• Prólogo ☥

169 21 71
                                    

A pouca luz que iluminava aquela jaula improvisada era quase inexistente ao competir com as trevas que pairavam como uma densa névoa sobre as três figuras ali presentes.
Se não fosse o mínimo calor remanescente do sol que fracamente emanava como um pequeno feixe de luz do corpo - antes brilhante e imponente da deusa, - agora irreconhecível e jogado ao chão como se fosse nada, a escuridão seria completa.

O olhar de ódio de Seth pairava sobre o rosto cansado de Sekhmet e da pequena criança enrolada em trapos sujos, como uma múmia, em seus braços.

Apesar de suas condições totalmente indignas, a mulher ainda detinha em seu cenho a determinação da guerreira destemida e invencível que há pouco tempo havia sido.

— Não compreendo o motivo de estar me mantendo em tal situação, Seth. — Os olhos de Sekhmet se perderam na criança em seu colo, dizendo muito mais do que as palavras que saíam de sua boca. — Todos esses anos dividindo o poder e glória no governo depois de matar Osíris e assumir o trono, e você ainda é capaz de pensar que eu me deitei com um mortal. Mesmo minha missão na Terra sendo exterminar aquela raça. — Um riso de desdém escapou de seus lábios. 

O deus se aproximou ferozmente da prisioneira, fora de si, tomando-lhe o rosto quente com a mão fria e áspera, e forçando-a a olhar em seus olhos. Reagindo assustada ao gesto abrupto, a criança começou a chorar, fazendo com que o já irado Seth perdesse por completo qualquer traço do que restava de sua sanidade.

Uma gargalhada sarcástica ecoou no ambiente escuro, segundos antes de o deus agarrar a garota pelos trapos e segurá-la no ar como um brinquedo.

— Acha mesmo que se essa criatura fosse um feito meu, ela estaria chorando desse jeito em frente ao pai? — Seth levantou o tom de voz ao máximo para se sobressair aos prantos da pequena. — Ela sequer tem alguma característica minha. Duvido que tenha um pingo de sangue divino correndo em suas veias. — Os olhos do deus pairaram sobre a garota, analisando-a por completo, de cima a baixo.

Seus poucos fios de cabelo, ainda nascendo, lembravam chamas recém-inflamadas. Os grandes olhos, de uma cor verde intensa, pareciam implorar para que ele parasse com aquilo. As bochechas rosadas, repletas de sardas que pareciam constelações, lembravam o céu estrelado concebido por Nut todas as noites.

E apesar de todo o choro, sua expressão parecia pensativa, como se estivesse entendendo o que estava acontecendo ali.

Seth revirou os olhos, ignorando tudo aquilo e voltando sua atenção para a esposa.

— Se ela tiver sorte, vai ser apenas uma humana qualquer, e não uma aberração meio humana e meio deusa, com poderes incompletos, incertos e totalmente instáveis. Sem nunca poder herdar o trono ou sequer ser grandiosa e digna, como nós.

Ao terminar de falar, ainda segurando a mais nova pelo braço, Seth virou as costas para Sekhmet, decidido a sair de lá, largando a mãe aprisionada para que sofresse as consequências de ceder aos desejos carnais, traindo a própria raça.

Já perto da porta, porém, o deus pôde perceber o calor intenso que o recinto adquiria, sendo completamente inundado por uma luz quase ofuscante. Sekhmet havia usufruído de toda a sua raiva, causada pelo ato de Seth, para renovar suas energias e lutar por sua prole.
De pé e em posição de combate, a deusa encarava Seth e sua filha. A garota havia parado de chorar e parecia intrigada com o fato de sua mãe exibir toda a beleza e esplendor de um sol nascente.

— Eu fui criada por Rá para punir e extinguir a raça humana da face da Terra, por todas as atrocidades e pecados cometidos ao longo dos anos. Minha missão era destruir todos aqueles que iam contra nós, os deuses, por estarem corrompidos pelo caos. Que é em parte, causado por você. A humanidade é um erro, e eu não cometeria esse erro. Não me deitaria com um mortal e não colocaria um humano ou semi-humano a mais no mundo. — Sem pausas para recuperar o fôlego, Sekhmet prosseguiu, inabalável. — Esta é Khyarah, sua filha e herdeira do nosso trono. E se não colocá-la no chão agora e implorar perdão pelos seus últimos atos conosco, você vai sofrer toda a ira que Rá acreditou ter tirado de mim quando acabou com meu trabalho na Terra e me trouxe de volta.

Os olhos da deusa eram duas chamas crepitando. Sua voz reverberava por cada canto daquele lugar, antes inundado por trevas, agora queimando com tão intensa luz emanada por ela.

Alguns segundos de silêncio se passaram, até que um baque foi ouvido quando o deus do caos e da destruição soltou a criança, que caiu no chão de uma altura consideravelmente alta para alguém daquela idade. Palmas lentas ressoaram após o ato, provocando Sekhmet como um desafio lançado.

Parecendo não ter dado importância a uma sequer palavra dita, Seth sorriu e arqueou uma sobrancelha, olhando para ela com desdém.

— Demorou todo o tempo em que esteve presa para preparar esse discurso? Soou quase convincente... Quem sabe se você tivesse se esforçado mais. — Os olhos do deus se voltaram para a criança no chão. — Ou quem sabe se ela tivesse algo, uma mísera característica que indicasse a minha divindade e soberania. Mas veja! É simplesmente um grande nada. Assim como o que você representa pra mim agora. — Seth deu de ombros e levantou o olhar novamente para a deusa em chamas. — Se ela fosse minha filha, eu saberia.
— Não. — Sekhmet rebateu, com uma fraca risada de desgosto. — Se você fosse homem o suficiente para ser pai, você saberia. — Cuspindo essas palavras como veneno, a deusa avançou furiosa para cima de Seth, determinada a extingui-lo do mundo, assim como havia feito com os milhares de mortais que matou.

O deus, nada surpreso com o ataque, levantou as mãos em um gesto rápido e preciso, fazendo com que o corpo de Sekhmet fosse atingido por um campo invisível e lançado com toda a força para trás, batendo contra a parede e caindo de joelhos no chão, desabando segundos depois.

— Sabe, enquanto você estava fora, eu aprimorei umas coisinhas. Tinha planos de dividi-las com você, e logo após pensarmos em um possível herdeiro. Mas agora que mostrou ser uma traidora, vejo que os poderes que roubei de todos os outros deuses devem ser usados apenas por mim. É uma pena, seria incrível governar o Egito ao seu lado, com nós dois sendo as únicas divindades soberanas altamente poderosas. — Ele desdenhou, dando tapinhas e esfregando os ombros com a mão, como se quisesse tirar a poeira remanescente dali depois de um mini confronto. — Mas vai ser melhor ainda ser o único deus todo poderoso a governar, sem ninguém nunca poder me vencer ou fazer algo quanto à isso.

Seth fez uma pausa, andando a passos lentos até Sekhmet, observando seu corpo caído ao chão junto aos fragmentos da parede que havia se despedaçado atrás dela.

— E quer saber mais? Eu estava decidido a poupar a garota, apenas para observar você quebrar a cara com a mentira que me contou. Mas algo tão desprezível como ser fruto da união de uma deusa com um mortal, merece apenas a morte. 

E depois dessas palavras, o deus foi até a garota, agarrou-a pelos trapos sujos, e saiu de lá com uma faca na mão e sangue nos olhos, decidido a matá-la e dar um fim naquela história. 

Herdeira do Caos [HIATUS]Donde viven las historias. Descúbrelo ahora