Coisas Emprestadas

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Leu o suficiente de Sandman pelo dia, decidiu Danúbio. Guardou o volume de 300 e poucas páginas e foi até a cozinha servir seu almoço. Dali a duas horas não se lembraria mais do que comera. Danúbio pouco prazer obtinha do ato de comer. Às vezes acreditava que não comeria nada, caso não fosse necessário à vida. Mas almoçou de qualquer modo e em seguida decidiu comprar uma cerveja. Fazia isso às vezes, como um lenitivo à falta de dopamina constante em seu corpo. Seu não produzia o hormônio naturalmente, Danúbio por vezes forçava-se a  produzir, com álcool. Não ficava mais bêbado como antes, há três, quatro anos, mas ainda gostava de sentir-se leve e relaxado. O mercadinho na esquina ficava a menos de 100 metros de sua casa. Caminhou até lá sem fones de ouvido nem nada que o fizesse se distrair. Sentiu as pernas estranhas enquanto prosseguia. Saía muito pouco à pé -- geralmente estava sobre uma bicicleta --, então era como se tivesse perdido o hábito e agora sofresse uma recaída, como um ex-fumante. O mesmo atendente do dia anterior estava lá, um homem simplório, com aparência de alguém que não tem muitas preocupações. A careca meio que reluzia ao brilho amarelo de lâmpadas velhas. Tudo no mercadinho tinha aparência velha e de coisas semi-abandonadas. Danúbio gostava disso. Sentia-se confortável com a atmosfera. Pagou a cerveja e voltou para casa. Numa mesa do bar que dava para a rua, viu que a garota ainda estava lá. Achou aquilo estranho. Era cedo demais para alguém estar bebendo em um bar (nesta hora notou que ele próprio tinha aberto a tampa da longneck e sorvia a cada 10 passos um gole da bebida). A garota, uma adolescente de aproximadamente sua idade, tinha a pele clara e estatura mediana, cabelos longos e cacheados, pintados de ruivo, que se debruçavam sobre o ombro esquerdo numa cascata sensual. Era, sob suas medidas pessoais, muito atraente. Linda, talvez diria. Ele passou em frente ao bar com um passo firme e relanceou o olhar em sua direção. Ficou contente em notar que ela própria o estava encarando, tendo desviado o olhar assim que Danúbio fitara seus olhos. O brilho dos dois pequenos círculos azuis ainda ficaram em sua mente por muito tempo depois do episódio. Danúbio valorizava momentos assim, raros como eram. Geralmente não se fazia notar. Gostava quando acontecia.

Bebeu sua cerveja rapidamente. Deitou-se na cama em seu quarto escuro. O aplicativo do Facebook foi aberto várias vezes, mas por fim conseguiu cochilar um pouco. Sonhou com coisas bonitas, ou pelo menos pensou que assim foi. Teve pesadelos nas últimas semanas, portanto desde que não sonhasse com a garota -- uma garota que ele queria esquecer -- estaria tudo bem, e seus sonhos seriam ótimos. Lembrou-se do garoto -- um garoto que talvez não fosse esquecer nunca --, mas isso não importava. Foi até a cozinha e fez café, ouvindo música e deleitando sua alma com memes sobre depressão e coisas engraçadas. Estava chegando a hora de ir trabalhar, porém ainda queria ler algo mais. Estendeu a mão para a enorme/minúscula estante de livros e apanhou sua edição importada de O Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel (The Lord Of The Rings - The Fellowship Of The Ring). As palavras pequenas em páginas amareladas o levaram a terra do Condado, onde foi visitar seus pequenos Hobbits em prados verdejantes, flores ao vento e bolos quentinhos, recém saídos do forno. A figura do Mago sempre extraía um sorriso seu. E Frodo, com suas frases curtas e meio perdidas, davam a ele uma sensação de estranha familiaridade. Notando novamente as diferenças entre a versão escrita e cinematográfica do universo criado por Tolkien, lamentava-se por nunca ter visto (e era provável que nunca veria) o pontudo chapéu azul de Gandalf em cena, ou suas sobrancelhas brancas de arbusto projetadas para além da aba do chapéu. Mas sua insatisfação se mitigava conforme as páginas se acumulavam sob os dedos da mão esquerda.

Leu 20 ou 25 páginas do livro antes de se dar por satisfeito, vendo que sua xícara agora comportava apenas um suave traço de café frio no fundo e que o relógio lhe obrigava a agir. Olhando para o lado, viu a bicicleta vermelha, enferrujada, suja e meio abandonada. O pião, a peça que faz a roda traseira girar, estava rangendo há meses. O garoto sabia que uma hora iria quebrar, mas estava protelando o concerto. Não sabia porque. Tinha certeza de que em breve teria problemas com aquilo, ainda assim, não agiu.
Ele se levantou examinou a peça; quando girou os pedais com a mão, a corrente passou direto pela coroa, sem transmitir energia para a roda. Estava quebrado. Mesmo antes de se levantar, sabia que estava quebrado. Naquele mesmo instante começava a chover. Uma poça se formou na varanda.
Danúbio girou mais algumas vezes o pedal da bicicleta, o rangido de algo fora do lugar, algo inutilizado, ecoando nas telhas de alumínio do beiral junto com a chuva. Ele ficou de pé e parou um instante, olhando para a bicicleta. Não havia expressão em seu rosto.
O rapaz reuniu o resto de coragem e paciência que havia em seu corpo:
— Mãe — chamou ele em voz alta. — Vai sair com sua bicicleta hoje?
Ele estava parado na porta. A mãe, sentada no sofá, absorvida pela tela do celular.

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⏰ Last updated: Nov 03, 2020 ⏰

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