only one

47 5 4
                                    

O amor não é recíproco, é esquizofrênico.

  A chuva me atingia com força, mas não me incomodava. Eu queria que a chuva levasse embora a minha sujeira, mas ela estava profundamente incrustada na minha pele, no meu rosto, no meu ser. O frio chegava a me doer os ossos, mas isso não era possível e o que doía na verdade era tudo que eu não conseguia botar pra fora. Era um espinho que eu não conseguia arrancar, me deixava mudo, inquieto, dolorido.

Além de tudo o mais que poderia me perturbar naquela noite, havia aquilo que poderia ser a origem de tudo. Ela me olhava do fundo da minha consciência, com seus olhos de mercúrio pesados e tempestuosos. Eu conseguia ouvi-la dizer o quanto a minha existência se tornara inútil após sua partida, sua boca em uma linha de sorriso cruel. Ela poderia estar ali na chuva, na esquina debaixo daquele poste sem luz, observando a minha mediocridade.

— Eu sei que está aí, saia dessa escuridão, pare de se esconder nas entrelinhas, nos becos e buracos. Eu te vejo, eu sei que está em todos os lugares. —

Um barulho de carro passando na rua não chamou a minha atenção, continuei olhando para o nada. Eu podia ver seus cabelos negros molhados, combinando com o cenário ensopado. Mas alguém me agarrava, me arrastava e me levava pra longe. Eu a conhecia de algum lugar, alguma estranha que vira vez ou outra no prédio onde morava. Ela não falava, só dirigia para algum lugar com um homem ensopado e bêbado no banco do carro.

— Diga-me Jongho, o que gostaria de jantar? —

Ela perguntou assim que o carro parou.

Eu não conseguia pensar, o frio feria meu corpo, minha mente girava, uma luz brilhava nos meus olhos mesmo quando eu os fechava.

— Camarão, talvez lagosta. — Minha voz soou rouca e entrecortada.

— Certo então, macarrão instantâneo. —

Eu ainda não sabia seu nome, mas não tive tempo de perguntar, ela saiu do carro e me deixou ali tiritando de frio. Poderiam ter se passado horas, uma eternidade, mas na realidade foram somente longos minutos de agonia. Ela chegou com algumas sacolas que eu não tive a curiosidade de especular, tinha certeza que não havia álcool em nenhuma delas.

— Eu estou congelando. — Disse como sugestão para ligar o ar quente. Ela continuou dirigindo com o rosto impassível.

— É preciso sentir o frio intenso para saber que ele faz mal para o corpo. —

Não proferi mais nenhuma palavra durante a viagem, o efeito do álcool estava se esgotando e eu sabia que isso era algum tipo de lição. Quando eu finalmente reconheci a fachada do meu prédio, lembrei que eu não somente a vira algumas vezes. Ela morava no apartamento ao lado, se chamava Sunhee e odiava quando eu a chamava de Sun. Tinha um gato preto que costumava roubar as meias que eu estendia na sacada. Ela me encontrava toda vez que eu me perdia e me puxava de volta quando eu me afogava em mim mesmo, escondia minhas garrafas de vodka, lia meus romances e fazia as críticas necessárias.

— Sun, você é meu anjo da guarda? — Eu perguntei a ela outro dia.

— Eu sou o seu demônio Jongho. — Agora entendo o motivo de ela ter dito isso, ela me mantinha vivo quando eu ansiava pela morte, era uma espécie de tortura para mim.

— Você vai dormir comigo hoje. — Ela afirmou enquanto entrávamos no elevador. Ela tentava soar dura, como se isso fosse punição para a minha estupidez, mas eu sabia que isso era saudade. Ela me amava, é claro, não faria tudo isso por um vizinho qualquer, Sunhee amava um homem que não podia ter completamente, porque metade dele estava perdida para sempre. Mas é assim que funciona, o recíproco é ilusório, ele não existe nessa vida.

  E mesmo quando suas mãos procuraram meu corpo naquela noite, mesmo quando ela sussurrou que me amava ao pé do meu ouvido, quando fizemos amor e ela adormeceu com a cabeça sobre os meus ombros, eu só conseguia pensar em como não conseguia amá-la.




THE END

o amor não é recíproco, é esquizofrênico.Where stories live. Discover now