Doutor Watson

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Joguei meu ombro contra a porta, arrombando-a. Já havia arrombado algumas portas com Sherlock, mas sozinho foi bem mais difícil. A senhorita Charlotte esperou por cinco tentativas sem sucesso, até que, na sexta, a porta finalmente pulou das dobradiças e, com um baque surdo, ela caiu do lado de dentro do escritório do capitão.
E lá estava Holmes, fumando como sempre, em pé recostado na parede, com as pontas dos dedos juntas. A senhora Truemiles estava sentada numa cadeira, carrancuda. Ela conseguia resmungar até em uma situação como aquela.
Levantei-me do chão, massageando o ombro levemente machucado. Sorri para o meu amigo, perguntando:
— Já terminou a entrevista com a senhora Truemiles, ou melhor, Harperdeen, meu caro Holmes?
— Creio que já, Watson — ele respondeu, mudando em nada a expressão —, ela possui plena consciência de que não vai mais conseguir escapar de nós.
— Ah, sim, e sua missão com Mariângela? — o detetive consultor continuou, curioso.
— Não teve jeito — respondi, cabisbaixo —, ela tem uma vontade de ferro. Já vá preparando o barco.
— Já está tudo combinado, presumi este resultado.
       Sherlock pegou as provas de minha penúltima missão com Charlotte, que vou relatar logo em seguida, e analisou-as por um tempo, em seu canto.
Vera Harperdeen resmungou na cadeira, se mexendo um pouco. Baixo, porém claramente, ela disse:
— O senhor Holmes me contou agora a pouco que queria me fazer umas perguntas sobre o caso. Umas tais de "questões" e "detalhes" que ele não havia entendido.
Ela pronunciou as palavras que aqui coloco em aspas com evidente escárnio e ironia. Meu amigo simplesmente deu alguns passos lentos em sua direção, declarando logo em seguida:
— Acho que seria mais adequado quando Charlotte chegar. Ela já está aí, Watson?
— Sim, mas... Está resolvendo alguns detalhes de última hora, se é que me entende.
— Compreendo, compreendo... — ele voltou ao seu lugar na parede, calmamente.
Olhei para trás, checando se Charlotte já havia terminado a conversa com nossa... segunda suspeita. Enquanto ela não vinha, pensei sobre a última pessoa de quem tínhamos tirado a paz naquele navio, uma suspeita interessante, a única brasileira além da própria Charlotte: Mariângela Almeida Silva, uma dama extremamente educada e perigosa.
•••
Logo após invadirmos o espaço pessoal do capitão e roubado suas informações, passamos para a seguinte fase da missão. Estávamos num dos muitos corredores do navio. Uma mulher alta, elegante e bela saiu de seu quarto, agarrada ao braço de um homenzinho velho e magro com uma bengala, ambos pareciam ser muito ricos e andavam tão grudados que parecia impossível a ideia de separar os dois. Eles passaram à frente do banco onde Charlotte estava sentada ao meu lado. Enfiamos nossos rostos ainda mais nos jornais e no romance francês, no caso da jovem, que fingíamos ler, procurando despistar a atenção do casal. Eles sequer notaram, passaram direto por nós.
       Cochichei a Charlotte, no mais baixo volume possível, para que começássemos a segui-los. Abaixamos o livro e os jornais, assentimos com a cabeça um para o outro, ela fez um sinal para que eu ficasse em silêncio.
        Andamos discretamente e a uma distância segura do casal, nos escondendo por vezes atrás de pilastras ou no meio de outros grupos de pessoas. Eles se dirigiam ao gabinete do capitão. Segundo Sherlock, na noite anterior, eles tinham tido "problemas com o barulho de seu vizinho de cima" que, por acaso, era meu velho colega de quarto. Havia deixado tudo pronto para a ação minha e de Charlotte na manhã seguinte.
       Eles finalmente entraram no gabinete. Eu e Charlotte corremos atrás deles. Ela começou sua parte no plano. Ágil, saltou por cima da amurada, segurando-se nela com apenas uma das mãos.
— Pronta? — perguntei, ansioso.
— Pronta — ela afirmou com um sorriso no rosto.
— Um, dois... três!
— Socorro, socorro! Alguém me ajude, estou com a mão presa! — Charlotte chorava e gritava desconsolada. Quase cheguei a acreditar que ela estivesse mesmo em apuros. Era, com certeza, uma ótima atriz, além de ter ajudado a arquitetar aquela parte do plano.
— Por favor, ajudem a minha sobrinha! — gritei, torcendo para que o máximo de pessoas ouvissem.
      Uma multidão de curiosos se formou ao nosso redor, mulheres emitiam exclamações exasperadas, cavalheiros corriam para assistir Charlotte. Me afastei da cena lentamente, caminhando de costas até os aposentos do capitão.
