3 ⋆ O limbo do universo

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Zavian tentava manter uma expressão leve enquanto andava até o riacho, mas, pela primeira vez, eu via o medo evidente nele; um temor cruel que o fez parar na margem do curso d'água, receoso. Eu segurei sua mão, o dando um olhar terno antes de pularmos na corrente. Nossos corpos afundaram na água, porém, nossos pés logo encontraram o chão e voltamos à superfície. Era mais raso do que eu imaginava, mas ainda precisava ficar nas pontas dos pés para não ser engolida pela água.

— Tudo bem? — perguntei para Zavian, segurando-me em seus ombros.

Ele assentiu, encarando o túnel à nossa frente. O lugar era escuro e mesmo que a água fosse cristalina, não avistaríamos o que havia no fundo. Eu tomei uma longa inspiração, trazendo as lembranças de Lys à tona para conseguir a coragem que precisava para continuar.

— Está pronta?— Zavian perguntou. Segurava meus cotovelos suavemente, cuidando em manter-me emersa.

— Não. — Eu respondi sinceramente, arrancando uma risada alta dele. — Mas irei assim mesmo.

Rindo nervosamente, Zavian aquiesceu e segurou forte minha mão. Nós viramos e encarando a entrada do túnel, nadamos adiante.

Logo, nós fomos engolidos pela escuridão. Eu estremeci, levantando minha cabeça para que ficasse acima da linha d'água, mas tomando cuidado para não batê-la no teto rochoso baixo demais. A passagem era estreita e a profundidade, maior em alguns pontos. A correnteza nos impulsionava adiante, porém, por um longo tempo, não houve indícios do final do caminho. Uma angústia cresceu em meu peito e eu comecei a achar que havia nos levado para a morte certa — ainda mais no momento em que o chão sumiu sob meus pés. Me debatendo na água, eu afundei e rodopiei no que parecia ser um redemoinho, usando toda minha força para segurar a mão de Zavian e nos manter emersos.

— Selene! — Ele exasperou, rodopiando comigo na água. — Segure, segure firme!

— Meu Deus! — gritei, sentindo a correnteza forte nos chacoalhar.

Agora, descíamos num túnel inclinado e ligeiro. Tudo pareceu estremecer e eu agarrei a mão de Zavian com muito esforço. Nós afundávamos e emergíamos de minuto em minuto, gritando de desespero e engolindo água. Enquanto tentava manter a cabeça fora d'água, o teto de rocha pareceu escurecer, e eu vi galáxias e constelações rodopiando, formando a coisa mais linda e assustadora que já havia visto na vida. No minuto seguinte, eu afundei, tendo apenas um vislumbre de Zavian perto de mim e do universo estrelado acima das nossas cabeças. 

Meu ar estava esgotando-se e por mais que me debatesse na água, não havia chão. Estava imersa num riacho abaixo de quilômetros e quilômetros de rocha de uma montanha. Pensei que acabaria ali, desesperada pela ideia de Zavian estar morrendo ao meu lado. A visão dele agitando-se na água e seu aperto de mão forte foram as últimas coisas que tive antes de perder a consciência por um instante, um segundo de fechar de olhos.

Quando minhas pálpebras levantaram novamente, eu estava caindo. Despenquei de uma pequena queda d'água, mergulhando violentamente de costas em outro curso corrente. Eu afundei na água mais uma vez e quando subi, tomando uma respiração desesperada, não estava mais no túnel. Havia céu aberto sobre minha cabeça e Zavian não estava por perto. Olhei ao redor, procurando o homem em todos os lugares, mas a água ali não era cristalina, e sim negra e turva, e eu não podia vê-lo.

— Zavian! — Eu gritei, pânico preenchendo meu coração. — Zavian! Zavian! — chamei outra vez, recebendo somente ecos de resposta.

Eu mergulhei, tentando achar qualquer coisa naquela água escura. Eu subia, respirava e então mergulhava de novo, o procurando incansavelmente. Quando subi pela última vez, meu coração doía tanto que pensei que partiria ao meio.

— Zavian! — lamuriei, tomando ar para mergulhar mais uma vez à sua procura.

Eu submergi de novo, mas senti quando alguém me puxou para cima pelos braços. Abri os olhos e Zavian estava bem na minha frente, pálido e com os lábios azulados. Ele tremia, segurando meu rosto com ambas as mãos. Suas palmas eram geladas e ele respirava com dificuldade. Eu o abracei, exasperada, engolindo um pouco de água.

