Cidade das cabras

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Para a maioria das pessoas comuns, dotadas de um senso prático algo instintivo e pouca capacidade de contemplação das relações possíveis e imagináveis entre os entes mais improváveis, um modesto rebanho de cabras a pastar em tranquila campina distante e solitária não representaria motivo suficiente para temor ou horror. Para mim, porém, denotam o centro da minha angústia e este é o motivo da dor que sinto em explicá-lo nestas linhas. O leitor há de me desculpar. Mas depois da leitura atenta do meu relato, entenderá para sempre o motivo que me levou a abandonar quase tudo o que acredito em nome da fuga mais covarde, do comportamento mais antissocial possível.

Só espero que minhas palavras sirvam de alerta.

O inverno de 1986 não teve nada de especial para a quase totalidade dos habitantes da distante cidade de Orvalho, em algum lugar da serra gaúcha. Fora, somente para alguns, o mais rigoroso dos últimos anos. Se bem que eram tantos os invernos rigorosos. Mal podiam esperar, aqueles habitantes do ermo, pelo retorno da primavera quando os poucos turistas interessados no frio e na remota possibilidade de neve, retornavam para o verão de onde vinham.

Sofriam os que chegavam e saíam, pois das estradas pouco se podia ver, já que a neblina descia como um frio cobertor a ocultar do mundo aquela cidade erma, aquele lugar inóspito. Para mim, no entanto, não cessei de imaginar que tão grande ofensa aquela gente teria feito a Deus ou a algum santo, para merecer tão aterradora maldição. Do que estou falando logo revelarei, desde que não me tenham por louco ou senil. Cheguei naquele inverno, em habitual manhã de frio, e encontrei o mais absoluto silêncio.

Do alto da entrada da cidade, ainda na rodovia, era possível ver emergir uma pequena casa de tijolos de barro rústicos e de portas de madeira escavada no cume de uma nem tão alta colina azulada pelo orvalho. Aquele era o último indício de que eu havia finalmente ido embora das capitais, das construções cinzentas como o ar, do som permanente dos automóveis. Só o canto dos pássaros eu devia ouvir nos próximos meses e só as serras sulinas, o campo e a geada, imagens de beleza que se faziam relevantes a partir daquele momento em que eu adentrava a comarca orvalhense. Eu fazia aquele retiro involuntariamente. Era pela minha saúde que subi aquelas serras.

A história que vou contar devia conter uma introdução que explicitasse os reais motivos da minha viagem. Só assim, quem sabe, poderá o leitor atento compreender o que de fato me vitimou, apesar de eu ainda ter em dúvida se o meu algoz era mesmo externo a mim. Do meu desejo de isolar-me fora do convívio urbano sobrou pouca coisa, ainda que o exílio faça parte de uma das minhas pretensões. A necessidade disso ergueu-se quando a minha atividade profissional passou a representar um perigo para a minha saúde mental.

Ainda não sei precisar o que há naquela cidade. Desejo contar-lhes somente os fatos, mesmo ainda inclinado a fazer julgamentos. Digo que, em pouco tempo, não mais sentia-me agraciado pela solidão inebriante das serras geladas. Mas posso contar-lhes como me sentia antes disso para mais fácil compreenderem-me a respeito do maligno encanto que agora julgo existir naquela cidade.

O frio deste pedaço da Terra atravessa até o mais grosso casaco. A mais grossa capota. Enquanto lembro-me dos ocorridos, aquele frio misteriosamente ajunta-se a mim e aproxima-me uma fria sombra degredada.

O que vou contar pode pôr em dúvida a própria imagem do que sou ou do que posso vir a ser. Mais ainda: compromete minhas experiências anteriores, coisas que atestam sobre o que eu já fui um dia. O que posso adiantar antes de começar a contá-la, é que, ademais do que podem dizer médicos e especialistas na mente humana, meu estado atual é muito pior do que o anterior. Ainda assim, reforço que isso em nada compromete a veracidade dos fatos. Lembro-me de tudo, como se há pouco se tivesse terminado aquele pesadelo.

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⏰ Last updated: May 06, 2020 ⏰

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