinando os vencedores.
Muitas vezes fui questionada por meus colegas de equipe, para Pedro, um dos meus pares na competição, eu era muito emotiva para ficar à frente na final, meus hormônios poderiam atrapalhar. Nada foi tão bom quanto ver sua cara de incredulidade e raiva quando fomos anunciados vencedores graças a minha resposta.
A medalha de prata e ouro, as mais importantes da minha coleção. A primeira que me fez entrar nesse mundo e a segunda que foi a concretização do sonho da pequena Elena de nove anos.
Enfim, eu gosto de física, da teoria e das contas.
Mas, eu não gosto do Fernando. E isso, transforma o meu paraíso num inferno.
A diretoria me liberou das aulas de física e matemática, contudo eu gosto de assistir as aulas e ajudar Renan e Nabim nos exercícios. Mas a cada aula, tenho mais vontade de fazer valer meu privilégio e ficar de fora das aulas.
Arrogante, prepotente e dono da razão, é assim que o professor Fernando é, e não sou apenas eu que penso assim. Vários alunos e de anos diferentes não gostam dele.
Se você vai bem, ele te trata com educação. Senão, deboche e condescendência é o que ele tem para você.
A lousa com os enunciados dos exercícios deixava claro qual era sua intenção. Outra prática de Fernando é fazer os alunos com dificuldade irem resolver os exercícios na frente de todos.
— Rafael, Mateus, Carla e Milena, na lousa.
Observei cada um deles tomarem seus postos frente à lousa. Meu coração estava acelerado, ver Rafael na frente da sala me deixava nervosa, era o momento de ver se as aulas estavam tendo resultado.
— Será que seu aluno vai acertar? — pergunta Renan
— Lógico que vai, sou eu que estou dando a aula.
O meu tom saiu calmo, contrastando com a velocidade que meu coração bate. Analiso cada movimento da sua mão, fazendo a conta mentalmente e conferindo a resposta de Rafael, antes que possa ver o seu resultado, Fernando entra na frente bloqueando a minha visão.
O movimento da sua mão indicava o acerto de Rafael, sem dizer nada, Fernando foi corrigir os outros exercícios.
Solto a respiração, nem percebi que estava prendendo. A satisfação em ver Rafael acertar me preenche, acalmando os meus batimentos.
Ele sorri discreto para mim, feliz pelo resultado, de imediato sorrio discreto de volta.
— E não é que seu aluno acertou. — Fala Renan.
Nabim observa tudo quieto, estranho. Normalmente, ele é o primeiro a fazer comentários e piadas, mas hoje, ele apenas observa.
Antes que possa responder Renan, sou interrompida pela fala de Fernando:
— Elena, gostaria de falar com você, me espere do lado de fora da sala e em um minuto, sairei.
Sem entender o propósito da conversa, faço meu caminho para fora da sala, todos os olhares e especulações recaem sobre mim.
Do lado de fora, o espero. Me questiono qual a motivação da conversa, o único acontecimento recente foi os dois décimos retirados por causa do seu ego ferido.
Fernando abre a porta da sala e coloca-se ao meu lado. Não falo nada, ele queria falar comigo, então, ele que inicie a conversa.
— Sabe, Elena, refleti bastante sobre a minha decisão da quarta passada e cheguei à conclusão que não fui justo com você.
Jura? Nem percebi o quanto a porra do seu ego é frágil a ponto de não aceitar uma simples correção.
Aproximando-se mais de mim, ele apoia a mão na base do meu pescoço e retoma a fala:
— Entendo que foi apenas um apontamento sobre a constante de eletrostática, sei que devido ao seu histórico nem precisaria estar presente nas aulas.
Sua mão continua no meu pescoço, gerando um calor desconfortável, queimando toda a região. A área onde sua mão está encostando rejeita o calor, e ele corre por todo meu corpo me fazendo mal.
Não sei o que dizer, deveria agradecer por ele ter enxergado seu erro?
— E mais uma coisa, arrumei a sua nota de volta para dez, afinal você não errou nada.
Com essa última fala, sou dispensada. O caminho de volta para o meu lugar é igual o de saída, os olhares e especulações sobre mim.
Renan e Nabim me esperam com rostos ansiosos.
— O que ele queria falar contigo? — questiona Nabim, seus olhos castanhos expressam uma curiosidade que beira a infantil.
— Ele pediu e não pediu desculpas, falou que foi injusto tirar nota por causa da correção da constante de eletrostática.
Deixo de fora o toque no pescoço, não foi nada demais né?
Não, não foi, a reação foi apenas produto do susto do momento.
— Impressionante, ele finalmente fez o mínimo, devemos bater palmas? — fala Renan num tom debochado. — Arrumou sua nota?
— Arrumou sim.
Após isso, voltamos às nossas posições nas carteiras e prestamos atenção na aula, eles mais que eu.
Por mais que tentasse ignorar, a base do meu pescoço ainda queimava.
*
Minha mesa de estudos está uma bagunça, deixando a confusão de livros, cadernos e canetas de lado, pego o celular e me sento de frente para a janela panorâmica que tem no meu quarto.
O sol se põe lentamente, manchando o céu de tons de vermelho e laranja. A quarta-feira passou rápido, como todos os outros dias, o tempo parece voar, por mais não aconteça, é essa sensação que sinto, que cada dia vai ficando mais curto e mais rápido.
As responsabilidades da vida adulta aproximam-se mais e mais. E, mesmo confiante sobre as minhas decisões, pensamentos questionadores continuam infiltrando- se na minha cabeça.
Antes que possa cair no ciclo de: Estudar no ITA ou estudar fora, sou despertada pelo som do celular.
RAFAEL: Oi.
RAFAEL: Oq o Fernando queria?
Além de folgado, Rafael é curioso também.
ELENA: Ele arrumou a minha nota.
RAFAEL: Não acredito! Eu daria qualquer coisa para ver a cara dele.
RAFAEL: O dia dos humilhados serem exaltados está chegando.
Elena: Ainda admitiu que errou.
RAFAEL: Eu daria mais que qualquer coisa para ver isso.
Quando percebo, estou rindo para a tela do celular.
RAFAEL: Como é saber que fez o insuportável do Fernando admitir um erro?
ELENA: É muito bom, me sinto adorável.
Apesar da resposta que dou para Rafael, não me sinto adorável. Preferia ficar com o 9,8 e não ter tido que falar com Fernando.
Aguardo a resposta, mas ela não vem. Bloqueio o celular e encaro a vista da janela, o escuro da noite tomou conta do alaranjado do fim da tarde, marcando o fim de mais um dia.