4. Doces antes das travessuras

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— VOCÊ ESTÁ BEM? – perguntou Ramon, passando a mão pela minha testa e checando se eu não estava com febre

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VOCÊ ESTÁ BEM? – perguntou Ramon, passando a mão pela minha testa e checando se eu não estava com febre.

— Meu estômago não está se revirando e a minha cabeça parece que irá explodir. Pode me explicar o que aconteceu lá atrás mesmo?

Ele achou graça, abriu o porta-luvas do carro e achou alguns lenços, que usou para secar a minha testa e pescoço.

Estávamos no estacionamento de um posto de gasolina, bem longe da boate e dos verdadeiros donos daquele carro roubado. 

Estava destruído devido à minha recente aventura, enquanto Ramon parecia sóbrio e preocupado demais para um demônio.

— Que idiota aceitaria drogas de estranhos? – ele perguntou, ranzinza. – Se queria algo assim, era só pedir pra mim. Já pensou se fosse um boa noite Cinderella ou veneno?

— Achei que você tinha ido embora. Disse que iríamos nos separar, esqueceu?

— E íamos, mas... - ele jogou os lenços pela janela e me observou com atenção. – Sei lá, não estava me divertindo tanto assim. E, veja bem, não estamos falando de mim, foi você quem ficou chapado no meio de uma boate e fez sexo com umas quatro pessoas diferentes.

— Tava me observando?

— Acha que eu perderia uma visão daquelas? – ele riu alto. – A alma mais pura do céu se entregando aos pecadores. Fiz um ótimo trabalho, hein?

— Você não me "desvirtuou" se é isso o que está pensando.

— Veremos quando tentar passar pelos portões de novo. Até lá, bem-vindo ao que todos chamam de "mundo dos demônios".

Ele estava mentindo, é claro.

Sexo, por si só, não levava ninguém ao inferno, mas as palavras dele me deixaram curioso. 

E isso me fez lembrar de algo que Ramon jamais me contou: o passado dele.

— Por que você foi para o inferno? – tomei coragem para perguntar.

— De novo isso?

— Se estou no "mundo dos demônios", posso ter alguma resposta, não acha? Estivemos por tanto tempo conversando nos portões e você nunca me contou nada.

— Por que eu contaria? Você é praticamente um anjo. Não entenderia.

— E mesmo assim sou um ótimo ouvinte, sabe disso.

Se não estivesse em um corpo humano, Ramon teria se materializado para longe de mim. Era o que ele fazia quando os nossos assuntos ficavam mais íntimos ou sérios demais para lidar.

— Foi há muito tempo. Eu era dançarino em um teatro na cidade onde morava. Hoje em dia nem sei mais o que é dançar, mesmo que algumas pessoas insistam em dizer que seria como andar bicicleta. Mas sabe como é, o inferno tira muito da gente.  

— Parece horrível.

— Sim, é horrível, mas como na vida e na morte, você se acostuma. Algumas coisas vão embora como espumas ao vento, enquanto outras fazem parte do castigo, entende? Estão ali só para te atormentar.

Ele escorou a cabeça no banco do motorista e ficou olhando para o retrovisor do carro, não sei se olhando para o que havia atrás de nós no estacionamento ou para si mesmo.

— Eu tinha 25 anos e acreditava que o mundo é que deveria mudar, não eu. Por isso saí do teatro com as roupas do meu figurino de Montecchio. Andar de colã por aí não era bem aceito na época, então precisei de poucos passos para longe do teatro antes de ser pego por dois caras que me puxaram para um beco, me estupraram e me espancaram como se eu fosse um animal.

— Ramon...

Não havia tristeza ou lágrimas em seu rosto. Ele contava a história como se estivesse se lembrando de um fato qualquer. Mesmo assim, sentia que ele estava distante, de volta àquele dia.

— Não entendo... Você... Foi pro inferno por conta disso?

— É claro que não. Depois que tudo acabou, um deles deixou a carteira cair. Descobri nome, sobrenome e endereço do desgraçado. Poderia ter ido à polícia, contar o que ocorreu e ser uma vítima, mas me recusei e quis mostrar que era mais homem que eles. Consegui uma arma, nutri o ódio por longas semanas e segui até a casa do desgraçado.

Ele sorriu quando relembrou daquilo.

— Aquele cara chorou feito uma menininha quando viu a arma. Descarreguei o pente no rosto dele e a satisfação de matar aquele cara... Uau! Foi como se o próprio diabo estivesse sussurrando no meu ouvido, me oferecendo a maçã do paraíso.

— Então... Você matou. É por isso que não pode entrar no céu?

— Não, é porque eu me vinguei. Deus pode perdoar um assassino, mas não pode perdoar um homem que busca a vingança. – Ele fechou os olhos, parecia cansado. – Quando matei aquele homem... Eu... Fiquei tão cego... Não cheguei a ver a criança parada no alto da escada, me observando como se eu fosse um monstro.

Senti um arrepio na espinha e imaginei Ramon parado na frente do corpo de um sujeito qualquer enquanto um garotinho olhava o que sobrou do corpo do pai no chão.

— O que você fez? – perguntei, sentindo as lágrimas escaparem dos meus olhos. – O que você fez depois que ela te viu?

Ele não respondeu. Ao invés disso, apenas ajeitou o banco do carro e arrumou o encosto para poder se espreguiçar um pouco. 

Não iria julgá-lo. 

Qualquer pecado que ele pudesse ter cometido, havia tido uma punição adequada ao longo das décadas no inferno. Um dia lá significava uma vida inteira na Terra.

— Sabe que você só precisa se perdoar e se arrepender para entrar no paraíso, não sabe?

— Tentando salvar a minha alma eterna de novo, anjinho? 

— Sei que é difícil, mas se você abrir o coração e se desculpar por tudo o que fez em vida, Deus pode te perdoar. Sinceramente, não entendo por que os demônios insistem tanto em continuar sofrendo quando basta pedir perdão e tudo é esquecido.

— Você é tão ingênuo. – Ele continuou com os olhos fechados. – Já rezei para sair do inferno antes. No começo é tudo o que a gente faz, até percebermos que não vale à pena e que, no céu ou no inferno, o sofrimento é eterno. Pelo menos deste lado, não fingimos ser puritanos hipócritas.

Ele suspirou profundamente e deixou um longo bocejo escapar.

— Durma. Quando o sol chegar, teremos muito o que aproveitar deste Halloween.

Queria falar mais sobre aquilo, dizer que ele poderia contar comigo, mas ao invés disso apenas aninhei meu corpo ao dele e fechei os olhos.

Em breve o sol nasceria, um novo dia chegaria para os humanos e, com ele, eu teria menos tempo na Terra antes de ter que voltar ao paraíso. 

Não me sentia mais o mesmo Vinícius de antes, puro e inocente.

Seria isso uma coisa ruim? 

As travessuras de Vinícius (Romance Gay)Où les histoires vivent. Découvrez maintenant