     Chegando lá, abri a porta sem bater, gritando para o lado de dentro:
— Capitão, é uma emergência! Minha sobrinha está quase caindo no mar!
       Com uma exclamação exasperada e um salto da cadeira, o capitão dispensou o casal de brasileiros, correndo para o lado de fora. O mais rápido que consegui, lancei-me para dentro do escritório, batendo a porta assim que o capitão saiu. A chave estava na fechadura, girei-a e coloquei-a em meus bolsos rapidamente.
      Virei-me para encarar o casal. Eles tinham uma expressão desesperada em seus rostos... ou melhor, ele. A moça me encarava de maneira voraz quando puxei meu revólver, sem nenhum pingo de medo.
— O que vocês estavam planejando, matar Charlotte ontem mesmo ou finalizar o plano somente hoje?
      Diante de minha pergunta, o velho caiu de joelhos no chão, implorando por misericórdia. Não lhe dei ouvidos. Sua esposa, pelo contrário, andou lentamente em minha direção, sem medo que eu atirasse.
— Ora, o que está pensando ao nosso respeito, senhor? Somos apenas um casal em lua de...
— Os maiores traficantes de armas brasileiros que o mundo já viu — disse sem pestanejar —, já sabemos de toda a sua história, senhora Almeida Silva.
        A mulher me devolveu um olhar venenoso, completamente estupefata. Apesar de pálida, sorriu maldosamente, unindo as mãos em ato de explicação, dizendo:
— O senhor, infelizmente, está nos confundindo com outro casal. Meu marido é banqueiro, e está concorrendo a deputado em nosso país de origem, não é mesmo, querido?
— Sim, sim, claro! — exclamou de maneira esganiçada o senhor, levantando brevemente os olhos, tremendo no chão. Obviamente era bem menos convincente que sua esposa. Esta olhou-o nos olhos, visivelmente desapontada.
— Acho que seu marido estragou seus planos, senhora Mariângela.
— Perdoe-me por ele, é que fica um pouco nervoso quando o acusam de algo, mesmo sendo inocente.
     Agora foi a vez do marido dela receber um olhar venenoso.
— Vocês tinham que entregar uma arma a uma pessoa daqui, não é mesmo? Assim como diz neste bilhete em seu bolso!
       Corri, ainda com o revólver em mãos, até o marido da senhora, arrancando um papel amarelado de seus bolsos. Nele estava um pedido de um revólver para a semana do embarque e, anexo ao documento, duas passagens. O pedido era feito em nome de Jane Harper. Tudo exatamente como supôs Holmes.
— Aqui estão todas as provas — disse eu, mostrando o papel para a madame. — Se disser para quem foi o pedido, estará livre por enquanto.
Por enquanto... — as palavras de Mariângela pingavam veneno — Peço perdão novamente ao senhor mas, eu prefiro uma garantia um pouco mais... precisa.
     Ela não caiu na ameaça. Tinha de aplicar meu último recurso.
      Aproximei-me da dama a passos lentos. Encostei o revólver em seu peito, dizendo:
— Deseja uma garantia mais precisa que essa, senhora?
      Ela continuou inabalável.
— Vá em frente, me mate. Não tenho medo. Assim, o acusado de um crime será você.
        Sua voz ainda pingava veneno. Algo em suas palavras me convenceu, lentamente, abaixei o revólver. Sério, disse:
— A senhora vai sumir desse navio para sempre. Pegue um bote e pare em qualquer lugar que queira. Tudo estará pronto ao meio dia. Um amigo meu estará lá para conferir se a senhora e seu marido poderão estar levando... cargas inadequadas. Mas antes, precisa me dizer: Quem realmente é essa tal de Jane Harper?
— Muito bem. — sua voz se tornou leve e sutil — Jane é a mesma pessoa desta foto, se o senhor deseja saber.
     Ela cedeu a informação, finalmente! Andou até um porta retrato com uma foto do capitão ao lado da esposa, e apontou para a última com tranquilidade.
— Obrigado, senhora Almeida.
— Por nada, doutor.
     Ela agarrou o braço do marido e puxou-o com violência para cima. O homem, ainda tremendo, conseguiu ficar em pé. Porém, antes de saírem, Mariângela cochichou ao meu ouvido:
— Se nosso barco não estiver lá, lembrarei de seu rosto e me vingarei de um jeito que você nunca poderá imaginar nesse seu cérebro inútil.
     Pisou em meu pé como em forma de aviso enquanto pronunciava essas palavras. Tranquilo, respondi:
— Não se preocupe... vai estar.

Sherlock Holmes em um caso em mar aberto Where stories live. Discover now