Capítulo 8 - Emplastro na dor

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Manoela coçava a cabeça e andava na cozinha de um lado para o outro, batendo as mãos na saia, ansiada. 

_ O que deu na cabeça do Sebastião para fazer uma coisa dessas? - os olhos marejavam lágrimas que teimavam em não cair. - Ai, meu Deus! Meu irmão, um vagabundo? Um pudim de pinga? Eu não estou preparada para isso. 

_ Um porco sujo, suja os outros, m'a fia. Vocês é que não sabem, mas não é de hoje que o Tiãozinho está fazendo isso. Boato no Mato Grande já vai alto tem tempo. É um dos clientes mais fiéis da Geraldina. Eu num podia falar nada, porque, sem provas, como comadre ia dar crédito? Garoto bebe um golinho ali, masca umas ervas aqui e ninguém sente o cheiro. Testemunha? Todo mundo diz, mas ninguém quer aprovar. Na hora do vamos ver, ninguém viu nada. Aí fica a Mafísia como fofoqueira. Esse povo novo pensa que berimbau é gaita, menina. Tem juízo de galinha. Se prepare para ser mãe, m'a fia. O que é seu está guardado. A gente só leva coice nos peitos e mais nada. Filho é tudo ingrato. Veja sua mãe... _ e cruzou os braços, esmorecida. 

A voz de dona Mafísia foi afinando, distanciando-se e aos poucos mergulhando Manoela em um ensimesmamento pegajoso, melancólico e deprimente.  Uma vida futura de lágrimas e desgostos esboçou-se em sua mente. Os tons, embora diluídos e enevoados, esboçaram cenas, dores e humilhações vindouras tão nítidas que não lhe restou nenhuma dúvida: não estava preparada para enfrentar os desafios da maternidade sequer lidar com eles. Comparou a criação de filhos à expectativa da galinha que choca ovos: ela sabe o que virá (pintinhos, obviamente) e nada mais: natureza, cor e porte são incógnitas respondidas aos poucos, conforme a vida avança, ainda assim as respostas podem ser alteradas e, incrivelmente, invalidadas. O acaso decide tudo, indiferente a sugestões e súplicas, surpreendendo sempre. Como um tiro dado no escuro, o êxito incerto e impreciso assusta. Entre errar e acertar, o que escolher? Ter filhos é um jogo de azar: se ganha ou se perde. Não existem outras opções. Por isso quem não quer ouvir barulho, não ajunte cabaças... 

Sebastião entrou porta a dentro, gemendo, pisando pesado, numa penúria de dar dó. O corpo desmoronando, minando sangue, arrastado pelas pernas arqueadas e cambaleantes fraquejava. Foi necessário um rompante para jogá-lo além do degrau e da soleira da porta e um descanso revigorante nos segundos seguintes. Manoela correu para acudi-lo instintivamente assim que ouviu o barulho, mas estacou no corredor horrorizada, lívida. Um frio roeu-lhe as tripas, galgou o espinhaço e arrepiou-lhe os cabelinhos da nuca. Tapou os olhos impressionada, descrente da veracidade do que via: o irmão era um homem e um monstro simultaneamente. 

Idalina entrou logo atrás, empertigada, sustentada em dois pezinhos sujos e numa fé inabalável. Seus feitos obteriam resultados eficazes. Não tinha dúvidas. Nos olhos o brilho inextinguível do comando intimidava. No semblante, a austeridade de uma general em campo de batalha, disposta a matar e aniquilar quem trançasse seu caminho, amiudava. No coração, um remorso que devorava os nervos  e tumultuava o pensamento, escondia-se. Tinha que ser forte. A vida lhe cobrava coragem. Não reproduziria a sina triste da mãe biológica, inebriada numa vida de amores pelo marido - escolhido num rompante de paixão juvenil - e alheia às responsabilidades maternais; nem mesmo da avó paterna, a quem não conhecera, porém sabia ter fracassado na educação do pai. Não permitiria que a vida mantivesse ativo seu ciclo de desgraças e a circularidade com que fazia as coisas irem e virem o tempo todo. Aprumou o peito e estacou de frente o molecão de dezesseis anos. 

_ Morre cavalo pra alegria de urubu, tu num sabe? Enquanto os espertos bebem e riem as suas custas, às custas do suor do seu pai e dos seus irmãos, você se sente querido, quando na verdade não passa de um covarde, incapaz de enfrentar a vida de frente e conquistar as pessoas pelo que é, não pelo que tem ou pode oferecer _ chegou-lhe o cabo do chicote no nariz. _  Eu lhe asseguro: ou você aprende seu verdadeiro valor ou lhe parto no meio. Juro por essa luz que está me alumiando, desgosto como esse você não me dá nunca mais. Tá  me ouvindo, Tião? 

