2. Minha guerreira

11.8K 614 228
                                    

Você já tomou algum tempo da sua vida para pensar por que está aqui? Já refletiu sobre as coisas que acontecem no seu dia? Ou olhou para trás e se perguntou se fazia sentido? Eu faço isso sempre. Acho que é por que, depois que minha mãe se matou na minha frente, talvez até antes disso, eu senti dentro de mim pulsando essa vontade de enviar os corações puros para o lugar de onde vieram e gosto de observar como tudo se encaixa perfeitamente para esse propósito. De verdade, acho que estou aqui para isso. Eu sei que se disser em voz alta soa como loucura, mas não é. Eu vou contar sobre a minha vida a vocês e acho que concordarão comigo no final.

Eu olho para trás e vejo uma impressionante sequência de circunstâncias, escolhas e decisões construindo a minha história. Tudo faz sentido. Minha mãe se mata na minha frente. Sempre, ou ao menos desde que me lembro por gente, sei identificar os corações puros e percebo quando a escuridão aqui de fora começa a sufocá-los, os obrigando a voltarem para o lugar de sei lá onde vieram. Eu simplesmente sei. E quando olho para trás e vejo tudo o que teve que acontecer para eu encontrá-los no momento exato, toda rede complexa de fatos, escolhas e coincidências. É mágico. Parece mesmo um milagre.

Essa magia aconteceu também quando encontrei por acaso Antônia. Eu entrei no vagão do metrô e logo a vi. Ela estava com a cabeça encostada no vidro ouvindo música de olhos fechados. Ela devia ter dezoito anos, bem mais nova que eu. Acho que na época tinha dez a mais que ela. Antônia vestia uma calça preta colada, uma camiseta também preta mas larga por cima que escondia um pouco da sua excessiva magreza. Tinha o traços finos e o cabelo bem curto e moderno.

O banco ao seu lado estava vago. Senti uma vontade de sentar ali. Eu costumo respeitar e prestar muita atenção aos meus instintos geralmente eles me levam para onde quero estar. Sentei ao seu lado, no momento em que nossas pernas se encostaram ela me olhou com aquele sorriso que tirava meu fôlego, lembrava-me de mamãe. Reconheci na hora. Ela era um coração puro exatamente como mamãe. Quis puxar assunto, eu precisava conversar com ela um pouco, eu precisava saber se ela realmente pensava em se matar. Eu sentia que ela queria. Eu sentia isso muito forte gritando no meu coração, mas eu precisava que seus olhos confirmassem. Eu tinha que saber antes que ela saísse por aquela porta do trem.

Pensei em como abordá-la sem parecer um completo maluco mas conclui que enquanto ela escutava música qualquer abordagem pareceria lunática. Relaxei. A aproximação tinha que ser suave. Eu poderia segui-la, aprender mais sobre ela, e então, estudada sua rotina, eu poderia me aproximar aos poucos até virarmos bons amigos, já tinha dado certo uma vez.

Ela desceu na estação seguinte e fui na sua cola. Descobri que ela trabalhava em um prédio perto dali. Mais alguns dias e já sabia que ela trabalhava no arquivo de um escritório de advocacia, que almoçava todo dia cachorro quente na kombi da esquina, sempre que podia ouvia música e à noite estudava moda em uma faculdade perto do centro da cidade. Invariavelmente ela usava preto, variava as calças justas e as estampas das camisetas largas, não parecia que tinha muita imaginação para estudar moda.

Passados alguns meses descobri Antônia gostava de garotas. Ela não era muito ligada na vida noturna, via de regra saia da faculdade direto para casa de sua mãe, um senhora gorducha e com cara de bonachona, mas alguns dias ela seguia sozinha para alguns bares e de lá geralmente acompanhada para algum hotel barato.

Depois de refletir um tempo a respeito, decidi que a melhor abordagem seria em algum desses bares que ela de vez em quando ia. Eu teria que a seguir mais um tempo e, quando ela finalmente resolvesse seguir para o bar, eu teria uma chance de me aproximar.

Era uma sexta-feira. Antônia parecia mais feliz que o normal. De tempos em tempos ela sorria para o nada e era aquele sorriso puro, etéreo, a mais linda paisagem para meus olhos. Percebi também que cantarolava. Era raro vê-la assim, geralmente Antônia estava de cara fechada, protegendo-se do mundo com suas roupas masculinas e seu cabelo diferente. A alegria dela era contagiante. É sempre assim com os corações puros, quando eles vivem conforme sua essência, são iluminados, mas, então, inevitavelmente percebem e sentem esse mundo escuro de uma maneira muito cruel e dilacerante e sofrem, fecham-se e retraem sua alegria divina.

MORRA POR MIMOnde as histórias ganham vida. Descobre agora