Detesto!

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– Detesto! – disse com desgosto. A vida de Joca era um contra-senso.

O biochip que lhe co-processava os pensamentos enumerava em uma planilha de funções estatísticas aquela palavra associada à sensação de profundo desgosto pela trocentésima vez. Apesar de contar com tal evidência, quase inegável, a empresa nada podia fazer para resolver o problema existencial do frustrado e rabugento senhor João Carlos da Silveira.

Joca não poderia reclamar, no entanto, reclamava, cuspia e repudiava todo o mundo que o cercava. Ele vivia em um mundo harmônico e feliz graças à tecnologia dos biochips.

Os nove implantes que recebera não surtiam o efeito esperado e a companhia tinha em Joca um caso de estudos, uma exceção.

O primeiro implante recebeu de presente dos pais, ainda garoto. Um poderoso co-processador matemático-estatístico que lhe garantiu o ingresso na universidade logo cedo, aos doze anos, para uma carreira no campo das ciências exatas.

Aos dezenove, Joca sabia tudo com exatidão. Quantas vezes havia transado, 4, quantas beijos deu, 93 e de quantos realmente gostou: 1. Quanto dinheiro gastou em ônibus, lanches, jogos digitais, etc. Aliás, vencer em jogos digitais era uma questão de processamento bruto. Neste ponto, alguém com mais recursos ou chips mais recentes, sempre levavam vantagem. João não precisava acessar os serviços do banco para saber seu saldo ou mesmo saber de seus rendimentos. Tudo lhe vinha e era calculado através de interações com a nuvem computacional.

A associação da imaginação, criatividade e processamento matemático integrados davam a Joca condições de um bom trabalho. O caminho à sua frente estava claro: economizar e comprar mais implantes. Afinal, era um mundo competitivo. Sua vida, como a de muitos matemáticos, era um pouco fria e por vezes aborrecida. Foi assim que resolveu implantar um biochip de empatia. Queria melhorar seus relacionamentos e entender melhor as pessoas. Havia uma promoção contratual de uma das operadoras do mercado altamente regulamentado de biochips que barateava os custos do implante desde que o cliente aderisse a um pacote de serviços com fidelidade por trinta anos. Foi assim que começou a dizer: “Detesto!” e sentir-se profundamente insatisfeito.

Este pacote fazia com que seu cérebro desejasse consumir determinados produtos com tal intensidade que era impossível resistir. Assim, ele precisava consumir os hambúrgueres que tanto detestava. Três anos depois e após dois processos judiciais que se arrastavam no infernal sistema judiciário, Joca decidiu mudar de estratégia: implantaria outro biochip para resolver o problema, um dos modelos mais controversos da sociedade e deveras mal visto por sua casta de trabalhadores do conhecimento, o chip da felicidade também conhecido como happychip.

Seu implante prévio, de empatia, não funcionava lá muito bem e não ajudava muito em suas relações com as empresas. O sentimento de raiva mesclava-se ao de pena pelos operadores de telemarketing que atendiam às suas chamadas para cancelar, sem sucesso, o maldito programa de fidelidade. Joca desesperado para escapar da infelicidade que lhe trouxe o chip de empatia, implantou o happychip. Os primeiros dias foram ótimos, mas logo, começaram os problemas. Era um fato: a integração de sistemas complexos, muitas vezes de diferentes fabricantes, ainda era um problema mal resolvido pelos engenheiros de neuro-programação, em especial quando o assunto era integrar outros produtos com o happychip.

Num raro caso de falha diagnosticada do happychip, João sofreu um ataque de fúria no qual quebrou os dentes de um funcionário da cadeia de fast-food do programa de fidelidade. Ao enfiar goela abaixo, do pobre coitado, todos os hambúrgueres que estavam a seu alcance ele obteve seus primeiros dias na cadeia. Joca finalmente foi vitorioso e ganhou uma indenização milionária da companhia, pois as evidências do ocorrido estavam armazenadas na memória de seu biochip empático-estatístico, revelando que o ataque de fúria foi o ponto culminante de um histórico de emoções como: raiva, tristeza, insatisfação e desgosto dominando 97,3% de seu espectro emocional.

Joca foi para o exterior e recebeu mais chips, os mais modernos e que visavam recuperar sua vida e comprar a tão desejada felicidade. Enquanto isso, assistiu pela rede como seu país dava um passo histórico, resolvendo problemas sociais remanescentes ao disponibilizar para toda a população o acesso subsidiado aos happychips. A massa estava mais feliz que nunca, mesmo trabalhando muito e ganhando pouco, e a elite não podia deixar de sentir satisfação. Naquele contexto, ele estava entre os poucos cidadãos de todo o globo, que ainda possuía a incômoda doença da infelicidade.

E lá estava o velho João Carlos, na ala clínica de isolamento de desajustados sociais, Flores Alegres, sentado numa sala florida, aconchegante e lindamente decorada, sendo servido por uma enfermeira, que insistia em dizer com toda aquela detestável alegria e empolgação.

– Bom dia! Seu João Carlos!! Não está um sol ma-ra-vi-lho-so? Que tal desfrutar deste delicioso hambúrguer em seu café da manhã?

Joca queria se matar, na realidade, havia pensado nisso e sendo inibido pelo componente de um de seus chips que forçava sua auto-preservação por 738.437 vezes. A diretriz inibidora de suicídios era uma das que mais detestava. Ela também impedia que ele não comesse e corresse o risco de morrer por inanição. Assim, ele, mais uma vez contra sua vontade, mordeu e mastigou mais um pedaço do hambúrguer e como o de costume anunciou:

– Detesto!

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