Não demora muito para Marcos espreguiçar e começar a olhar para a barraca. Ótimo. Isso quer dizer que daqui a pouco vão dormir.

— Podem deixar que eu apago a fogueira — falo.

— Tem certeza? — Robervan pergunta. — Porque aí você vai ter que esperar...

Dou de ombros.

— Não estou com sono mesmo.

O que não é uma mentira. Ainda estou remoendo o que aconteceu ontem. Não vou conseguir dormir até ter uma resposta – mesmo que essa resposta seja só uma confirmação de que eu estou ficando doida.

— Não sei como, considerando o tanto que andamos... — Clarisse comenta.

Rio e dou de ombros de novo. Errada ela não está. Só que minha cabeça não vai me deixar dormir.

Marcos se levanta e rola os ombros para trás.

— Então, já que você se ofereceu, eu pelo menos vou dormir.

Não falo nada. Já conheço a rotina: depois que o primeiro vai dormir, os outros não duram nem dez minutos.

Clarisse ainda se oferece para me fazer companhia, mas não insiste quando falo para ela ir dormir. Ótimo. Tudo o que eu quero agora é ficar sozinha mesmo, encarando o fogo e esperando o silêncio.

O barulho das ondas é calmante, de certa forma. É um ruído um pouco abafado, mas constante. Se eu só fechar os olhos e ficar ouvindo, a mistura disso com os barulhos da mata – os grilos, os animais pequenos correndo, uma coruja piando – não parece tão estranho a praia ao lado da mata. Tudo encaixa, de alguma forma.

E é familiar. Como? Eu me lembro de vir para a mata, mas não de vir tão perto da praia. Não me lembro de nada da praia, na verdade, o que não faz sentido. Mas os sons da mata...

Os sons que desapareceram.

Olho ao redor. A luz do fogo não é das mais fortes e não consigo ver nada além das silhuetas dos troncos das árvores ao redor da clareira. Mas não preciso ver.

Me levanto devagar. Ele está aqui. A sensação de que tem alguém me encarando é forte demais para não estar. Olho ao redor de novo, mais devagar agora. Acho que devia ter ficado com uma das lanternas, mas como estava do lado do fogo nem pensei nisso. Tarde demais agora.

Vou na direção das árvores. É loucura, mas já me conformei com isso. Só preciso saber.

Escuto o mesmo ruído de ontem – algo rastejando. Ele, mesmo que isso não faça sentido. E se está se movendo...

— Espera — chamo.

O silêncio parece que fica mais pesado e consigo ouvir o farfalhar das folhas quando uma brisa passa. Não sei o que mais posso fazer. Correr atrás dele? Não faço ideia de onde ele está. A única coisa que posso fazer é esperar e torcer para não estar louca.

Uma silhueta mais escura aparece no meio das árvores, bem na minha frente, e o ruído de algo rastejando começa de novo.

Continuo parada no lugar. A silhueta vem chegando mais perto, até que consigo ver um rosto de traços largos, com aquela coisa a mais que parece que chama a atenção por si só. Os olhos do homem são escuros e ele tem o cabelo comprido, caindo pelas suas costas e seus ombros. Braços definidos, sem chegar a ser musculoso, e eu acho que ele não está vestindo nada porque seu peitoral é tão definido quanto os braços e seu abdome também...

Engulo em seco e respiro fundo quando ele se aproxima mais do fogo. Agora o som de algo rastejando faz sentido. Até ele não estar vestindo nada...

É uma cobra. Onde deveria ser o quadril dele, a pele muda para escamas escuras e o que está ali não são pernas, é uma cauda grossa. O ruído rastejante volta e olho para trás. Uma cauda grossa e longa, porque ela está atrás de mim, também, me cercando.

Olho para o homem de novo. As escamas refletem a luz do fogo de uma forma estranha, mas isso é coisa para pensar depois. Agora eu deveria estar com medo, no mínimo. Pensando que realmente estou louca, talvez, porque um homem com cauda de cobra é impossível. Mas só consigo pensar que isso é certo, de alguma forma. Que um peso que eu não sabia que estava carregando desapareceu.

— Você não deveria estar aqui — ele fala.

Você não deveria ter voltado.

É como no meu sonho. É meu sonho, de alguma forma. Só que não é. Não é um sonho.

Estico uma mão na direção dele. O homem me encara por um instante antes de olhar para minha mão, mas não acho que isso seja um aviso. Pelo menos não parece ser.

A pele dele é fria. Mais fria que a minha, pelo menos. E real. Não é uma ilusão ou alucinação. Minha mão está no peito dele e consigo sentir o ritmo da sua respiração e a vibração quando ele solta um chiado baixo – um som mais perto do que uma cobra faria do que algo humano.

Isso não é novo. Nem estranho. Eu conheço isso. Conheço ele. Ou, pelo menos, deveria conhecer.

— Você é real — murmuro.

Ele me encara de novo e seus olhos brilham com um tom de verde que não tem como ser humano.

Água e Fúria (Entre os Véus 2) - DEGUSTAÇÃOWhere stories live. Discover now