A discípula do mal - continuação

4 2 0
                                    

Assim que adentro o consultório sinto uma leve brisa que logo identifico ser de uma janela que está — desatentamente — entreaberta. O homem à minha frente aparenta estar na casa dos cinquenta, cabelos castanhos e grisalhos, lisos e penteado para trás, próximo às orelhas. Esguio, elegante numa posição com as pernas longas dobradas. Suas marcas de expressão não o deixam mais velho, e sim atraente. Seu olhar por sobre as lentes de grau o deixavam sensual, porém, apesar de pouco contato com outras pessoas, eu não deixo de perceber seu exibicionismo, parece até que ele está flertando comigo.

Ainda assim, me esforço para não gargalhar em deboche. Sei bem que alguns dos funcionários desse inferno se aproveitam e abusam dos pacientes, ao menos os que estão completamente fora de si, assim não lhe darão crédito caso eles denunciem.

— Clara Ortega! — Ele mostra um sorriso de comercial de creme dental. — Como vai?

Desabo na poltrona ainda o encarando enquanto ele manda o guarda se retirar. Meu olhar é de tédio. Observo todo o local — pela milésima vez —, o consultório é completamente infestado de pelúcias, acho que os médicos pensam que isso facilita as coisas. Como se pessoas sem sentimentos por pessoas fossem dar algum crédito àqueles brinquedos. Meu olhar fixa em um globo de neve da cidade de Nova Iorque que está na prateleira do meio da estante. Existem outros, mas estão mais acima.

— Ainda sem falar? — Ele mantém um sorrisinho que tenho vontade de arrancar com minhas unhas. — Até quando esse silêncio?

Desvio o olhar dele e volto a encarar os outros globos de neve. A ideia de estar em qualquer lugar — não importa onde —, desde que fosse longe daquele manicômio, daquele barulho e daquelas pessoas me deixa paralisada.

— Você gosta? — Ele aponta para um cãozinho felpudo na mesma estante que os globos de neve. — Quer?

Desvio o olhar para o médico novamente enquanto enfio o dedo do meio em meu nariz, depois passo a meleca na poltrona despreocupadamente. O psiquiatra Dorneles Pitágoras agora assume uma postura mais séria depois que percebe que continuo arisca — pelo menos foi assim que ele me chamou na última sessão.

— Bom, você está aqui há quase seis anos e desde então nunca pronunciou uma única palavra, mas apesar de todas as provas da perícia, fui designado a ouvir e relatar sua confissão. — Ele olha de soslaio para um pequeno gravador que está na mesa de centro. Eu só percebi o objeto devido seu olhar nervoso. — Vamos lá, todos os médicos já concluíram que você não fala por vontade própria. — Ele toca as pontas dos dedos em um ritmo compulsivo. — Mas não me refiro ao incêndio que matou o primeiro casal que a adotou. — Dorneles inspira pacientemente enquanto junta as duas mãos como se meditasse. — Sara Campos e Beatriz Rosé eram boas pessoas. Elas fizeram de tudo e um pouco mais para conseguirem sua guarda. Enfrentaram preconceitos e todas as dificuldades que um casal homossexual enfrenta para conseguir adotar uma criança. E ainda assim, elas não foram poupadas de sua maldade...

Ele me encara com uma de suas sobrancelhas perfeitas arqueadas como se simplesmente eu fosse lhe responder. Estúpido!

— Por quê? O que desperta em você para cometer crimes tão horrendos?

Continuo séria enquanto o encaro. Me divirto com sua inquietação em seu acento confortável.

Ele coça a garganta antes de voltar a falar:

— Lidiane Rosé foi encontrada morta aos pés da escada. Essa morte não foi comprovadamente tratada como um assassinato, pois apesar dela ter sido golpeada com uma tesoura no abdômen, sua morte foi devido à queda da escada.

Mostro um sorriso para ele, o qual parece incomodá-lo, pois logo muda a expressão e volta a encarar os papéis em suas mãos que logo percebo estarem trêmulas. Já ouvi falar que causo esse tipo de reação nos outros. Até gosto, para ser sincera. Como sou uma das reclusas mais antigas recebi alguns apelidos, tanto dos funcionários como dos próprios internos. Apelidos como Anjo da Morte, Sra. Gelo, Lady-sem-língua, e o que mais gosto: silenciosa.

Insanamente Cruéis: Quando insanidade e crueldade andam lado a ladoWhere stories live. Discover now