quando eu digo que sou filha da minha mãe:

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quando eu digo que sou filha da minha mãe:

eu quero dizer que sou a filha mais nova, as células que sobraram depois de três antes de mim. eu quero dizer que quando saí da barriga, arranquei o resto de sanidade que a minha mãe guardava nos ossos. eu quero dizer que nós duas temos os mesmos olhos como flores murchas. eu quero dizer que a minha mãe nunca me viu chorar. eu quero dizer que nunca tivemos a compatibilidade como uma amiga em comum. eu quero dizer que nós duas temos a mesma fúria que é trazida pelas chuvas amazônicas todo ano. eu quero dizer que nós não sabemos bem como demonstrar. eu quero dizer que quando a minha mãe me olha, ela lamenta a pessoa que eu nunca tive a coragem de ser. eu quero dizer que nós usamos o afastamento como um ato de amor. eu quero dizer que ainda vejo a criança dentro dela de sonhos perdidos. eu quero dizer que eu acho que minha mãe tinha outra vida planejada do que essa. eu quero dizer que nós duas sabemos da figura de linguagem injusta e cruel que é a vida. eu quero dizer que a minha mãe desde cedo me ensinou a ajoelhar e orar para um deus que nunca soube o meu nome. quero dizer que até hoje ela inda me acha cética demais. eu quero dizer que a minha mãe tem os ombros pesados, os olhos cansados há anos. eu quero dizer que ela já viu o mais feio do mundo e hoje ela prefere se manter quieta. eu quero dizer que minha mãe me fez assim, sempre em conflito. eu quero dizer que a gente dói igual de tantas formas. eu quero dizer que ela é fera quieta e eu já não me importo de mostrar as garras, os dentes. eu quero dizer que nós somos ruins em escolher quem vamos amar. eu quero dizer que nós rasgamos a pele da mesma forma. eu quero dizer que a minha mãe não gosta de se olhar no espelho e apesar de tudo, eu não quero ver a minha mãe chorar. eu quero dizer que talvez uma passagem só de ida para um lugar bem longe tenha sido algo bom. eu quero dizer que eu e minha mãe somos parecidas em tantos aspectos por mais que odiemos admitir. eu quero dizer que ela ainda conversa pelo olhar e diz: "você era uma criança tão boa, tão gentil, o que aconteceu com você?".
eu quero dizer que até hoje eu não sei uma resposta para isso.

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