— Oh, meu Deus! Você está aqui! — Eu choraminguei, agarrada a ele. — Me desculpe, me desculpe! Eu te coloquei nisso, eu nos coloquei nisso. — As lágrimas escorriam quentes pelos meus olhos.

— Sel, olhe para mim. — Zavian pediu, a voz trêmula. Eu não conseguia soltá-lo. — Olhe para mim, por favor — falou outra vez, segurando meu rosto entre suas mãos. — Veja, nós conseguimos! — Ele sussurrou e apontou para o lado, fazendo meu olhar seguir na mesma direção.

Assim que meus olhos alcançaram o horizonte, minha respiração engasgou e eu senti meu corpo flutuar na água. Nada que tivesse visto ou feito era tão grandioso quanto aquilo. Estávamos do outro lado da montanha e a imensidão de neve se estendia outra vez. O céu era muito negro, mas nada estava escuro, pois havia muitas estrelas. Meus olhos nunca haviam visto tantas delas. Pareciam tão próximas da terra que senti que podia tocar galáxias inteiras somente ao estender o dedo. 

Estapafúrdios e imersos naquela beleza, nós começamos a sair da água. Quando meus pés tocaram a terra firme outra vez, minha cabeça estava num sonho. Não tive forças para levantar, meus joelhos fraquejaram. Zavian também estava jogado ao meu lado, a boca entreaberta em incredulidade e o cabelo pingando no rosto, assim como o meu.

Diante de nós, havia uma imensa mancha escura e irregular como uma névoa. Ela parecia vir do centro da terra e ia até onde o céu podia se estender. Não podíamos avistar o outro lado ou qualquer coisa dentro dela, apenas a escuridão profunda, como se estivéssemos diante do próprio universo. O Limbo, minha mente gritou, mas minha boca não formulou nenhum som. Era mais do que podíamos compreender. Era tudo e era nada, a matéria escura que formava o cosmos oscilando diante dos nossos olhos. Lá, onde as estrelas cintilavam no firmamento, a milhares de ano-luz de distância de nós, o Limbo parecia dar origem a ondas brilhantes. Era o nascimento de planetas e galáxias, e eu pensei que fosse ficar cega com tanta luz.

A mão de Zavian encontrou a minha e nós nos olhamos sem conseguir dizer nada. Agora, não sentia mais dor ou culpa. Pensei em Lys e desejei por tudo no mundo saber se ela havia chegado até ali, com lágrimas escorrendo pelos olhos. Como quem tem o desejo atendido, visões começaram a passar. Víamos muitas pessoas, mas não mais que vultos. Todos chegavam ali do mesmo jeito que nós, homens e mulheres de todas as idades e de todas as épocas. Eles chegavam, olhavam para o Limbo e iam em sua direção, sumindo nele. Simultaneamente, uma explosão de cores pintava os céus. Era o tempo passado, presente e futuro projetado diante dos nossos olhos — o lugar que não era escravo dos nossos relógios.

Eu observava tudo, estapafúrdia, até que uma imagem me engoliu. 

Lys

Ela parecia borrada e fantasmagórica, apenas uma visão. Caia na água como eu fizera minutos antes, nadando até a terra e engatinhando fissurada até o Limbo. Lys estava exatamente como eu lembrava, com seu cabelo loiro e curto e sua pele pálida. Ela levantou-se debilmente, respirando fundo, e entregou-se para a Nascente dos Mundos. Então, como todos, ela sumiu ali. No céu, uma explosão de tons esverdeados brilhou e mais um montante de estrelas nasceu. Logo em seguida, tudo desapareceu.

Eu não respirava, não falava. Os braços de Zavian estavam ao meu redor, mas eu mal sentia. As lágrimas jorravam dos meus olhos devido à dor e, inconscientemente, pelo alívio. Eu vira, afinal. Lys havia se entregado ao que tanto procurava, sem arrependimento ou dúvidas, como todos que estiveram ali fizeram. Foi o que ela sempre procurou e, por isso, eu deixei que meu sofrimento amansasse. Ela estava em paz e iria querer que eu também estivesse.

Eu tive a ideia de levantar para mergulhar no desconhecido como Lys, mas fui trazida de volta à realidade pelos braços que estavam ao meu redor. Eu olhei para Zavian, o homem que atravessara o mundo para estar ali comigo. Os olhos dele eram negros como o Limbo e tinham suas próprias galáxias. Meu amigo... meu amor. Não precisávamos falar nada para saber o que precisávamos fazer em seguida — eu tinha uma promessa a cumprir.

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