O rapaz, envergonhado, abaixou os olhos. Não tinha condições de ajeitar as ideias e dar respostas à mãe.  A réplica não lhe parecia a alternativa mais apropriada à circunstância. Uma dor brotava de dentro para fora, tomando conta do corpo e embriagando a alma. A masculinidade, reduzida a pó, latejava em finos rompantes de um sentimento que não conseguia distinguir. Teria vida dali em diante? Não sabia. Teria moral e respeito? Não achava possível. Naquela ocasião desejava o mínimo: se cobrir com um pedaço de pano e obter um pouco da antiga privacidade. Pedida a licença, retirou-se cambaleante, sem ajuda e sem olhares ternos de proteção. No quarto, estirou-se na cama com jeito e reservas. Evitando observar o corpo picotado de vergões, arranhões e feridas, fechou os olhos e chorou copiosamente. Não sentia ódio, só vergonha. Vergonha da vida. Vergonha da miséria de homem que se tornara. Vergonha da vergonha que a mãe sentia. Soergueu-se tropegamente, alcançou o baú e retirou uma ceroula. Vestiu-a e cobriu as vergonhas de homem. Malditas vergonhas de homem! Por elas se expusera ao ridículo, ao perigo e a depravação! A mãe lhe avisara: os santos dedurariam qualquer deslize. Eram seus espiões e protetores. Ele não só a desafiara, desafiara também os céus, a Virgem da Abadia, os santos. Fora castigado segundo o merecimento e temia ser, ainda mais, caso persistisse no erro. Diacho de vida! Estava amarrado eternamente às devoções da mãe.

 Desejando um pouco de paz cobriu a cabeça com o travesseiro e evitou pensar. Manoela o despertou com chamadas insistentes. Trazia no ombro uma toalha e nas mãos uma bacia esmaltada, cujo conteúdo fumegava uma fumacinha leve e moribunda. Ia besuntar-lhe as feridas com salmoura, sem negociações, advertiu. Ordens da mãe e ia cumpri-las deliberadamente. Encolheu o corpo, amedrontado. Não queria reviver a dor que já tinha abrandado com o tempo. 

_ Sebastião, embora esteja extremamente decepcionada com você e abalada com a situação, não consigo deixar de amá-lo, mesmo que queira. E não duvide, gostaria muito que isso acontecesse, pois assim não sofreria tanto quanto estou sofrendo agora vendo o que vejo. Entretanto, quando não restringimos as pessoas a pequenos atos falhos, que podem ser compreensíveis dada a bestialidade e a futilidade do comportamento humano, provamos a verdade que há no amor. As pessoas têm muitas versões de si. Hoje você usou a pior ou talvez a mais inapropriada _ apoiou a bacia na cômoda. _  Não sou a pessoa mais apta a julgá-lo e nem se fosse o faria, pois a vida cobra de mim uma relação diferente contigo, meu reizinho. Eu daria tudo para recobrar aquele menino gordo e modesto de antigamente _ e afagou-lhe o rosto, chorando dolorosamente. _ Você cresceu! Como cresceu! E eu adoraria dizer que você se tornou um grande homem, mas depois de hoje, bem, eu não sei mais se você está disposto a cumprir as promessas de infância... As pessoas prometem tantas coisas e deixam de cumprir... Mas eu quero acreditar que sim ... _ e tornou a chorar. 

Sebastião abraçou-a silenciosamente. Do peito brotou um gemido alto, depois soluços vibrantes, argentinos e por fim um silêncio sepulcral. Desfez-se. 

_ Me perdoa, minha rainhazinha! Me perdoa, mana... Eu não queria te decepcionar. Eu sou um covarde. Verdadeiramente um covarde. 

Manoela segurou-lhe firmemente nos ombros. 

_ Não! Você não é um covarde! Quero acreditar que foi um curioso, movido pelo espírito da curiosidade e não repetirá isso nunca mais. Se repetir, sabe o que pode lhe acontecer.  Sabe como mamãe é rigorosa com questões morais e preceitos. Não estranharia se ela lhe enviasse para um seminário ou lhe casasse com uma moça feia e desdentada, só para provar quem manda em você.  

Sebastião esbugalhou os olhos assustado. 

_ Ora, ora,  contenha-se. Não quero que se torne um rapaz sem crédito como os filhos de tia Maria ou dona Lió. Ou um marido infeliz, casado com a moça mais feia do Mato Grande. Olha seu estado! Mamãe é capaz de estraçalhá-lo se isso acontecer uma segunda vez e ninguém será capaz de dizer patavinas à ela. Você já viu alguém enfrentá-la? Até papai se cala. Agora, sossegue. Vou passar salmoura nessas feridas antes que zanguem. 

_ Não quero! Vai doer _ e encolheu o corpo. 

Manoela riu. Sebastião apenas crescera na idade. Era o mesmo Sebastião manhoso e mole da infância. 

_ Nada além do suportável. É isso ou os roxos ficarão aí por muito tempo. Se quiser peço mamãe para ... 

Não foi preciso. A palavra mãe e a figura materna ainda exerciam poder sobre ele. 


Amor e distinçãoWhere stories live. Discover now