NINA
QUANDO O tio Ca voltou para a mansão à noite, parecia outra pessoa. Estava lá aquele sorriso maravilhoso que ele sempre teve. Assim, após o jantar ele nos comunicou que o apartamento dele já estava ótimo para voltar a viver nele. Quando ele foi dormir, eu fui até o quarto dele e me sentei em sua cama, enquanto ele estava no banheiro terminando o seu banho.
― Foi boa a negociação com a vaca?
― Foi, amor. Graças a Deus e ao seu pai, ela vai me deixar em paz.
― Que bom, tio Ca.
― E você, como foi o seu dia? - ele perguntou voltando do banheiro.
― Muito bom, acho que realmente nasci para a administração.
― Ótimo! Que bom que você faz algo que gosta.
Ele deitou-se e ligou a tv. Me levantei e caminhei para a porta.
― Boa noite, tio Ca!
― Já vai dormir?
― Você quer dormir e eu vou deixar você em paz pra isso.
― Não quer cafuné?
― Eu sempre quero, mas tenho que parar com essa minha cara de pau.
― Vem aqui, minha princesinha, amanhã eu volto pra casa diretamente do meu trabalho e só vou te ver na sexta. Não quer mesmo aproveitar o cafuné?
― Já que você insiste...
Ele sorriu e me chamou com a mão. Fechei a porta e voltei pra cama, me sentando nela e deitando logo em seguida.
― Chega mais pertinho, amor. Deita aqui do meu ladinho.
Fiz o que ele me pediu e ele me puxou para o seu peito, colocou seus dedos em meus cabelos, beijou os mesmos e fez carinho em meu rosto com o dorso de sua outra mão.
― Princesa, ainda vale se eu mudar a resposta pro seu jogo de perguntas e respostas?
― E o que você quer mudar?
― Algo que eu não disse, pois eu tinha medo e vergonha. E com certeza faria você ficar curiosa e me perguntar algo que eu não iria responder ou não conseguiria.
― E o que seria?
― Meu pior beijo...
― Não precisa dizer... eu já imagino. Hoje eu sei.
― Pois é... meu pior tudo foi com ela.
― Isso quer dizer... que você gostou do beijo do Gabriel?
― Já disse que ele foi um abusado. Não me ligou, nem elogiou se eu beijava bem - ele começou a rir.
― Então se ele beija bem... acho que vou pedir meu beijo a ele.
― Beijar ele pra quê? - ele me fez olhar pra ele.
― Ué... curiosidade de saber como é o beijo de um homem mais velho.
― Achei que você já sabia.
― Como assim? - é claro que eu sabia, mas queria que ele lembrasse também.
― Eu... eu... - ele respirou fundo e falou baixinho ― eu beijei você. Que eu saiba, eu sou um homem muito mais velho que você.
― Você é velho? Jura? Meu Deus... - comecei a rir.
― Pilantra! - ele riu também.
― Príncipe lindo!
― Malandrinha.
― Manhoso.
― Minha peruquinha...
Dei um beijo no peito dele.
― Te amo tio Ca.
Dormimos agarradinhos e como sempre, foi maravilhoso. Fora o fato de acordar nos braços dele e ser a primeira pessoa a ver aqueles olhos lindos se abrindo pela manhã.
Quando fui pra faculdade, encontrei com o João, que veio me cumprimentar e dizer que estava feliz de eu e o tio Ca não ficarmos brigados.
― Ele me disse que não vai mais acontecer... tem essa coisa dele ser o meu padrinho.
― Nina, se aconteceu não só uma vez... vai acontecer de novo, só tenha calma.
― Calma? Você me conhece, sabe que isso não existe no meu dicionário. Sou muito ansiosa...
― E qual é o seu próximo passo?
― Quero pesquisar se posso anular o meu batismo.
― Como assim?
― Quero que ele deixe de ser o meu padrinho.
― Mas se isso acontecer, você estará afastando ele de você.
― Já sou maior de idade. Eu vou numa igreja perguntar se isso é possível, e se for, eu vou ver se os meus pais e meus padrinhos precisam ser comunicados. Se não, eu peço a anulação e não digo nada a ninguém. E vou partir pra conquista. Quando ele me vier com esse papo de padrinho eu digo o que fiz.
― Tá, e se não puder ser anulado?
― Vou achar outro jeito. João, sem ele eu não vou ficar. Eu amo o Carlos e vou mostrar a ele que eu sou a mulher perfeita pra ele. Ninguém o ama ou o fará feliz como eu.
― Certo. Você quer que eu vá na igreja com você para ver isso com um padre?
― Se você puder, amigo, eu vou agradecer.
― Vamos amanhã. Assim que sairmos da faculdade.
― Okay.
