Matriarca

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Desolada, ela testou a porta da sala. Afastou as cortinas da janela, observando os rasgos que desciam de alto a baixo por elas. Voltou-se para o tapete do centro e parou por um instante, percebendo os sons do ambiente: não se ouvia nada.

Prosseguiu com sua busca: tinha que trancar o portão principal e a porta da frente. Desviou-se de restos de comida e suco derramados pelo tapete e seguiu o caminho traçado por eles com os olhos, até se deparar com a TV. Uma mancha espessa e vermelha escorria pela tela e criava uma poça agourenta sobre o rack. A mulher engoliu em seco, a imaginação correndo solta e criando hipóteses para a ocorrência que resultara naquela cena, e, não encontrando o que procurava, dirigiu-se para a porta fechada do lavabo.

Girou a maçaneta com toda a delicadeza que podia e empurrou a porta devagar, constatando que o cômodo estava vazio. Pressionou o interruptor e o recinto foi banhado com uma luz fria e intermitente, resultando do mal contato da lâmpada. O cesto abarrotado de papéis usados e sujeira estava tombado, seu conteúdo fétido se esparramava pelo chão e uma gosma purulenta derramava-se pela lateral da privada. A tampa estava abaixada, e ela não a levantou. Não sentia coragem suficiente para isso naquele momento.

Estava prestes a sair quando notou o espelho: havia uma mensagem escrita nele, uma mensagem em vermelho. O que quer que tivesse sido usado para colocar aquelas palavras ali escorrera e pingara na pia branca, provocando calafrios na mulher. Ela engoliu em seco: na mensagem, um alerta. "A gente manda."

Inspirou fundo e voltou à sala, ainda tinha que encontrar o objeto que manteria a casa segura. Passou pelo início da escadaria escura que levava ao primeiro andar e decidiu se dedicar àquela área depois que vasculhasse todo o térreo, então se voltou para a direita, para a entrada da cozinha, e antes de empurrar aquela porta entreaberta para o recinto escuro tomou fôlego. Estava exausta, as ruas eram perigosas, mas a cozinha sempre lhe causava calafrios. Acionou o interruptor: a luz, pelo menos ali, era constante, apesar de sua coloração tétrica.

Abençoadamente, não havia ninguém além de um gato arisco, claramente incomodado com a interrupção de seu sono, escondido entre os potes dos armários abertos. No fogão, as panelas chamuscadas com restos de algo que podia ou não ter sido comida pareciam estar ali há séculos, mas os conjuntos de pegadas que se distanciavam de uma poça de óleo no chão denunciavam a passagem recente de pelo menos quatro pessoas por ali, nenhum deles com pés maiores que o número trinta e três.

Ouviu sons vindos do andar de cima, passos. Era melhor se apressar.

Sobre o balcão, um pote de geleia de morango aberto tinha sido esquecido, restos de seu conteúdo esparramando-se no mármore e denunciando a natureza da coisa que impregnava a TV. A mulher passou os olhos rapidamente pela mesa de jantar, pela pia imunda, pelos trapos encardidos e amontoados num canto ao lado da porta e, inusitadamente, encontrou o que procurava exatamente no lugar ao qual pertencia: as chaves da porta da frente estavam penduradas no porta-chaveiros com formato de peixe próximo ao micro-ondas. Aproximou-se de lá com passos mais macios do que os do felino que a encarava arreganhando os dentes pontudos e silvando como uma chaleira fervente. Apanhou o chaveiro, selecionou a chave certa e dirigiu-se para o portão rapidamente, sem dar chance a si mesma de repassar os olhos pela cena de destruição na cozinha. Na sua cozinha.

Foi à garagem, inseriu a chave na fechadura do portão para a rua e girou-a, e só então abriu o porta-malas do carro e puxou as sacolas com máscaras e luvas protetivas e também as outras, com mantimentos. Entrou na casa novamente e trancou a porta principal, deixando o espólio de sua saída ao lado da porta.

Seus olhos se voltaram para a escadaria escura, de onde sons de ocasionais movimentos dos ocupantes da casa se ouviam. Ela ouvia risadas abafadas e infantis, risadas que ela amava, ainda que pertencessem aos causadores de todo aquele cataclismo. Sua vontade era ir para lá e deixar a cena de guerra para trás.

Mas não podia, não ainda. Era a matriarca daquela família de quatro crianças e pai falecido.

Tinha que ser rápida: um banho era essencial para se descontaminar e não trazer a peste para dentro de seu lar, e mesmo que logo depois dele ela soubesse que o corpo iria protestar e pedir por um descanso, ela respiraria fundo e tomaria coragem para encarar a tarefa de deixar aquele lugar habitável para o dia seguinte, quando, novamente, ninguém poderia deixar os sessenta metros quadrados da casa sem quintal ou varanda para nada.

Olhou para o calendário atrás da porta e suspirou. Nele, marcado na data daquele dia, destacava-se a anotação em letras garrafais: Quarentena: dia 2.

MatriarcaWhere stories live. Discover now