O embarque fúnebre

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   — Os clientes chegam amanhã à tarde e a tripulação de manhã. Consegue ter o barco pronto até a tripulação chegar ou quer que lhe arranje ajuda? — perguntou Chloé, a proprietária e comandante do navio Sol Poente.

— Não há problema, patroa. Está tudo sobre rodas — assegurou o Sr. Trulaw, sorrindo com os dentes cariados que lhe restavam.

Chloé tapou o nariz com o dedo indicador — o velho tresandava a cerveja. Já havia ponderado despedi-lo em diversas ocasiões, não só pelas queixas dos passageiros do seu fedor a álcool e modos provincianos, mas também porque ele não fazia grande coisa. A única função que o Sr. Trulaw efetivamente desempenhava no Sol Poente era a representação da geração do seu falecido avô, que Deus o tivesse na sua glória.

— De qualquer modo, contratei um par de mãos para o assistir. E não se esqueça que um barco não tem rodas, Sr. Trulaw.

O velho levantou a sobrancelha e questionou-se quem a patroa havia contratado para o ajudar.

Como se lhe lesse os pensamentos, Chloé acrescentou:

— Ofereci uns trocos ao miúdo que distribui os panfletos turísticos para ficar consigo até à chegada da tripulação. O nome dele é Raul ou algo do género...

— Ray?

— Isso.

— É bom rapaz. Já me ajudou umas quantas vezes..., mas não se preocupe, patroa! Não lhe deixei dívida alguma. Tenho-lhe pagado sempre com uma ou duas latas de cerveja.

— Já ouviu falar de exploração infantil, Sr. Trulaw?

— Ora essa, patroa! O rapaz tem feições de bebé, mas vai avançado na casa dos vinte. E eu dou-lhe das melhores cervejas...

Chloé revirou os olhos.

— Tenha um bom dia, Senhor Trulaw.

Sem mais demoras, Chloé virou costas ao velho e afastou-se do Sol Poente. A manhã ia avançada, e ela tinha de fazer alguns pagamentos antes de embarcar rumo a Jan Mayen.

O Sr. Trulaw riu-se e subiu para o navio. Era uma bela embarcação, embora precisasse de uma restauração, tal como o velho carecia de uma dentadura. Contudo, o Sr. Trulaw preferia gerir o dinheiro em cerveja, pão e carne seca. Quando a vida lhe reunia uns trocos ou recebia o bónus natalício, dava-se ao luxo de comprar uma botelha de hidromel.

— Veremos quem afunda primeiro, fiel companheiro, tu ou eu — divagou para o Sol Poente, antes de se sentar na sua cadeira de baloiço, tapar o rosto com o seu chapéu de chuva e iniciar uma sesta.


O velho só acordaria na madrugada seguinte, quando a tripulação começasse a chegar. Chloé ainda desconhecia que o trabalho do Sr. Trulaw ia muito além de beber cerveja, afastar os turistas e tratar da manutenção do Sol Poente. O velho tinha uma função insubstituível — era o último El-Kimikus da região.


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— Sr. Trulaw, a tripulação está prestes a entrar a bordo. Acorde!

Ray abanou o velhote três vezes até este piscar os olhos, estalar o maxilar e saltar do lugar onde repousava.

— Mau! Eles já estão aqui? — Ray acenou afirmativamente. — Bolas, rapaz! A patroa não vai gostar...

— Já tratei de tudo, Sr. Trulaw — interrompeu Ray, antes que o velho entrasse em curto-circuito.

— De... tudo? Hum! Verificaste os níveis de óleo? A água do tanque de expansão? E a temperatura?

As Quatro CasasWhere stories live. Discover now