1: Hey Jude!

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Eu conheci meus irmãos aos nove anos.

Estava tão desesperada por afeição que nem pensei em questionar minha tia; ela disse-me que como ela e minha mãe eram gêmeas, seus filhos eram meus irmãos e simplesmente aceitei. Tenho certeza que isso ajudou bastante com todo o processo de transição de país e família.

Minha vida no Brasil foi extremamente conturbada. Não tinha muitas lembranças, mas, as que eu tinha, eram um misto confuso. Algumas das lembranças da minha mãe acabaram se misturando com as da minha tia, em algum momento; eram tão parecidas que quase não conseguia diferenciá-las no meu passado. Lembrava-me, porém, que tinha uma voz linda e cantava para mim em inglês, sua língua materna, todas as noites, antes de me colocar para dormir.

Minha mãe morreu.

Minha mãe foi assassinada pelo meu pai.

Eu tinha certeza que assisti como foi, mas meu cérebro infantil foi incapaz de reter a informação. Disso eu não lembrava. Lembrava do meu pai bêbado. Lembrava como ele gritava quando nos ouvia cantar. Lembrava que ele batia na minha mãe.

E, com nitidez, lembrava do corpo da minha mãe jogado no chão da cozinha, o sangue ao redor dela. Fiquei trancada sozinha com seu corpo por quatro dias. Limpei todo o sangue. Lavei seu corpo. Abanava para espantar as moscas. Ao final do quarto dia, um grupo de vizinhos, estranhando a ausência dos meus pais no convívio do condomínio, invadiu minha casa.

Fiquei um dia na casa da minha vizinha e fui enviada para um abrigo. Estive no abrigo por alguns meses. Não foi muito tempo, eu achava, mas não sabia dizer com exatidão. Foi com um pouco de dificuldade que conseguiram contato com minha tia, na Inglaterra. Assim que soube, em poucos dias minha tia estava no Brasil. Quando ela chegou até mim, levei um susto e por poucos momentos achei que era a minha mãe; chorei em seus braços com esperança e chorei mais quando percebi que não era quem eu pensava e chorei ainda mais ao perceber que, mesmo assim, estava em segurança. Minha mãe falava de minha tia com frequência e trocavam cartas e presentes durante minha infância. Ela sempre dizia que se algo de ruim acontecesse com ela, minha tia faria o melhor por mim.

Acho que minha mãe já suspeitava do desfecho de sua história.

Tia Liah arranhava um português rústico de apenas palavras chaves, mas eu não tinha dificuldade de entendê-la em inglês, não. As músicas que minha mãe cantava e tudo o que conversava comigo em sua língua materna tinha me feito aprender a falar as duas línguas de jeitos quase iguais, mas, apesar das tentativas da minha tia em se comunicar comigo em português ou inglês, não respondia. Acho que eu só não estava pronta para falar.

Lembro do dia em que ela conseguiu a guarda e a autorização para viajar comigo para a Inglaterra. Chegou no abrigo com uma mala com algumas coisas que recolheu de minha antiga casa. Abraçou-me forte e me contou sobre como meus irmãos estavam ansiosos para me conhecer. E de como eles me protegeriam.

- Ele não vai fazer mais nenhum mal - prometeu-me em inglês, em um abraço, enquanto afagava meus cabelos. Naquela altura, já tinha percebido que meu silêncio era traumático, não incompreensão. - Ele vai ficar preso por um bom tempo, Leticia. E nós duas vamos para bem longe.

Viajei de avião pela primeira vez, mas tia Liah fez de tudo para que fosse uma experiência agradável. A semelhança dela com minha mãe me fazia achar que estava vivendo um sonho e, apesar do trauma recente, já me sentia mais segura e comecei a relaxar. Lembro que estranhei quando chegamos na Inglaterra e olhei curiosa para os ônibus e as ruas. Parecia tudo extremamente diferente, mas bonito.

Conheci minha nova família. Tia Liah me apresentou eu marido, tio Robert, de quem eu fiquei com medo por meses sem que se ofendesse, sempre me trazendo doces e presentes até que eu finalmente comecei a confiar nele. E meus irmãos, Michael, de 12 anos, e Hope, também de 9 anos.

Hope tinha a mesma idade que eu estava realmente animada em ter uma irmã. Queria conversar, brincar, jogar e tudo mais e, embora eu quisesse fazer tudo isso com ela, nada saía de minha boca. Hope, como qualquer criança, se cansou de tentar contra o meu silêncio em dois ou três dias e eu fiquei muito triste com isso.

Só fui conseguir falar, porém, alguns dias mais tarde. Foi Michael, meu irmão mais velho, que me fez querer falar. Ele era atencioso, gentil e estava sempre perguntando se eu precisava de algo. Ele vivia para baixo e para cima com um violão treinando notas que ainda saíam um pouco fora de ritmo, mas sua voz era muito bonita. Sentava-me aos seus pés todos os dias e assistia-o tocar de sua cama.

- Você pode tocar Hey Jude? - pedi, por fim, quando ele planejava parar de tocar. Ele olhou-me com surpresa e abriu um sorriso imenso que iluminou seus olhos castanhos brilhantes de um tom de conhaque que eu nunca tinha visto até então.

- Mas é claro - concordou. - Você conhece essa? Quer cantar comigo?

Eu conhecia, sim. Era a música favorita de minha mãe. Na época, não sabia o que significava para ela quando cantava para mim, mas o tempo me fez perceber que usava a música para sobreviver aos abusos que meu pai cometia.

A Michael, concordei com a cabeça, mas não estava pronta para cantar. Talvez nunca estivesse.

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