No outro dia, João me acompanhou à igreja que havia mais perto da nossa faculdade. E lá fiz minhas perguntas ao padre.
― Minha filha, isso não é possível. Pois se a igreja anulasse o batismo de alguém, essa pessoa teria que ser batizada outra vez e isso não pode. Assim como retirar do livro de batismo os nomes dos seus padrinhos, não se pode arrancar folhas do livro de batismo.
― Entendi, padre.
― E quem é a pessoa que gostaria de ter o batismo anulado?
― Ninguém, só estamos fazendo um trabalho pra faculdade - respondeu o João.
― E qual o tema?
― Por que Cristo não teve padrinhos e qual a relação hoje em dia do batismo e do interesse capital - respondi.
― Estamos tentando falar de como hoje em dia, as pessoas escolhem os padrinhos para os seus filhos, por status social - complementou João.
― Belo tema. Se precisar... sabem onde me achar.
― Obrigada, padre, sua benção.
― Deus abençoe vocês, meus filhos.
Eu nunca fui religiosa, pouquíssimas vezes fui à igreja. Na minha casa, o mais religioso era o meu pai, talvez por ter sido criado num colégio interno católico.
Saímos da igreja e João me abraçou.
― Já vi que tenho que procurar outra solução. Anular o batismo não dá. Nem nascer de novo... - João riu.
― Acho que você deveria ir para o mais sensato.
― Que seria?
― Contar a ele. Assim, se ele gosta de você, como você quer... ele pode tentar achar uma solução junto com você. Afinal de contas, vocês são muito inteligentes separados, juntos são perfeitamente gênios.
― Contar a ele... não tenho coragem.
João me deu carona pra casa e ficou para almoçar. À tarde, ele foi embora e eu fiquei buscando soluções na internet.
" Posso trocar de padrinho, após o batizado?"... " Não"
" Posso pedir judicialmente pra cancelar o meu batizado?"... " Não"
― Merda!
Fiquei horas pesquisando na internet...
"Posso recorrer ao Papa para anular o meu batismo"... " Não".
― Droga! Espera...
" Padrinho e afilhada podem se casar?"
Podem namorar e casar, sim.
Antes, isso não era permitido pela Igreja, que estabelecia o impedimento por "parentesco espiritual" entre padrinhos e afilhados (isso ainda estava em vigor no Código de Direito Canônico de 1917).
Antigamente, a expectativa de vida era bem menor, então era esperado que os padrinhos de batismo assumissem o afilhado como filho, caso ele viesse a se tornar órfão. Daí a lógica do impedimento de união matrimonial - seria algo equiparável a incesto.
Entretanto, com o progresso tecnológico e material da sociedade em geral, essas relações se alteraram. Hoje, se uma criança fica órfã, muito provavelmente será criada pelos avós ou tios, e não pelos padrinhos.
Assim, o papel do "compadre" e da "comadre" e suas responsabilidades sociais foram fortemente modificadas. E a partir do CdC de 1983, o impedimento por "parentesco espiritual" não é mais previsto para a união matrimonial entre padrinhos e afilhados. Desta forma, eles podem sim, contrair matrimônio.
― Ótimo! Então a igreja aceita se eu amar e quiser me casar com ele. Perfeito! Não é pecado, não temos o mesmo sangue. Nem estamos no século passado.
Liguei para o João e contei tudo que havia encontrado, mas por via das dúvidas, eu vou novamente à igreja e levo esse artigo para o padre me dizer se isso é verdade.
E assim aconteceu. O padre me confirmou que sim, um afilhado ou afilhada pode se casar na igreja perante Deus, com o seu padrinho ou madrinha, desde que não sejam parentes de sangue. E o João, perguntou ao seu pai que era advogado e o mesmo disse que, se não há parentesco, então não é incesto e a lei não proibe.
Na sexta feira, o tio Ca apareceu na mansão para me buscar.
― Tio Ca - eu corri e me joguei em seu colo.
― Oi, princesa! - ele me pegou e eu enlacei minhas pernas em sua cintura ― Nossa, faz tempo que você não fazia isso.
― Desculpa - tentei soltar as pernas, mas ele impediu.
― Não pedi pra você me soltar. Só estou surpreso, mas eu gosto - ele me deu um beijo estalado na bochecha e caminhou comigo até o sofá.
Sentamos e o papai ficou olhando pra nós e sorrindo.
― Que foi, pai?
― Qualquer dia você vai quebrar a coluna dele.
― Ai que exagero.
― Não é exagero. Você acha que tem cinco anos, menina? Você tá pesada.
― Deixa, eu gosto. Só espero continuar aguentando você.
― Tá me dizendo que tô gorda?
― Não - ele começou a rir ―, tô dizendo que eu tô velho.
― Besta!
