"Eu digo-lhe o que se passa com a senhora Blythe," tinha respondido tristemente Susan. "Ela teve um grande ataque de Tia Mary Maria. E o doutor não é capaz de ver isso, apesar de venerar o chão que ela pisa."

"Não é mesmo à homem?" disse a senhora Elliot.

"Ainda bem," disse Anne, acendendo uma lâmpada. "Eu já não vejo a Miss Cornélia há tanto tempo. Agora vamos ficar a saber as novidades todas."

"Se vamos!" respondeu Gilbert secamente.

"Aquela mulher é uma mexeriqueira perversa," disse a Tia Mary Maria. Talvez pela primeira vez na sua vida, Susan armou-se me defesa de Miss Cornélia.

"Isso é que ela não é, Miss Blythe, e a Susan Baker nunca irá ouvir uma calúnia dessas calada. Perversa...! Alguma vez ouviu, Miss Blythe, a história do roto que diz para o nu, porque não te vestes tu?" "Susan...Susan," disse Anne em tom implorante.

"E peço desculpa, minha querida senhora. Admito que me esqueci do meu lugar. Mas há coisas que não se conseguem suportar."

E ouviu-se bater uma porta, como raramente se ouviam bater em Ingleside.

"Vês, Annie?" disse a Tia Mary Maria. "Mas parece-me que enquanto estiverem dispostos a tolerar este tipo de coisas numa criada não há nada a fazer."

Gilbert levantou-se e foi para a biblioteca, onde um homem cansado ainda podia esperar alguma paz. E a Tia Mary Maria, que não gostava da Miss Cornélia, retirou-se para o quarto. Por isso, quando a Miss Cornélia chegou deu com Anne sozinha, debruçando-se um pouco apática sobre o cesto da bebé. Miss Cornélia não começou, como era seu costume, por descarregar a sua conta de mexericos. Em vez disso, quando terminou de despir os seus agasalhos, sentou-se ao lado de Anne e pegou-lhe na mão.

"Anne, queridinha, o que é que se passa? Eu sei que há qualquer coisa. Será que é aquela alma caridosa da Mary Maria que te está a atormentar até à morte?"

Anne tentou sorrir.

"Oh, Miss Cornélia....eu sei que sou uma tola ao dar-lhe tanta importância...mas este foi um daqueles dias em que me parece que não a consigo continuar a suportar. Ela...ela simplesmente envenena a nossa vida aqui..."

"Mas porque é que não lhe dizes que se tem que ir embora?"

"Oh, nós não podemos fazer isso, Miss Cornélia. Pelo menos eu não consigo, e o Gilbert não o vai fazer. Ele diz que nunca mais se conseguia ver ao espelho se pusesse uma pessoa da sua família na rua." "Raios a partam!" disse Miss Cornélia com eloquência. "Ela tem muito dinheiro e uma belíssima casa. Como é que ele a punha na rua se lhe dissesse que mais valia ir para a casa dela?"

"Eu sei...mas o Gilbert...eu não sei se ele se apercebe de tudo. Ele passa tanto tempo fora...e de facto...são coisas tão pequenas...até fico envergonhada..."

"Eu sei, queridinha. São aquelas coisas pequenas que todas juntas fazem uma coisa horrivelmente grande. Claro que um homem não ia compreender. Eu conheço uma mulher de Charlottetown que a conhece bem. Ela diz que a Mary Maria Blythe nunca teve um amigo na vida. O que tu precisas, queridinha, é de um pouco de coragem para lhe dizeres que não aguentas mais tempo esta situação."

"Eu sinto-me como quando sonhamos que queremos correr e só conseguimos arrastar os pés," disse Anne tristemente. "Se fosse só de vez em quando...mas é todos os dias. As refeições são horríveis agora. O Gilbert diz que já não consegue cortar a carne."

"Mas nisso ele repara," resmungou Miss Cornélia.

