— Nem eu. Anda, vem almoçar.

Nero não responde, mas entra na cozinha e pega o último prato.

— Posso saber... — começo.

Vanessa aponta para o meu prato com o garfo.

— Almoço primeiro, depois negócios.

Ou seja, o comentário de Nero sobre não confiar "neles" tem alguma coisa a ver com o "talvez eu tenha alguma coisa para te ajudar de Vanessa". Muito animador. Muito mesmo.

Mas, considerando minhas opções inexistentes...

Nero se senta ao lado de Vanessa.

Ela está certa. Comida primeiro.

Os primeiros minutos são em silêncio. Culpa da lasanha, com certeza. Não que Vanessa e Nero sejam do tipo que conversa sem parar enquanto comem. E não demora muito para começarem os comentários sobre o que está acontecendo na cidade e na hospedaria, quais hóspedes são tranquilos, quais provavelmente nunca vão voltar - e se voltarem existe uma boa chance de não acharem quartos disponíveis. Rotina. Tudo tão normal e tranquilo.

Essa vida não é para mim. Por mais que inveje Vanessa por ter isso aqui e estar fazendo o que bem entende... Eu ficaria louca. É tudo trivial demais, mundano demais... Seja lá o que isso quer dizer.

Pego os pratos assim que terminamos de comer e levo tudo para a pia enquanto Vanessa guarda o que sobrou da salada na geladeira e Nero coloca a lasanha de volta no forno.

— Não sei se você reparou nos hóspedes que estão aqui agora, mas tem um grupo de pesquisadores — Vanessa começa.

Me viro para ela e cruzo os braços.

Essa é nova.

— Pesquisadores?

Ela dá de ombros e se senta de novo.

— É o que parece. Eles querem recolher amostras de plantas e solo na mata e o que me falaram é que querem acampar lá, em pontos diferentes. Passar uns três dias na mata antes de voltar para a cidade.

Três dias na mata. A mata que tem um histórico alto de desaparecimentos e que o pessoal da cidade tem um mundo de histórias sobre monstros e tudo mais. A mata onde ninguém entra, a menos que seja para usar as trilhas já super conhecidas indo para a praia.

— Para quê alguém vai fazer uma coisa dessas?

— Eles falaram alguma coisa sobre animais noturnos — Nero fala.

— Possibilidade de espécies diferentes dentro da mesma região — Vanessa completa. — Pelo menos, foi isso que disseram. Nero não confia neles e nem eu.

Tá, isso explica o comentário de mais cedo, mas...

— E o que isso tem a ver comigo?

A campainha toca. Vanessa suspira e olha para Nero, que já está atravessando a cozinha. Ótimo. Quer dizer... Eu sei que estou atrapalhando o trabalho dela, mas agora quero saber o que isso tudo tem a ver com o que Vanessa falou comigo de manhã.

Vanessa espera Nero sair da cozinha e fechar a porta que dá para o corredor antes de se virar para mim de novo.

— Eles querem um guia. Sabem que se entrarem na mata sozinhos o resultado não vai ser muito bom, então querem alguém da cidade que conheça a região.

Abro a boca e paro. Okay. Guia, na mata.

— E as histórias...

Porque eu acho que não faz muita diferença se eu acredito no que já ouvi falarem. A questão é que, monstros ou não, as pessoas desaparecem na mata. Ponto.

Vanessa dá de ombros.

— Você disse que brincava na mata quando era criança, não é?

Como se desse para confiar na minha memória. Especialmente no que eu lembrava de quando era criança.

E o pior de tudo é que não lembrar nunca me incomodou. Sempre foi uma coisa que aceitei e ignorei, até voltar para cá. Agora, não sei de mais nada.

— Dai?

Suspiro.

— E se eu estiver errada? Ou pior, e se estiver certa. Se tiver brincado na mata quando era criança, sim, e ter acontecido alguma coisa que me fez esquecer de tudo e...

Pronto. Falei. É isso.

Vanessa se levanta e para na porta que dá para o quintal.

— Quando você fica encarando a mata, qual é sua impressão?

É claro que ela ia notar. E se ela não notou, Nero com certeza comentou sobre isso. Então não tem motivo para essa pergunta ser uma surpresa, mas mesmo assim, não é o que eu esperava. Definitivamente não é.

Solto o ar e balanço a cabeça.

— Não é ruim.

E isso é a única coisa que consigo falar, porque não sei o que é a sensação que tenho sempre que vejo a mata.

Vanessa assente.

— Então vai estar segura lá.

Um arrepio me atravessa. Simples assim. Como se ela soubesse exatamente o que faz as pessoas desaparecerem na mata.

Não. Eu estou viajando demais. Não devia ter passado aquelas noites no bar, quando estava chovendo, ouvindo o pessoal contar histórias. Ou melhor, devia ter enfiado na cabeça desde o começo que eram só histórias sem nenhum fundo de verdade.

Mesmo assim...

— As histórias sobre monstros... — começo.

— Monstro. No singular.

Balanço a cabeça e continuo olhando para ela. Eu devia ter ficado calada.

Vanessa dá de ombros.

— Sei lá, imagino que monstros sejam territoriais, não acha? Então se tem algum monstro na mata, é um só.

Ela está zoando com a minha cara. Só pode.

— Isso não está ajudando.

Vanessa ri e fecha a porta que dá para o quintal antes de parar na minha frente.

— E então, o que vai ser?

Eu disse que queria fazer uma loucura, não disse?

— Quero conversar com esses pesquisadores. Não sei se vou topar, mas se não acharem mais ninguém e eu for com a cara deles...

Ela assente.

— Vou conversar com eles depois e te aviso.

— Obrigada.

Só espero não me arrepender disso.

Se bem que... O que eu tenho a perder?

Água e Fúria (Entre os Véus 2) - DEGUSTAÇÃOWhere stories live. Discover now