Pouco depois, subi, peguei minha mochila e fomos para o apartamento dele. Chegando lá, coloquei minha mochila no quarto e ele disse que iria tomar banho.
― Já jantou, tio Ca?
― Não, amor! - ele respondeu do quarto.
Então, abri o aplicativo e pedi comida para nós dois. Pelos meus cálculos, se ele demorar tanto no banho, quando ele finalmente terminar, nosso jantar estará chegando.
E foi assim que aconteceu. Assim que ele já estava de bermuda de moletom e camiseta e saia do quarto, a campainha tocou e vi que era o nosso jantar.
― Você pediu alguma coisa?
― Nosso jantar.
― Nina, já falamos sobre isso.
― Amanhã... - me aproximei dele fazendo voz manhosa e passando os dedos por sua camiseta ― você faz o almoço e se formos comer fora, você escolhe o local. Vamos comer?
― Tá barganhando?
― Talvez.
― Tá, o que você comprou?
― Comida Japonesa.
― Hummm faz um bom tempo que não como.
― Vai comer agora.
Ele foi até sua mochila, pegou a carteira e veio até mim.
― Quanto foi?
― Nem vem, eu convidei, eu pago! Essa é a regra.
― Nina...
― Ah, tio Ca, não começa por favor. Você criou a regra!
― Tá certo.
Nos sentamos e comemos. Depois conversamos os detalhes de como foi o trato com a vaca da Fernanda. Jogamos um jogo novo em que ele tava trabalhando, o Gabriel mandou mensagem e ele respondeu. Depois ele foi dormir e eu também, mas com dez minutos que ele havia ido para o seu quarto, ouço batidas na minha porta.
― Sim, tio Ca?
― Princesa... - ele abriu a porta e acendeu a luz do quarto.
― Oi - me virei pra ficar de frente para a porta.
― Eu... será que você, poderia... - ele baixou a cabeça.
― Fala, tio Ca - me sentei na cama.
― Tá - ele entrou e veio até minha cama ―, pode parecer estranho, eu só dormir aqui sozinho ontem, mas é que... esses dias todos eu tenho dormido com você deitada no meu peito. Eu... sinto falta do cafuné. Você pode... você deixa eu fazer cafuné em você? - ele me olhou com carinha de cachorro pidão.
― Oh, príncipe lindo... vem aqui, amor - ele abriu um sorriso enorme, apagou a luz do quarto, se ajeitou e deitou na minha cama, me puxou para o seu peito e enroscou seus dedos em meus cabelos e eu ali, sentindo o seu cheiro maravilhoso.
― Tô ferrado!
― Por que?
― Tô viciado em fazer cafuné.
― Vai sair por aí fazendo cafuné na mulherada?
― Não, tô viciado em fazer cafuné em você, mocinha!
― Que ótimo! Eu não ia deixar você dar meus cafunés a ninguém mesmo.
Ele começou a rir.
― Nina, você já se perguntou, por que gostamos tanto um do outro?
― Milhares de vezes.
― Chegou a alguma conclusão?
― Não. Só que eu te amo e basta! Não preciso saber o por que, só preciso sentir e saber que você sente o mesmo.
― Às vezes não parecemos padrinho e afilhada... não sei como é, pois eu nunca batizei outra pessoa, mas eu nunca vi uma relação como a nossa em mais ninguém.
― Não importa. O que importa é você gostar de estar comigo e eu de estar com você.
― Te amo tanto princesinha.
― Não mais do que eu.
E dormimos assim, como nos outros dias... um nos braços do outro. E sempre é maravilhoso acordar com ele ali. Mas naquela manhã, ele estava com o rosto colado na curva do meu pescoço. Fiquei fazendo carinho e dando beijinhos nele até sentir o seu sorriso.
― Bom dia, princesa! - ele ergueu a cabeça e me olhou.
― Bom dia. Dormiu bem?
― Tá roubando minha frase?
― Sou uma bandidinha, lembra?
Ele sorriu e me deu um beijo estalado no rosto.
― Eu dormi, maravilhosamente bem.
― Essa frase é minha!
― Bolas trocadas - ele me deu uma piscada.
― Tio Ca, poderíamos ir pra casa de praia no fim de semana, comemorarmos sua liberdade, o que acha?
― E o seu pai? Ou melhor, os seus pais?
― Vou falar com eles, mas se eles deixarem, vamos?
― Vamos.
― Ebaaaa - falei me jogando sobre ele que me apertou e fiz cócegas nele. Mordendo ele de leve na nuca.
― Nina, que mania de morder! Sua mãe me batia, minha irmã também e você me morde?
― Sou diferente. Serei a única que vai te morder. É que você é fofo tio Ca, dá vontade de morder você todinho.
Ele começou a rir.
― Isso soou estranho.
― Verdade - eu gargalhei.