01 | RADIOATIVOS

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Quando Aisha ainda tinha sete anos, sua mãe teve uma crise de vômito intensa. Seu pai cuidou dela com carinho, mesmo não tendo nada a se fazer. Aquilo era o efeito da radiação que recebiam diariamente, sem parar. Durante a noite, escutava os resmungos e sons animalescos que sua mãe soltava. Por mais que tentasse dormir e ignorar tudo aquilo a sua volta, não conseguia. Quase conseguia sentir a dor da mãe, que definhava aos poucos. Quando os anos se passaram e ela finalmente morreu, Aisha teve de consolar o pai. Mas agora era ele quem estava morrendo, e não havia ninguém para consola-la.

Aisha pôs fim nos pensamentos melancólicos enquanto caminhava e parou em um corredor vazio, olhou a pequena janela lacrada e imaginou mil cenários diferentes que ela podia esconder. Era impossível abri-la, ou então a radiação entraria e mataria a todos ainda mais rapidamente. Às vezes, quando estava absorta em seus pensamentos, realmente desejava que todos ali morressem junto dela para que o sofrimento finalmente chegasse ao fim. Seu coração estava amargo, murcho como uma flor no fim de primavera. Tocou o metal da janela e respirou fundo. Antes de morrer como sua mãe, desejava ver ao menos um vislumbre do que havia do lado de fora. Ao seu redor, havia apenas metal, ferro e luzes de leds que indicavam as direções da nave.

Quinhentos anos antes, uma pedra azul-celeste, que brilhava com muita intensidade, foi encontrada pelos Estados Unidos. Aquilo foi mantido em segredo, e descobriram que se um líquido valioso escondido no interior da pedra fosse juntado ao corpo humano, ele virava um supersoldado. Os Estados Unidos almejavam poder e glória, e para isso mudaram homens e mulheres geneticamente usando a pedra celeste, de forma que se transformassem em máquinas mortíferas. Por um tempo, os americanos conseguiram o que queriam, mas aqueles supersoldados, denominados Celestes por causa dos olhos azuis, começaram a ter desejos também. O melhor de todos eles, Gregório Zancarli, reuniu os melhores dos melhores, e juntos, destruíram qualquer coisa que se opusesse. Naquela noite, apelidada de Noite Estrelada, incontáveis luzes e sirenes apitaram por toda a Terra, e a invasão Celeste se iniciou. Um Celeste para cada continente, cada um com armas indestrutíveis e soldados invencíveis. E então, a glória dos Estados Unidos se foi completamente, junto de grandes potências como Rússia e China.

Desde a queda dos países, a radiação se tornou letal em qualquer parte do planeta devido às guerras nucleares que se sucederam, e uma parcela da humanidade foi selecionada para se sacrificar em prol do resto. Aisha nasceu em uma nave, sem jamais ter sentido o calor do sol ou visto a beleza da lua. Trancada em uma nave que nunca deixa de voar, ela se sacrifica juntos dos seus numa tentativa de tornar a Terra totalmente habitável de novo.

Essa era a única história que Aisha conhece. Nunca leu um livro de conto de fadas ou assistiu filme. Retirou a mão da janela e se recompôs. Havia terminado mais um turno, e agora era sua vez de descansar, ou tentar. Caminhou lentamente pelos corredores cinzentos com leds azuis, nunca deixava de escutar o som dos motores. Seus sapatos marrons e surrados quase não faziam barulho. Quando adentrou a ala dos dormitórios, a fadiga e tristeza tomaram conta do seu coração. Em sua volta haviam incontáveis portas brancas com um número metálico pregado, cada uma com o número da casa de uma família. A dela era no final e quando abriu a porta, encontrou seu pai vivo.

Depois da morte de sua mãe, quem começou a adoecer era seu pai, Daren. Porém, ele era mais forte e os sintomas começaram lentamente. Primeiro, uma tosse, depois dores de cabeças corriqueiras. Anos depois, ele estava quase como um cadáver. Se aproximou dele lentamente e o observou. Seu peito mexia lentamente com a respiração. Havia emagrecido muitos quilos, de forma que seus ossos ficavam a mostra. A pele parecia prestes a desgrudar dos músculos. Suas maçãs do rosto estavam proeminentes, os lábios secos, olheiras profundas e arroxeadas. Seu tom de pele costumava ser mais rosado, agora não passava de um esbranquiçado quase transparente. Os cabelos castanhos, iguais aos de Aisha, estavam opacos e finos, também caíam com mais facilidade. Ele representava o futuro de todos que estavam trancafiados nas naves.

RadioativosWhere stories live. Discover now