"Não conseguimos ter conversa nenhuma ás refeições porque ela consegue sempre dizer qualquer coisa desagradável quando alguém fala. Está sempre a corrigir as crianças e a chamar-lhes a atenção à frente das pessoas quando temos visitas. Nós costumávamos ter umas refeições tão agradáveis...e agora! Ela ofende-se se rimos...e a senhora sabe como gostamos de rir. Estamos sempre a fazer piadas...ou costumávamos fazer. Ela não deixa passar nada. Hoje disse, 'Gilbert, não amues. Será que tu e a Annie discutiram?' Só porque estávamos calados. Você sabe como o Gilbert fica um pouco deprimido quando perde um paciente que acha que devia ter sobrevivido. E depois ela deu-nos um sermão sobre a nossa falta de senso e avisou-nos para não nos irmos deitar amuados. Oh, como nos rimos depois...mas na altura! Ela e a Susan não se suportam. E nós não podemos impedir a Susan de reclamar quando ela é mal-educada. Ela fez mais do que resmungar quando a Tia disse que nunca tinha visto um mentiroso pior que o Walter...porque o ouviu contar uma história à Di sobre ter visto um homem da lua e as perguntas que lhe fez. Ela queria lavar-lhe a boca com sabão. Ela e a Susan travaram uma grande batalha nesse dia. E ela está sempre a encher a cabeça das crianças com ideias horríveis. Disse à Nan que tinha conhecido uma criança que era má e que tinha morrido a dormir, e agora a Nan tem medo de adormecer. Disse à Di que se ela fosse muito boa menina os pais iam gostar tanto dela como da Nan, apesar dela ser ruiva. O Gilbert ficou muito zangado com ela dessa vez, e chamou-lhe a atenção. Eu não pude deixar de desejar que ela se ofendesse e se fosse embora...apesar de detestar que alguém se fosse embora da minha casa ofendido. Mas ela só ficou com os olhos rasos de lágrimas e disse que não tinha dito aquilo por mal. Ela tinha ouvido dizer que os gémeos nunca eram igualmente amados e tinha medo que nós gostássemos mais da Nan e que a pobre Di sentisse isso. Chorou toda a noite e o Gilbert achou que tinha sido bruto...e pediu-lhe desculpa.

"Não!" disse a Miss Cornélia.

"Oh, eu não devia dizer estas coisas, Miss Cornélia. Quando eu vejo bem as coisas sei que sou muito mesquinha por levar estas coisas tão a sério....mesmo que elas me tirem um pouco de gosto pelas coisas. E ela não é sempre tão horrível...ela até é simpática de vez em quando..."

"A sério?" disse Miss Cornélia com sarcasmo.

"Sim...e generosa. Ela ouviu-me dizer que gostava de ter um serviço de chá novo, e foi a Toronto compara-me um...por catálogo! E oh, Miss Cornélia, é tão feio!"

Anne deu uma gargalhada que terminou num soluço. E depois riu novamente.

"Agora vamos parar de falar dela...já não parece tão mau agora que chorei...como um bebé. Olhe só para a minha pequena Rilla, Miss Cornélia. Não tem umas pestanas lindas quando está a dormir? Então conte-me lá as novidades.."

Anne estava ela própria de novo quando Miss Cornélia saiu. Ainda assim, sentou-se pensativa em frente à lareira durante algum tempo. Ela não tinha contado tudo à Miss Cornélia. Também não dissera nada ao Gilbert. Havia tantas coisas pequenas...

"Tão pequenas que não me consigo queixar delas," pensou Anne. Mas mesmo assim...são as pequenas coisas que dão sentido à vida...ou a estragam completamente."

A Tia Mary Maria com a mania de se armar em dona da casa...a Tia Mary Maria a convidar pessoas e a não dizer nada enquanto eles não chegavam..."Ela faz-me sentir como se eu não pertencesse à minha própria casa." A Tia Mary Maria a mudar a mobilia quando Anne não estava em casa. "Eu espero que não te importes, Annie; eu achei que a mesa fazia aqui mais falta do que a estante." A Tia Mary Maria e a sua curiosidade infantil acerca de tudo...as perguntas indiscretas acerca de coisas intimas..."sempre a entrar no meu quarto sem bater...sempre a cheirar fumo...sempre a bater as almofadas que eu arranjei...sempre a dar a entender que eu falo demais com a Susan sobre mexericos...sempre a implicar com as crianças...Temos que andar sempre atrás deles a ver se se comportam, e nem sempre conseguimos."

"A velha e feia Tia Mary Maria," tinha dito distintamente o Shirley outro dia. O Gilbert ouviu-o e ia dar-lhe uma palmada, mas a Susan tinha-se levantado em defesa dele e proibiu-o.

"Estamos encurralados," pensou Anne. "Esta casa começou a girar em volta desta questão, 'Será que a Tia Mary Maria vai gostar?' Nós não o admitimos mas é verdade. Fazemos seja o que for que a impeça de andar por ai a derramar lágrimas em silêncio. Isto não pode continuar."

Então Anne lembrou-se do que dissera a Miss Cornélia...que a Tia Mary Maria nunca tinha tido um amigo. Que tristeza! Da sua enorme riqueza em amizades Anne sentiu uma súbita compaixão por esta mulher que nunca tinha tido uma amiga...que não tinha nada a não ser solidão e idade, sem ninguém que a procurasse para abrigo ou alivio, para esperança e ajuda, para calor humano e amor. Com certeza que podiam ter paciência com ela. Estes aborrecimentos eram apenas superficiais, afinal de contas. Eles não conseguiam envenenar as fontes mais profundas da vida.

"Eu tive só um terrível ataque de pena de mim mesma, foi o que foi," disse Anne, pegando em Rilla e encostando o rostinho dela contra o seu. "Já passou, e sinto-me sinceramente envergonhada por isso."

Anne de Ingleside | Série Anne de Green Gables VI (1939)Where stories live. Discover now